Memórias
Irmão X
"Deve ser
horrível - diz
você - o
escândalo em
torno de nossa
memória. O homem
arrastado ao
pelourinho do
escárnio público
e ao pasto da
maledicência
deve ser uma
fogueira de
angústia para o
coração
acordado, além
da morte."
Você tem razão.
A ave, em pleno
céu, que se
visse
constrangida a
voltar à casca
do ovo, ou a
árvore
luxuriante que
fosse obrigada a
retornar para a
cova de lodo,
sofreriam menos
que a alma
desencarnada,
sob a intimação
de regresso às
perigosas
infantilidades
da experiência
humana.
Em tais
circunstâncias,
laços mais
pesados nos
religam o
espírito, com
mais
intensidade, à
gleba da carne,
e a voz dos
nossos
julgadores, não
raro, nos
converte os
ouvidos em
receptores
gigantescos para
os quais
convergem todos
os apontamentos
justos ou
injustos de
quantos nos
apreciam a
conduta e as
decisões.
Você já pensou
num homem, cujo
corpo seja uma
chaga viva,
tangido
violentamente
por milhares de
mãos
descaridosas e
rudes?
Esse é o símbolo
pálido com que
ousamos
qualificar o
suplício do
infortunado que
lega aos
contemporâneos
as recordações
da própria
viagem pela
Terra, quando
essas memórias
se referem às
situações que
fazem o inferno
dos seus
semelhantes.
Fustigado por
reclamações e
acusações
infindáveis, o
morto-vivo, com
a infelicidade
desse jaez,
sofre golpes
desapiedados, a
torto e a
direito, à
maneira de um
ferido na praça
pública,
visitado pelos
sopapos e pelos
impropérios de
toda gente.
E você não
calcula o que
seja o martírio
trazido pela
impossibilidade
de qualquer
esclarecimento
digno!
Falar ou
escrever
levianamente é
expor-se a ouvir
o pronunciamento
da insensatez; e
por mais que o
delinquente do
verbo falado ou
da letra
reprovável se
proclame
arrependido e
diferente, mais
a crueldade o
toma de assalto,
esbofeteando-lhe
o rosto
amarrotado e
disforme, sem
que lhe seja
facultada a
mínima frase de
defesa.
Efetivamente,
enquanto nos
demoramos na
carne, é
impossível
imaginar o que
seja isso.
É o desespero
impotente
daquele que, em
vão, deseja
fazer-se
compreendido, é
a sede
inestancável de
entendimento, é
o pranto
amargurado de
quem observa o
incêndio no
próprio lar, sem
uma gota d'água
para extinguir a
chama
destruidora.
A figura de
Ugolino, o
famoso chefe de
Pisa,
encarcerado na
torre da fome, a
devorar as
vísceras mortais
dos próprios
filhos, e que
foi encontrado
por Dante nos
recôncavos do
Estige, é, de
alguma sorte, a
única imagem
para o confronto
analógico, nos
casos a que nos
reportamos,
porque realmente
ilhados na
solidão de nós
mesmos, entre o
pesadelo e o
remorso de não
termos sido o
que devíamos
ser, somos
obrigados a
tragar os
detritos de
nossas próprias
obras.
Creia você que,
em verdade, tudo
isso é terrível
e doloroso, de
vez que o
arrependimento
irremediável nos
transforma em
duendes
infortunados, em
aflitiva
peregrinação.
Não admita,
porém, que isso
seja apenas
lamentável
privilégio de
alguns.
Não é necessário
fixarmos
reminiscências
da Terra, em
bronze ou papel,
para que a vida
nos revele aos
outros tais
quais somos.
Trazemos conosco
o arquivo que
nos é próprio.
Sentimentos e
ideias, palavras
e ações são
marcas em nossa
alma.
Todos
alcançaremos o
plano em que
nosso espírito é
um livro aberto.
Intenções
ocultas,
interferência
nos destinos
alheios,
assaltos
disfarçados à
felicidade do
próximo, crimes
consagrados pela
admiração do
mundo, misérias
íntimas e
desequilíbrios
morais aparecem
claramente,
espantando a nós
mesmos, que não
suspeitávamos,
de leve, da
nossa própria
degradação.
Você que conhece
tão bem o
assunto, cuide
dos seus passos
e vele pelo
futuro de sua
alma eterna,
porque a
existência, meu
caro, seja onde
for, é sempre um
livro que o
nosso coração
anda escrevendo.
Do livro
Sentinelas da
Luz, obra
mediúnica
psicografada
pelo médium
Francisco
Cândido Xavier.