Modéstia
e
ostentação:
análise
de um
parágrafo
A
virtude
da
modéstia
é
tratada
diretamente
no
capítulo
XIII de
O
Evangelho
segundo
o
Espiritismo.
Além da
citação
dos
versículos,
existem
sete
itens da
lavra de
Kardec.
O item
no qual
ele dá
início à
sua
análise
é o de
número
3. Este
item
inicial
tem uma
enorme
importância,
porque é
onde ele
demarca
o tema e
o
problema
a ser
analisado.
Dentro
dele,
Kardec
começa
com um
parágrafo
altamente
sintético,
onde
introduz
o objeto
do
estudo.
O
primeiro
parágrafo
é
essencial
para
entender
todos os
textos
restantes,
dele e
dos
Espíritos,
assim
como o
sentido
mais
profundo
da
questão
colocada.
O
coautor
da
Doutrina
Espírita,
como
exímio
escritor
que era,
redigiu
uma
pequena
e
didática
síntese
inicial,
porém
muito
esclarecedora:
“Em
fazer o
bem sem
ostentação
há
grande
mérito;
ainda
mais
meritório
é
ocultar
a mão
que dá;
constitui
marca
incontestável
de
grande
superioridade
moral,
porquanto,
para
encarar
as
coisas
de mais
alto do
que o
faz o
vulgo,
mister
se torna
abstrair
da vida
presente
e
identificar-se
com a
vida
futura;
numa
palavra,
colocar-se
acima da
humanidade,
para
renunciar
à
satisfação
que
advém do
testemunho
dos
homens e
esperar
a
aprovação
de Deus.
Aquele
que
prefere
ao de
Deus o
sufrágio
dos
homens
prova
que mais
fé
deposita
nestes
do que
na
divindade
e que
mais
valor dá
à vida
presente
do que à
futura.
Se diz o
contrário,
procede
como se
não
cresse
no que
diz”
[1].
O
parágrafo
é
baseado
em três
contraposições
principais,
na forma
de
termos
antitéticos,
que são:
modéstia/ostentação,
vida
presente/vida
futura e
aprovação
humana/aprovação
divina.
Estas
antíteses
são
conexionadas
por um
movimento
de
passagem,
no qual,
ao se
alcançar
uma
ter-se-á
alcançado
as
outras
duas.
Assim,
quem
entendeu
a “vida
futura”
procura
praticar
a
modéstia
e por
isso
busca
apenas a
“aprovação
divina”.
A tese
de
Kardec é
que a
modéstia
é uma
manifestação
de
superioridade
moral, e
por
decorrência,
a
ostentação
é o seu
inverso.
O
problema
principal
para o
qual o
parágrafo
aponta é
a
necessidade
da
transformação
das
perspectivas
humanas
a
respeito
da vida
para que
a
modéstia
seja
valorizada,
em vez
da
ostentação.
Quer
dizer,
pode-se
entender
o
conceito
de “vida
futura”
e sua
antítese,
porém,
realizar
a
mudança
de
perspectiva,
exige
uma
renovação
pessoal.
Antes de
entrarmos
na
análise
das
posições
antitéticas
e do
movimento
de
passagem,
façamos
uma
exploração
dos
principais
termos
utilizados.
A
maioria
dos
dicionários
diz que
“ostentação”
é o ato
ou
efeito
de
ostentar,
ou seja,
é
“trombetear”
ou fazer
alarde,
fazer
barulho
para
chamar a
atenção,
é pompa,
é
aparato,
é luxo,
é
vanglória,
é
magnificência,
é
exaltação;
enfim,
ostentar
é
colocar
algo em
evidência,
com o
objetivo
de que
seja
visto
por
outras
pessoas.
A não
ostentação
significa
que não
se faz
alarde
ou não
se
coloca
em
evidência
alguma
coisa,
embora
possa
ser
vista.
Apesar
de os
termos
“não
ostentar”
e
“ocultar”
à
primeira
vista
apresentarem
conotação
semelhante,
não são
idênticos.
Este
significa
encobrir,
tapar,
não
deixa
ver,
esconder,
sonegar,
calar,
disfarçar,
simular,
não
revelar.
Nele há
uma
intenção
nítida
de
impedir
que algo
seja
visto,
enquanto
aquele
significa
que algo
não é
escondido,
mas
também
não é
exposto
ostensivamente.
Quem
oculta
algo
certamente
não o
está
ostentando,
contudo,
a não
ostentação
de algo
não quer
dizer
que
esteja
sendo
ocultado.
O termo
“modéstia”,
embora
não
tenha
sido
utilizado
no
parágrafo,
inequivocamente
é o
antônimo
de
ostentação.
O “não
ostentar”,
bem como
o
“ocultar
a mão
que dá”,
referem-se,
portanto,
à
modéstia.
