Chico Xavier, sob o amparo
de Emmanuel, tinha os
poderes cada vez mais
afiados. Em 1943, começou a
colocar no papel seu best
seller, o livro Nosso
Lar, assinado por André
Luiz. O texto pegou o
mineiro de surpresa. Era
diferente de tudo o que ele
já tinha escrito.
Descrevia o cotidiano numa
cidade espiritual próxima à
Terra, uma zona de transição
fundada por portugueses em
algum ponto do espaço. Era
para ali, ou para
comunidades parecidas com
aquela, que muita gente ia
após a morte. Nada de céu,
de inferno, de purgatório. A
população, formada por cerca
de 1 milhão de habitantes,
vivia às voltas com uma
burocracia tão intrincada
quanto a terráquea. Os
moradores do Nosso Lar se
submetiam a regras ditadas
por instâncias como a
Governadoria Geral, o
Ministério da Regeneração, o
Ministério do Esclarecimento
e o Ministério da Elevação.
Mas nem tudo era tédio.
O meio de transporte, por
exemplo, era bem divertido:
um aeróbus, carro comprido
suspenso a cinco metros de
altura que parecia ligado a
fios invisíveis. Entre os
animais à solta na cidade
estavam as aves íbis
viajoras, capazes de devorar
as formas mentais odiosas e
perversas e de enfrentar,
assim, as trevas do Umbral.
O moço de Pedro Leopoldo,
acostumado com carroças,
charretes e bois, parecia
ter-se transformado, de
repente, em autor de ficção
científica. A trama renderia
um bom videogame. Para
vencer, basta seguir as
instruções: o segredo de
sucesso nesta zona de
transição é faturar os
"bônus-trabalho". Quem
quiser alcançar níveis
superiores de evolução ou se
candidatar a uma nova
encarnação deve superar os
obstáculos.
O principal deles é a
preguiça. Uma dica é cumprir
a cota mínima diária de oito
horas de serviço útil. Os
mais empenhados podem fazer
quatro horas de serão, no
máximo. O esforço vale a
pena. Quem acumula tempo de
trabalho dedicado à
assistência aos outros
recebe provisões extras de
pão e de roupa e ganha
certas prerrogativas, como
visitas a amigos e parentes
também mortos, acesso a
locais de lazer e a
palestras nas escolas dos
ministérios. Mas todo
cuidado é pouco.
O Nosso Lar está longe de
ser o céu, e o governador
geral, longe de ser um anjo.
A cidade já enfrentou
conflitos nada celestiais.
Um dia, habitantes
recém-chegados da Terra se
rebelaram contra a escassez
de comida e começaram a
exigir provisões mais fartas
de pão e mais criatividade
nas receitas. O clima ficou
tenso, a população
dividiu-se e abriu espaço
para o assédio de multidões
de regiões inferiores.
Legiões vindas do Umbral
aproveitaram brechas nos
serviços de Regeneração para
invadir a cidade. Resultado:
o governador mandou ligar as
baterias elétricas das
muralhas da cidade,
destinadas à emissão de
dardos magnéticos, isolou os
rebeldes recalcitrantes em
calabouços da Regeneração,
fechou provisoriamente o
Ministério da Comunicação e
proibiu temporariamente os
auxílios às regiões
inferiores. Por mais de seis
meses, os serviços de
alimentação foram reduzidos
à inalação de princípios
vitais da atmosfera, através
da respiração, e a água
misturada a elementos
solares, elétricos e
magnéticos.
O livro foi um marco para o
Espiritismo. Ele convenceu
muita gente da necessidade
de trabalhar, e muito, em
favor dos necessitados. Quem
se dedicasse à caridade
evoluiria mais depressa.
Quem ajudasse o outro se
ajudaria. A generosidade
poderia soar, às vezes, como
egoísmo. Mas o discurso deu
bons resultados, estimulou o
auxílio aos pobres.
Chico Xavier suou para
traduzir aquelas lições do
outro mundo. Escutava as
frases e titubeava com o
lápis na mão, perplexo
diante do mundo novo. Numa
das noites de trabalho, em
julho, ele se sentiu fora do
corpo e, durante duas horas,
ao lado de André Luiz e de
Emmanuel, visitou uma faixa
suburbana da cidade descrita
por ele. Para Chico, a tal
viagem, uma das maiores
surpresas de sua vida, não
ocorreu por merecimento, mas
por necessidade: só assim
ele conseguiria passar para
o papel, sem trair a
"realidade", o clima
descrito pelo Espírito.
Do livro As Vidas de
Chico Xavier, de Marcel
Souto Maior.
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