Pureza engessada
Seguem fatos
lamentáveis. Têm a ver
com a falta de traquejo
de alguns espíritas em
serem acolhedores com –
pasmem! – espíritas
provenientes de outros
centros ou cidades.
Era o ano de 2010, a
Cia. de teatro da União
Municipal Espírita de
Petrópolis (Umep),
centro do qual eu faço
parte há mais de 30
anos, iria apresentar,
num teatro da Tijuca,
bairro da Zona Norte do
Rio de Janeiro, a peça
teatral Quero Voltar
para Casa, obra mais
importante do nosso
repertório.
Escrita pela atriz
paulista Flora Geny,
Quero Voltar para Casa
me foi dada de
presente pelo marido
dela, o também ator
Dionísio Azevedo, no
início dos anos 1990.
Ambos já faleceram.
A peça conta a história
de cinco pessoas que
acordam numa
aconchegante pousada
depois de sofrerem
graves acidentes de
carro. Lá, são tratadas
com muito carinho. No
entanto, da pousada não
conseguem sair. Querem
voltar para suas vidas,
seus compromissos, mas
simplesmente não
encontram o caminho de
volta. Ajudadas pelo
administrador da
pousada, os cinco
hóspedes, à medida que
se adaptam ao lugar e se
unem para raciocinar
juntos, vão, cada um à
sua vez, descobrindo o
real sentido do local
que os acolhe.
Estreamos com uma
minitemporada na Umep em
1992. Sucesso total. Em
1993, mais apresentações
bem-sucedidas. Mas como
éramos amadores, não
mais a encenamos à
época. Só retomamos o
trabalho em 2001, quando
a Cia. de teatro já
estava estabelecida de
forma regular e com
novos elementos. Anos
depois, com a chegada de
Vagner Souza, diretor
teatral e produtor
cultural, ao movimento
espírita de Petrópolis,
a peça ganhou contornos
profissionais. Partimos,
então, para
apresentações em locais
públicos e em cidades
vizinhas. Sucesso
novamente. Teatros
lotados, e por muita
gente não espírita, é
bom ressaltar. Todos
saem tocados. Riem,
choram e lavam a alma.
Nas palavras de Jayme
Lobato – escritor,
palestrante e produtor
do programa Semeando
Ideias, da Rádio Rio
de Janeiro –, Quero
Voltar para Casa
“traz a Doutrina
Espírita, sem falar
nela, para os dias de
hoje, o que é muito bom”.
E segundo Izaura Hart,
amiga espírita de longa
data e apresentadora do
programa Estudo
Sistematizado, da
mesma rádio, a peça é
“um misto de risos e
lágrimas, de lição e
consolo, além de mostrar
na prática o que os
livros espíritas
ensinam”. E segundo
Humberto Portugal, que
durante dez anos foi
dirigente da área de
assuntos externos do
Conselho Espírita do
Estado do Rio de Janeiro
(Ceerj), trata-se de
"um espetáculo que
emociona e arrebata,
trazendo consolo,
conhecimento e paz. Para
ver e rever... sempre”.
Pois bem. Munido de
grande entusiasmo e de
farto material de
divulgação, fui aos
centros espíritas da
Tijuca e arredores
divulgar a peça. Aí,
pude atestar como o
movimento espírita ainda
é engessado.
Como eu não conseguiria
percorrer todos os
centros da região,
pensei em enviar o
material por correio e
com uma carta explicando
o teor da peça. De um
dos centros, recebi uma
mensagem dizendo que o
material, antes de ser
divulgado, seria
submetido à apreciação
dos titulares na próxima
reunião de diretoria,
que aconteceria em
meados do mês seguinte.
Argumentei que, até lá,
a temporada que faríamos
– três finais de semana
seguidos – já estaria na
reta final. Acrescentei,
ainda, que se tratava de
um grupo proveniente de
um centro espírita com
mais de 60 anos; que eu
tinha, à época, 26 anos
de Espiritismo e que era
cria de pessoas
conhecidas do movimento
espírita do RJ. Em vão.
A aprovação para
divulgar o trabalho só
viria depois da análise
do baixo clero daquela
instituição. Falei para
a pessoa esquecer o
assunto. E como deduzi
que talvez enfrentasse o
mesmo problema em outros
centros caso enviasse o
material por correio,
resolvi que daria
atenção às instituições
onde eu conseguiria ir
pessoalmente.