Superior
é algo
que está
mais
elevado,
mais
acima,
algo de
excelente
qualidade.
Superioridade
é a
qualidade
de algo
excelente,
algo que
atingiu
o mais
alto
nível ou
padrão
de
acordo
com um
determinado
referencial.
Superioridade
moral é,
portanto,
a
qualidade
de quem
atingiu
o mais
alto
nível
espiritual.
Se
ocultar
a mão
que dá é
marca
incontestável
de
grande
superioridade
moral,
então, a
virtude
da
modéstia
é
moralmente
superior
à
ostentação
do bem
que se
faz e,
contrariamente,
ostentar
é marca
de
inferioridade
moral.
Existem
termos
cujo
significado
somente
é
entendido
em
correlação
com
outros
termos.
Por
exemplo:
pai e
filho.
Alguém
só é pai
porque
gerou um
filho, e
alguém
só é
filho
porque
foi
gerado
por um
pai.
Seria
inexplicável
logicamente
a
situação
de
alguém
que
fosse
pai sem
ter um
filho.
No caso
em que
aqui
tratamos
a
situação
é
idêntica
aos
termos
abstrato
e
concreto.
A
abstração
somente
pode ser
realizada
a partir
de algo
concreto,
de forma
que
ambos os
termos
são
correlativos.
O termo
“concreto”
tem sua
origem
no latim
“concretus”,
que
significa
misturado,
fundido,
composto,
combinado,
juntado.
O
concreto
de que
aqui se
trata
não é
necessariamente
a coisa
física,
corpórea,
sólida.
A
concretude
pode ser
identificada
mesmo no
espírito,
que não
é
matéria,
pois
nele
estão
inerentes
a
inteligência,
o
pensamento,
e outras
faculdades;
isto é,
a
inteligência
está de
tal
maneira
misturada
com o
espírito
que é
impossível
imaginá-lo
sem ela.
Já,
“abstração”
é termo
latino “abstractus”
ou “abstrahere”,
cujos
significados
são:
retirado,
“retirado
de”,
extraído,
isolado,
distante.
Em
lógica,
abstrair
é o ato
de
isolar
mentalmente
as
propriedades
ou
relações
de um
objeto,
da sua
essência,
para
considerar
em
separado
estes
elementos
que são
dados
concretamente
na
realidade.
É um
desligar-se
da
realidade
concreta
para
alcançar
uma
realidade
abstrata.
Por
exemplo,
o
conceito
de
cavalo é
uma
abstração,
pois
somente
considera
o que é
comum a
todos os
cavalos,
reais,
corpóreos.
Quando
se
percebe
certa
virtude
em uma
pessoa,
e
pensa-se
somente
nesta
virtude,
sem
considerar
os
aspectos
essenciais
da
pessoa,
isto é,
o
conjunto
de
traços
que
compõem
e
determinam
esta
pessoa,
estar-se-á
abstraindo.
Adicionalmente
ao seu
significado
etimológico
original,
o termo
“abstrair”
carrega
consigo
fortes
cargas
semânticas
derivadas
de
concepções
filosóficas
variadas,
que
foram
desenvolvidas
no
decorrer
dos
tempos.
No
parágrafo
em
questão
avultam
os
significados
dos
termos
abstrato
e
concreto,
embora
este não
tenha
sido
citado
pelo
codificador.
Concreto,
no
contexto
do
parágrafo,
seria um
sinônimo
daquilo
que é
percebido
pelos
sentidos,
diretamente
observado,
algo que
seria,
assim,
passageiro,
transitório;
já,
abstrato
seria
sinônimo
de tudo
que é
permanente,
duradouro,
imperecível.
Da
abstração
surgem
os
conceitos,
que
sintetizam
numa
unidade
a
diversidade
dos
seres[2].
Cabe
aqui
outro
esclarecimento.
O termo
conceito
tem
também
origem
latina:
vem de “capio”
e de “ceptum”,
e quando
unidos
ao termo
“cum”
(com)
formam o
cumceptum,
ou
“conceito”,
o que é
captado,
apreendido
junto.
Assim,
conceito
é a
apreensão
simples,
a
primeira
operação
do
Espírito,
é o ato
pelo
qual
este
capta,
cognitivamente,
alguma
coisa.
Mas de
onde ele
capta? O
Espírito
capta o
que é
genérico,
o que é
comum
nos
objetos
de uma
determinada
classe e
o traduz
como um
conteúdo.
Neste
estão
implícitas
as notas
comuns a
todos os
objetos
da
classe
objeto
da
atenção.
