O menino mal-assombrado –
infância de Chico (parte II)
Depois do enterro de Maria
João de Deus, em 29 de
setembro de 1915, o garoto
teve que esticar as pernas
para acompanhar a madrinha.
Na volta do cemitério, ela
não encurtou os passos para
andar de mãos dadas com o
afilhado, como fazia a mãe
dele. Ofegante. o menino
alcançou Rita, mas o esforço
foi um desperdício. Sua mão
ficou balançando a procura
dos dedos da madrinha.
Ainda hoje sinto no braço a
sensação do vazio, da
procura inútil lamentou
Chico, 65 anos depois, já
conformado. Foi minha
educadora!
Se a dor ensina, Rita de
Cássia foi mesmo uma
professora exemplar. Chico
Xavier recebeu aulas diárias
durante os dois anos em que
morou com ela e o marido, o
comerciante José Felizardo
Sobrinho, sempre ausente.
Logo nos primeiros dias,
enfrentou o primeiro teste.
Bastou uma ida ao banheiro
para encontrar, na volta, a
cama ensopada de urina.
A madrinha perguntou o que
tinha acontecido. Chico, sem
culpa no cartório e com a
cabeça cheia de sermões
católicos, nem titubeou.
Jogou a culpa no diabo. A
surra foi demorada. Ele nem
imaginava, mas o responsável
pela sujeira tinha sido seu
vizinho de cama, Moacir, de
doze anos, sobrinho tratado
como filho por Rita. O
garoto tinha derramado um
penico sobre o lençol.
Chico apanhava e queria
rezar. Aos cinco anos, já
sabia o pai-nosso de cor.
Foi criado em meio a preces.
Quando ele tinha dois anos,
Maria João de Deus já
apontava o céu estrelado e
dizia: Foi Deus quem fez
tudo isso.
Às vezes, exibia um retrato
de Jesus e alertava: A maior
ofensa que podemos fazer à
nossa consciência é negar a
existência de Deus. A mãe
reunia os filhos para a
oração da noite, confessava
aos sábados, comungava aos
domingos.
Na casa da madrinha, as
rezas eram raras e as
surras, fartas.
Numa delas, Rita se empolgou
e enfiou com força demais o
garfo na barriga do
afilhado. A ferida demorou a
cicatrizar e, para evitar o
atrito da pele com a roupa,
a madrinha obrigou o menino
a usar uma espécie de
camisola conhecida como
mandrião, vestida por
meninas e confeccionada com
tecido de ensacar farinha.
Para piorar, o pano ainda
tinha listras azuis. Os
vizinhos se divertiram com a
fantasia. Nos anos 50, foi
apontado por alguns amigos
como o precursor da moda
saco, um sucesso na época.
O menino não conseguia achar
graça. Chorava muito e só
tinha sossego quando a
madrinha tomava o rumo da
estação para ver o trem de
luxo passar. Ela adorava
admirar os passageiros da
primeira classe. Tão
chiques, tão belle époque.
Numa das escapadelas de
Rita, Chico correu para o
quintal e se ajoelhou
embaixo de uma bananeira.
Repetia o pai-nosso quando,
de repente, viu na sua
frente Maria João de Deus.
Até que enfim. Ela cumpriu o
prometido. Adeus surras e
garfos.
Chico se agarrou à
recém-chegada e pediu
socorro. Carregue-me com a
senhora, não me deixe aqui,
eu estou apanhando muito!
A aparição desfez as ilusões
do desesperado.
- Tenha paciência. Quem não
sofre não aprende a lutar.
Se você parar de reclamar e
tiver paciência, Jesus
ajudará para que estejamos
sempre juntos. Em seguida,
evaporou. Chico ficou ali,
no quintal, sozinho,
gritando pela mãe.
Daquele dia em diante,
apanhou calado, sem chorar,
para desespero da madrinha,
que adotou um novo grito de
guerra: Além de louco, é
cínico!
O menino se defendia da
acusação com um argumento
absurdo. Toda vez que
suportava as surras em
silêncio, com paciência, via
sua mãe. A vara de marmelo
zunia, Chico engolia o choro
e depois se refugiava no
quintal para ouvir os
surrados conselhos maternos:
era preciso sofrer
resignado, era fundamental
obedecer sempre, porque logo
um anjo bom apareceria para
ajudá-lo. E o menino ficava
esperando...
Do livro: As vidas de
Chico Xavier, de Marcel
Souto Maior.
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