Em uns, fui muito bem
recebido.
Identifiquei-me e pude
divulgar o trabalho à
vontade. Em outros fui
tratado com ressalvas.
Eu poderia somente
distribuir os panfletos
no saguão do centro
espírita. Já em outros,
recebi autorização
somente para deixar as
filipetas em cima do
balcão de informações,
mas não poderia dar um
pio. E houve também
centros em que fui
tratado como intruso.
Não poderia divulgar
nada lá dentro e pronto!
Para esses, disse
cordial e taxativamente
que iria para a porta do
centro, na calçada.
Afinal, a rua é pública.
Nela, ninguém da
diretoria poderia me
incomodar. E lá fui eu
panfletar e falar em
alto e bom som o nome e
o teor da peça em plena
rua. Resultado: sessões
lotadas, apesar do gesso
que muitos espíritas
insistem em envolver a
si próprios e às casas
que dirigem.
Confesso que fiquei
surpreso com a recepção
fria que tive em algumas
casas espíritas.
Esperava um misto de
fraternidade,
acolhimento, entusiasmo
e alegria cristã. Não
foi o que sempre
aconteceu.
O mais gritante episódio
envolvendo Quero
Voltar para Casa
ocorreu, no entanto,
quando recebi o
telefonema de um jovem
de uma cidade mineira.
Ele havia ouvido falar
da Cia. de teatro da
Umep e queria
informações, trocar
experiências etc.
Conversa vai, conversa
vem, falei da
possibilidade de
apresentarmos a peça em
sua cidade. Ele, então,
reiterou que, se a
apresentação fosse num
dos centros espíritas, o
texto teria de ser
enviado antes para
análise da diretoria.
Para que ele disse isso?
Confesso que fiquei
danado da vida.
Retruquei, aborrecido,
que preferíamos, como de
hábito, apresentar a
peça num local público e
fazermos a divulgação na
calçada, caso os centros
espíritas não
concordassem em nos
ajudar. Outro baixo
clero dando uma de
censor, e para cima de
uma peça teatral
consagrada, era o auge
da pretensão e um pouco
demais para mim. Até
hoje penso no susto que
minha indignação deve
ter dado naquele rapaz.
Pelo que depreendi, cada
centro espírita se julga
o único portador do
verdadeiro Espiritismo.
Qualquer pessoa ou
trabalho espírita que
venha de outro local é
visto como um alienígena
que precisa, antes, ser
submetido à apreciação
das supremas autoridades
em Doutrina Espírita que
só aquele determinado
centro possui. É a tal
da pureza doutrinária,
termo que incomoda a mim
e a muitos amigos
espíritas. Em nome dela,
profitentes da mesma
religião, em vez de
cooperarem uns com os
outros, atrapalham-se
porque desconfiam uns da
procedência dos outros.
Pureza engessada,
portanto.
Acho prejudicial esse
tipo de mentalidade.
Afinal, se um
palestrante ou grupo
artístico de Belo
Horizonte, por exemplo,
é impedido de divulgar
seu trabalho nos centros
espíritas de Curitiba,
onde irá se apresentar,
a quem ele recorrerá,
além dos veículos de
comunicação locais? Às
igrejas católicas? Aos
templos evangélicos?
Claro que recorrerá aos
grupos espíritas, desde
que esses não coloquem
barreira por
desconfiarem da
qualidade doutrinária do
que será apresentado.
Quando publiquei
Inquietações de um
Espírita, meu
primeiro livro, Iracema
e Tupinambá, casal de
amigos espíritas da
Cidade Maravilhosa e
donos de uma livraria
espírita, sugeriram ao
presidente do centro do
qual fazem parte que me
chamassem para uma
palestra e sessão de
autógrafos. A resposta
foi negativa. Alegação:
– Ah, ninguém conhece
ele. Ué? Então passe
a conhecer! Não só a
mim, mas a outros tantos
companheiros de ideal
que estão desenvolvendo
trabalhos
interessantíssimos, mas
não são chamados para ir
ali ou aqui porque o
baixo clero do local,
guardião absoluto da
pureza doutrinária
engessada, não conhece
A, B ou C. Mas como não
quer se dar ao trabalho
de conhecer, alega que
ninguém conhece.
Transfere um preconceito
individual para um
pronome indefinido
chamado ninguém.