O
Espírito
realiza
a
abstração
para
formar o
conceito
somente
daquilo
que há
de comum
com os
outros
objetos,
quer
dizer,
somente
é
abstraída
uma
determinada
propriedade
que os
outros
objetos
também
possuem
para
inserir
numa
classe o
conceito,
enquanto
outras
são
colocadas
de lado.
Por
exemplo,
ao
dizer-se
que o
“carro
x” é um
automóvel,
se leva
em conta
que ele
é
possuidor
de
certos
atributos
que o
colocam
na
classe
dos
automóveis,
ou seja,
dos
objetos
que têm
a
capacidade
de se
automoverem,
pois têm
uma
fonte
interna
de
movimento.
Neste
caso não
podemos
afirmar,
por
exemplo,
que uma
carroça
seja um
automóvel,
porque a
sua
fonte de
movimento,
seu
motor, é
externa,
dependente
de um
animal,
o
cavalo.
Os
termos
“concreto”
e
“conceito”
não
foram
utilizados
por
Kardec
no
parágrafo
estudado,
no
entanto,
a
compreensão
deste
ficaria
prejudicada
caso não
os
esclareçamos,
porquanto
fazem
parte da
rede
semântica
dos
termos
que
procuramos
explicitar.
Identificação
é o
processo
de
encontrar
pontos
de
igualdade
entre
pelo
menos
dois
objetos;
é também
reconhecer
alguma
coisa
como
pertencendo
à
determinada
classe.
No que
tange ao
plano
existencial
do ser
humano,
a
identificação
remete à
questão
de
determinar
quem
somos?
Quem sou
eu? E,
quem é o
outro?
Outros
significados
para o
termo,
embora
incomuns,
no plano
psicológico,
seriam o
de
assimilação
e o de
integração.
Haverá
identificação
quando,
por
exemplo,
um
indivíduo
assimila
determinada
ideia; o
individuo
está
integrado
numa
ideia
quando a
compreende
completamente
e passa
a agir a
partir
dela.
Vida
presente
e vida
futura
são dois
conceitos
muito
utilizados
por
Kardec e
de
suprema
importância
para
entender
todo o
significado
moral da
necessidade
da
modéstia.
Na
verdade
são dois
termos-chave.
Para
Kardec,
“Vida
Futura”
é a vida
após a
morte, e
“Vida
Presente”
é a vida
na
matéria,
vida
corpórea.
O
conceito
de “Vida
Futura”,
segundo
Kardec,
é o eixo
sobre o
qual
giram os
ensinos
de
Jesus.
Este
conceito
está
firmemente
assentado
como
princípio
cardeal,
na
seguinte
passagem:
Por
essas
palavras
Jesus
claramente
se
refere à
vida
futura,
que
ele
apresenta,
em todas
as
circunstâncias,
como a
meta a
que a
Humanidade
irá ter
e como
devendo
constituir
objeto
das
maiores
preocupações
do homem
na Terra.
Todas as
suas
máximas
se
reportam
a esse
grande
princípio.
Com
efeito,
sem a
vida
futura
nenhuma
razão de
ser
teria a
maior
parte
dos seus
preceitos
morais,
donde
vem que
os que
não
creem na
vida
futura,
imaginando
que ele
apenas
falava
na
vida
presente,
não os
compreendem,
ou os
consideram
pueris.
Esse
dogma
pode,
portanto,
ser tido
como o
eixo
do
ensino
do
Cristo,
[...]. É
que ele
tem de
ser o
ponto de
mira
de todos
os
homens;
só ele
justifica
as
anomalias
da
vida
terrena
e se
mostra
de
acordo
com a
justiça
de Deus.[3]
(Todos
os
grifos
são
nossos.)
Podemos
ver
nesta
citação
que a
“vida
presente”
é a
“vida
terrena”,
a vida
do homem
enquanto
está
encarnado,
na
Terra.
Em
outros
momentos
Kardec
se
refere à
terrena
também
como
“vida
corpórea”.
Contudo,
a vida
futura é
o alvo
(ponto
de mira)
para o
qual os
homens
devem
dirigir
suas
atenções.
A
importância
do
conceito
“vida
futura”
reside
na sua
posição
de
“grande
princípio”,
ou seja,
o
princípio-eixo,
em torno
do qual
todos os
outros
se
movimentam.
É o
princípio
com os
quais os
ensinos
de Jesus
estão
vinculados,
pois sem
ele
todos os
preceitos
morais
exarados
pelo
Mestre
não
teriam
sentido.
É este o
motivo
pelo
qual
Kardec
afirma
que a
vida
futura
tem de
ser o
alvo das
atenções
dos
homens
enquanto
entes
encarnados.
Somente
com o
entendimento
deste
princípio
é que os
preceitos
morais
se
tornam
claros.
