A regra áurea
Não será a primeira vez
que abordaremos um
assunto sempre
necessário ao debate, em
meio aos desassossegos
sociais de nossos
tempos.
Quando o Mestre
pronunciou o legendário
“não fazer aos outros
o que não se quer para
si mesmo”, ditou a
regra áurea. Fosse essa
diretriz de bem viver
aplicada, na medida das
possibilidades de cada
um de nós, à infinidade
de desafios enfrentados
na longa trajetória das
nossas muitas vidas
terrenas, e talvez que
mais da metade dos
problemas cruciais
enfrentados no mundo já
estaria superada.
Isso porque se trata não
de filosofia vazia de
utilidade, mas de medida
de aplicação prática,
imediata, cujos
benefícios são de óbvia
constatação – no
entanto, frente à
escolha desta orientação
de vida, avultam
dificuldades que nos
desafiam as limitações
de compreensão íntima.
Porque ela investe
diretamente contra
nossas zonas de conforto
mais enraizadas, em
nossos investimentos de
interesses de menor ou
maior porte, e é sabido
que o egoísmo é, ainda
em nossos tempos, o
grande monstro a ser
derrotado no âmago de
cada ser.
Recentemente, o país se
comoveu com a
desencarnação
intempestiva de Domingos
Montagner, figura
pública de grande
popularidade, ator no
auge de sua carreira em
virtude de seu talento,
carisma e energia
pessoal inegavelmente
empática com nossos
valores e raízes
culturais. E, a par da
solidariedade bondosa da
população para com o
sofrimento de familiares
e artistas envolvidos na
tragédia, e como ocorre
em outros episódios
parecidos, observou-se a
contraparte sombria do
desrespeito maldoso da
parte de muitos.
Deparou-se, em redes
sociais, com a suposta e
deprimente foto do corpo
do ator quando
resgatado, em absurda
mostra de desrespeito
para com a dor dos
familiares, bem como com
comentários irônicos, de
uma tônica sórdida em
relação ao acontecido.
Denotou-se, assim, na
iniciativa, a subversão
doentia de valores de
seus autores, da qual a
humanidade, em
determinados momentos,
dá testemunho ante fatos
semelhantes.
Para justificar ou
defender esses
destemperos, alguns
ofereceram o argumento
insensato que toda a
comoção teve sua
justificativa no fato da
vítima da tragédia ser
um ator famoso, e que,
fosse o mesmo acontecido
com algum indivíduo
anônimo, jamais se
verificaria tamanha
mobilização pública. Mas
trata-se, a alegação, de
ardil malicioso, e de
simplória inverdade.
Nosso país padece
diariamente com casos de
mortes bárbaras de
crianças e adultos de
todas as faixas etárias,
dentro de uma realidade
infeliz tão avassaladora
de casos inéditos a cada
ano, que se sucedem de
modo a apagar da memória
os fatos anteriores,
como ondas investindo
sem parar camadas de
areia espessa sobre
outras - e as reações
dos que ainda contam com
seus valores humanos e
morais preservados,
invariavelmente, são a
solidariedade e o pesar.
Tenta-se, desta sorte,
forjar um pretexto tosco
para a impiedade,
grosseria de atitudes, e
ignorância pura e
simples, a fim de se
justificar essas
atitudes deprimentes, na
falta de algum argumento
sensato.
Mas a verdade é que
essas demonstrações de
brutalidade não
encontram justificativa,
se o que queremos é uma
convivência feliz e
saudável sem se incorrer
em contradições.
E é bem aí, nessas
ocorrências, que se
necessita da aplicação
do “não se fazer ao
próximo o que não quer
para si mesmo” -
pela razão fácil de se
compreender que a dor
humana é a mesma para
todos. Não importa se os
personagens envolvidos
são ricos, pobres,
famosos ou não; de
quaisquer classes
sociais, culturais ou
étnicas. É na dor que
cada ser vivo sobre a
face da Terra se iguala
aos demais. Corre nas
veias o sangue da mesma
cor. Descem pelos rostos
as mesmas lágrimas
salgadas.
Convulsionam-se os
ombros sob os mesmos
soluços de desespero,
revolta ou
inconformação.
A morte dos jornalistas
franceses, no ataque
terrorista contra o
periódico Charlie Hebdo,
evocou comoção mundial,
pelo teor da brutalidade
com que o ato insano foi
cometido contra vidas
humanas. Não vem ao
caso, aqui, a polêmica
acerca de que possa a
irreverência ácida
daquela publicação
incitar a incúria do
fanatismo religioso
afetado por suas
charges, ao se afrontar,
com elas, valores
religiosos, sociais e
culturais a serem
respeitados, e não
enxovalhados.