Pouco antes de publicar
Inquietações de um
Espírita, eu já
havia feito palestra em
um centro no bairro
carioca do Meier. Depois
que o livro saiu, os
convites espocaram. Já
divulguei meu trabalho
em vários grupos
espíritas da capital e
do interior do RJ e
também em SP e MG. Nunca
mais soube se o Tupi e a
Iracema tentaram
emplacar meu nome no
centro deles. Mas
provavelmente a resposta
deve ser a mesma ainda:
Ah, ninguém conhece
ele.
Ser escritor espírita é,
aliás, um bom ensejo
para constatar como esse
ardor em defender a
suposta pureza
doutrinária vem
engessando o movimento
espírita.
O pessoal da minha
editora comentou comigo
que, há um tempo, um
clube do livro espírita
encomendou 500
exemplares de meu
segundo título – O
Espiritismo é Pop.
Em seguida, informou que
o terceiro –
Provocações Doutrinárias
– estava sendo analisado
pelo mesmo clube para,
posteriormente, ser
oferecido aos sócios. É
claro que fiquei feliz
com a notícia.
Escritores querem ser
lidos, comentados etc.
Recentemente, fiquei
sabendo que um grande
centro espírita do RJ
está pensando em me
convidar para um café
literário. É uma
atividade regular que a
instituição realiza. Só
que, antes de
formalizarem o convite,
estão analisando meus
livros. Fiquei feliz
novamente pelo interesse
em minha obra. Só que,
ao mesmo tempo, em ambos
os casos veio junto uma
ponta de incômodo. Será
que o fato de eu ter 30
anos de movimento
espírita, três obras
publicadas até agora e
por uma editora
conceituada não são
elementos suficientes
para referendar minha
obra? Para que
submetê-la a tantas
análises? Será que o
clube do livro e o
centro do café literário
não confiam no que a
minha editora publica?
Para que tanta filtragem
assim? Será que o meu
Espiritismo é
incompatível com o
Espiritismo alheio? Mas
não é tudo Doutrina
Espírita?
Sei que deve haver
cuidado devido ao fato
de muitos escritores que
se dizem espíritas
estarem publicando obras
com erros doutrinários.
Em contrapartida, não
acho de bom tom
desconfiarmos de
editoras que há anos
primam por um trabalho
sério e cuidadoso. Esse
excesso de zelo pode
transformar todos nós em
donos da verdade
espírita, a ponto de
Joãozinho achar que só
ele e o pessoal do
centro dele entendem de
Doutrina Espírita e, em
nome da tal pureza,
dificultarem o trabalho
de espíritas de outras
regiões devido a
desconfianças
infundadas.
Termino esse capitulo
com uma história que meu
amigo Sidney Aride, de
Nova Iguaçu (RJ), me
contou. Um amigo dele, a
quem chamarei de Ciro,
mudou-se para outra
cidade por questões de
trabalho. Lá chegando,
procurou um centro
espírita e se
apresentou. Disse que
vinha de Nova Iguaçu,
onde frequentava a
instituição espírita XYZ
há 15 anos, exercendo
tarefas como aplicador
de passes, palestrante e
evangelizador de
mocidade. Sabe o que
fizeram com Ciro?
Mandaram-no se
matricular no Estudo
Sistematizado da
Doutrina Espírita (Esde),
curso de três anos
voltado para quem está
começando no movimento
espírita.
De nada adiantou Ciro
dizer que já havia feito
o Esde, tampouco sua
folha corrida. Naquele
centro, para trabalhar,
só depois de fazer o
Esde. Ciro achou melhor
procurar um centro de
mentalidade mais aberta,
onde foi aceito sem
engessamentos, e está lá
até hoje.
Sei que às vezes é
complicado aceitar de
cara alguém que já chega
pronto. Mas creio que,
num caso desses, o
dirigente deveria pedir
algumas referências a
Ciro, checá-las e, tão
logo confirmada a
procedência, integrá-lo
aos poucos às atividades
do local. Bem melhor do
que vê-lo como um
intruso a ser tratado
como iniciante porque
teve a petulância de
querer saber tanto de
Espiritismo quanto os
habitantes locais. E bem
melhor do que, em nome
da pureza doutrinária (e
engessada), jogar um
balde de água fria em
alguém de primeira linha
que chega para somar.