O menino mal-assombrado –
infância de Chico (parte
III)
Numa tarde, a "educadora"
Rita de Cássia brindou o
aluno com uma prova
surpresa. Moacir, primo de
Chico, apareceu com uma
ferida na perna esquerda.
Fleming ainda não tinha
descoberto a penicilina e o
machucado não cicatrizava.
A madrinha, preocupada com o
sobrinho, mandou chamar dona
Ana Batista, uma benzedeira
de Matuto, hoje Santo
Antônio da Barra, cidade
vizinha de Pedro Leopoldo. A
curandeira examinou o
ferimento e aviou a receita.
Só uma simpatia daria jeito.
Uma criança deve lamber a
ferida três sextas-feiras
seguidas, pela manhã, em
jejum.
- Chico serve? perguntou a
madrinha.
O garoto ficou em pânico.
Correu para debaixo das
bananeiras e ouviu o
repetido conselho materno:
- Você deve obedecer. Mais
vale lamber feridas que
aborrecer os outros. Você é
uma criança e não deve
contrariar sua madrinha.
- E isso vai curar o Moacir?
- Não, porque não é remédio.
Mas dará bom resultado para
você, porque a obediência
acalmará sua madrinha.
Chico perdeu a paciência.
Por que sua mãe não voltava
para casa? Onde estava o tal
anjo bom?
A aparição acalmou o menino:
- Seja humilde. Se você
lamber a ferida, faremos o
remédio para curá-la.
No dia seguinte, pela manhã
e em jejum, Chico iniciou a
missão. Fechava os olhos,
pedia forças à mãe e lambia
a perna do garoto. O gosto
era amargo e ele só queria
ter a língua maior para
acabar logo com o suplício.
Na terceira sexta-feira, o
ferimento estava
cicatrizado. Pela primeira
vez, Rita de Cássia elogiou
o afilhado:
- Muito bem, Chico. Você
obedeceu direitinho. Louvado
seja Deus.
O menino não sabia, mas
passaria a vida lambendo
feridas alheias.
As aulas na casa de Rita de
Cássia terminaram dois meses
depois, quando João Cândido
Xavier se casou com Cidália
Batista. A primeira medida
da mulher foi recolher os
nove filhos do primeiro
casamento do marido,
dispersos pelas casas de
parentes e amigos.
Chico chegou por último.
Quando apareceu, enfiado num
camisolão, foi recebido com
curiosidade por Cidália. Ela
reparou na barriga inchada
do menino e tentou levantar
sua roupa para examinar o
abdômen. Não conseguiu.
Chico, então com sete anos,
se desvencilhou, tímido.
Havia gente demais em volta.
Cidália o pegou pela mão e o
tirou da sala, a passos
lentos, no ritmo de Maria
João de Deus. A sós, a
mulher de João Cândido
levantou o camisolão do
garoto e levou um susto ao
deparar com a ferida aberta
a garfadas.
- Enquanto eu viver, ninguém
mais vai pôr as mãos em
você.
Diante da promessa, Chico
teve certeza: aquele era o
tal anjo anunciado pela
Mãe!
Do livro: As vidas de
Chico Xavier, de Marcel
Souto Maior.
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