O menino mal-assombrado –
infância de Chico (parte I)
O pai, João Cândido Xavier,
balançava a cabeça e
resmungava. É louco!
A madrinha, Rita de Cássia,
reagia às alucinações do
menino com golpes de vara de
marmelo. Entre uma surra e
outra, enterrava garfos na
barriga do afilhado e
berrava: Este moleque tem o
diabo no corpo!
Nem o padre Sebastião
Scarzello conseguiu fazer de
Chico Xavier um garoto
"normal". Após as
confissões, preces e
penitências, Chico
tagarelava com a mãe já
morta, via hóstias
cintilantes na comunhão,
escrevia na sala de aula
textos ditados por seres
invisíveis e tornava-se,
assim, o assunto mais
exótico da cidade.
Na empoeirada e católica
Pedro Leopoldo, a 35
quilômetros de Belo
Horizonte, era difícil
encontrar quem apostasse na
sanidade de Chico Xavier.
Para espantar o diabo e
pagar os pecados, o garoto
seguia à risca as receitas
paroquiais. Chegou a
desfilar em procissão com
uma pedra de quinze quilos
na cabeça e a repetir mil
vezes seguidas a ave-maria.
Rezava e contava. Não foi
fácil. Um espírito
desocupado fazia caras e
bocas para atrapalhar seus
cálculos. Na igreja,
assombrações flutuavam sobre
os bancos e beijavam os
santos.
Chico divulgava estas e
outras histórias do outro
mundo para os adultos.
Resultado: mais surras e
mais risco de ser
transferido de Pedro
Leopoldo para Barbacena, a
capital dos hospícios. João
Cândido estudava com carinho
a hipótese de internar o
filho. Uma ideia antiga. A
Primeira Guerra Mundial
começava a assombrar o
mundo, e Chico já estava às
voltas com fantasmas. Uma
noite, seu pai conversava
com a mulher, Maria João de
Deus, sobre o aborto sofrido
por uma vizinha, e desancava
a moça.
O filho interrompeu o
julgamento e, do alto de
seus quatro anos, proferiu a
sentença: O senhor está
desinformado sobre o
assunto. O que houve foi um
problema de nidação
inadequada do ovo, de modo
que a criança adquiriu
posição ectópica.
Naquela casa pobre de Pedro
Leopoldo, a frase soava tão
fora de propósito quanto a
notícia de que, na longínqua
Europa, a Alemanha acabava
de declarar guerra à Rússia.
João Cândido arregalou os
olhos e balbuciou: O que é
nidação? O que é ectópica?
Chico não sabia. Tinha
repetido palavras sopradas
por uma voz. Os amigos da
família Xavier, aqueles que
desconheciam o discurso
médico feito pelo menino aos
quatro anos, arriscavam uma
explicação para as
alucinações de Chico: a
morte da mãe, quando ele
tinha cinco anos.
Maria João de Deus foi
embora cedo demais e, ao se
despedir, deixou em casa um
garoto ao mesmo tempo
magoado e impressionado.
Pouco antes de morrer, ela
pediu ao marido que
distribuísse os nove filhos
pelas casas de amigos e
parentes. Só assim João
Cândido, vendedor de
bilhetes de loteria,
conseguiria viajar pelas
cidades vizinhas em busca de
dinheiro. No pé da cama onde
a mãe agonizava, atormentada
por crises de angina, Chico
cobrou:
- Por que a senhora está
dando seus filhos para os
outros? Não quer mais a
gente, é isso?
Maria explicou que iria para
o hospital e garantiu com
voz firme: Se alguém falar
que eu morri, é mentira. Não
acredite. Vou ficar quieta,
dormindo.
E voltarei.
Chico acreditou. No dia
seguinte, a mãe morreu e
João Cândido entregou à
madrinha, Rita de Cássia, um
menino com ideias estranhas.
Do livro: As vidas de
Chico Xavier, de Marcel
Souto Maior.
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