Evidente,
desse
modo,
que o
entendimento
do
preceito
moral da
modéstia
não
teria
sentido
sem o
perfeito
entendimento
do
conceito
de “vida
futura”.
Substancialmente
consideradas,
Kardec
deixa
transparecer
que há
uma
tensão
entre a
“vida
terrena”
e a
“vida
futura”,
tensão
resultante
da
atribuição
de valor
positivo
a uma e
não a
outra.
Isso
decorre,
em
parte,
de que
na vida
terrena
temos a
predominância
da
transitoriedade
de quase
tudo, da
fugacidade,
da
impermanência,
enquanto
na vida
futura
prepondera
a
permanência.
Portanto,
dar
atenção
à vida
terrena
será
valorizar
o
transitório,
ao passo
que
dirigir
e fixar
a
atenção
à vida
futura
será
valorizar
o que é
permanente.
Como a
vida
permanente
é
somente
a
futura,
e onde
nossa
consciência
se
desnuda
completamente,
olhar
atentamente
para
ela, e
compreendê-la,
desde a
vida
presente,
faz com
que
mudemos
nossa
maneira
de agir.
Todavia,
isso
requer
ingentes
esforços.
A última
antítese
é a que
envolve
o agente
da
aprovação,
se são
os
homens
ou a
divindade.
Testemunho
é a
declaração
de uma
testemunha.
Quando
Kardec
utiliza
o termo
“Testemunho
dos
homens”
refere-se
à
aprovação
social
dada a
um ato
de
bondade
executado
por uma
pessoa
qualquer.
Este
termo
contrapõe-se
ao de
“Aprovação
de
Deus”.
De uma
maneira
simplificada,
podemos
afirmar
que a
aprovação
divina
corresponde
à
aprovação,
pela
consciência
moral do
homem,
dos atos
praticados.
Apesar
de
parecer
menos
importante,
esta
distinção
desempenha
uma
função
relevante,
porquanto
estão
implícitos
nestes
termos a
questão
do lugar
dos
nossos
valores.
Dependendo
de quem
esperamos
aprovação
aos
nossos
atos,
manifestamos
nossa
visão da
vida, e
por
decorrência,
nossa
posição
na
escala
moral.
A
satisfação
moral é
uma
consequência
dos atos
morais
que
praticamos.
Queremos
sempre
encontrar
satisfação
neles.
Na
verdade,
esperamos
pela
satisfação
como um
resultado
imediato
dos atos
supostamente
bons que
praticamos.
A
questão
que a
envolve
é que a
aprovação
social é
quase
imediata,
mas nem
sempre
reconhece
o
verdadeiro
mérito,
enquanto
a
aprovação
divina
pode
tardar
além da
nossa
vontade
de
esperar,
porém
está
sempre
vinculada
ao
mérito
verdadeiro.
No caso
da
aprovação
divina
há um
hiato de
tempo
entre o
ato e a
satisfação
plena.
Nossa
imperfeição
torna-nos
ansiosos
pela
aprovação
da
sociedade,
o que
nos leva
à
ostentação
da
beneficência
praticada,
enquanto
a
satisfação
plena
somente
será
alcançada
quando
chegarmos
à vida
futura.
Com
nossa
consciência
livre
das
restrições
da
matéria
poderemos
analisar
com mais
rigor o
quanto
nossos
atos
foram
bons ou
não, e
usufruir
com mais
vigor a
satisfação
decorrente
da
realização
do bem.
Explicados
cada um
dos
termos
antitéticos,
daremos
continuidade
em outra
oportunidade
à
análise
deste
parágrafo,
explicitando
os
movimentos
internos
dos
conceitos.
[1] Kardec, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. XIII. Fazer o bem sem ostentação – item 3. p. 220. Ed. 100. Tradutor: Guillon Ribeiro. FEB. Brasília, DF.
[2] Muito mais teríamos a dizer sobre este tema. Seria interessante que outros estudiosos pesquisassem os diversos significados dos termos concreto e abstrato e deslindassem a carga semântica que cada filosofia lhes atribui. Por exemplo, Platão “aumentava” a realidade da entidade abstraída, enquanto Aristóteles a “diminuía”. Na filosofia tomista distingue-se entre abstração total e abstração formal. Segundo Ferrater Mora, os escolásticos atuais distinguem três graus da abstração formal. A par do sentido em que Kardec os utiliza, sabemos que no sentido cristão tradicional a abstração estaria relacionada ao desprezo pela “carne”, ou seja, pelo corpo físico e pelos seus sentidos. Será que no Espiritismo o significado seria igual? O presente artigo não comporta tal estudo.
[3] Kardec, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Cap. II. Meu reino não é deste mundo. A vida futura – item 2. p. 67. Ed. 100. Tradutor: Guillon Ribeiro. FEB. Brasília, DF.