João Hélio, Isabella
Nardoni, entre outras
pequenas vítimas dos
quadros críticos de
violência em nosso país,
de seu lado, eram
crianças da população,
imersas no anonimato. E
as reações maciças de
sofrimento e
solidariedade aos pais
das vítimas foram
igualmente intensas, da
parte do povo.
O jornalista morto na
Praça da República, no
Rio de Janeiro. Os
acontecimentos
cotidianos incessantes,
que nos chegam ao
conhecimento pelo
noticiário, ou que
afetam a muitos
diretamente, na sucessão
das fatalidades
dolorosas deste planeta,
nos dão prova de que, em
momentos assim,
aflora-se o instinto de
solidariedade, compaixão
e amor de quem nos
cerca, ou mesmo da parte
de desconhecidos -
exatamente por se
reconhecer no sofrimento
agudo do próximo um
reflexo daquele que já
se tenha atravessado, ou
de que nenhum de nós se
vê livre, no processo de
aprendizado eterno.
E o que contamos, de
dentro de nossa condição
de fragilidade, em
episódios parecidos, é
justo com a expressão
desses valores eternos,
dos quais ninguém pode
prescindir, se o que se
pretende é a felicidade
de fato. Aquela
felicidade ideal, a que
o Mestre aludia em
tantas de suas prédicas,
proclamando a
necessidade, sob
inúmeras perspectivas
diferentes, de se
reconhecer nossa
igualdade de condições
de almas em lutas e em
processo de aprendizado
na Terra. Necessitadas,
portanto, como irmãos em
atalhos diferentes da
mesma jornada, da
imprescindível
compreensão de uns para
com os outros, seja qual
for o lugar que se ocupa
na imensa engrenagem da
vida.
Ninguém gostaria de ver
espezinhado, ou
vilipendiado pela
zombaria, os nossos
instantes mais difíceis.
Todavia, é difícil o “se
colocar no lugar do
outro”, na hora
impensada de se proferir
julgamentos, ou de se
assumir atitudes
deprimentes diante do
sofrimento alheio.
É, pois, muito fácil o
julgamento fútil. O “ah,
se está passando por
isso é porque merece!”
– como em tantas vezes
tivemos oportunidade de
ouvir nos próprios meios
espíritas, como álibi
sutil, que justifique a
inércia na hora de se
oferecer, senão o
reconforto solidário, o
silêncio respeitoso
pelas desditas alheias.
Ninguém conhece os
caminhos evolutivos
pregressos, tortuosos,
de cada um dos milhões
de seres em jornada
neste mundo. Mas é
exatamente por isso que,
até onde é possível para
a nossa precariedade de
entendimento do outro,
devemos nos abster de
julgar. Porque o impulso
é fácil diante de
contrariedades duras, ou
sob o ataque doloroso
das injustiças alheias.
Porém, se nos consola a
compreensão de amigos,
familiares ou afins, ou
mesmo de desconhecidos,
vindos ao nosso encontro
nesses instantes
dolorosos, a fim de nos
oferecer o valioso
auxílio ou reconforto,
em contrapartida, nos
cabe também a obrigação
do “se colocar no
lugar do outro”
adequadamente, noutras
tantas situações. De se
tentar sentir, mesmo que
num instante de
reflexão, o que o outro
sente, e as possíveis
razões pelas quais
sente; de se viver
imaginariamente o que o
outro vive, de dentro do
histórico de vida no
qual se criou e nutriu.
Assim, ofereceremos
igualmente, de nossa
parte, senão a
solidariedade, o
respeito e a compaixão,
sem os quais o espírito
não se desenvolve na
face material terrena.
Estiola, e por fim
fracassa, diante dos
muitos desafios da vida,
porque o que alimenta o
progresso espiritual em
qualquer tempo é a
nutrição do amor entre
as várias manifestações
da Criação de Deus.
Abstenhamo-nos de
proferir, portanto,
julgamentos
precipitados; e, menos
ainda, a ironia cruel
face aos incontáveis
dramas humanos de que
somos testemunhas,
porque o resultado
inevitável desta conduta
deprimente será, ali, ou
mais além, a atração de
sentenças, opiniões, e
de impiedade de igual
monta para os momentos
em que se fizerem
presentes as nossas
lágrimas mais amargas.