JOSÉ PASSINI
jose.passini@gmail.com
Juiz de Fora, MG
(Brasil)
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Fé raciocinada
“Fé inabalável
só o é a que
pode encarar
frente a frente
a razão,
em todas as
épocas da
Humanidade.” (1)
Em torno da fé
existem inúmeras
afirmativas
negando-lhe o
caráter
racional.
Segundo alguns
teólogos,
raciocina-se
sobre a crença,
mas não sobre a
fé. A fé,
segundo eles, é
uma virtude, um
dom que
transcende a
própria razão.
Por colocarem-na
como virtude ou
dom
transcendental,
pertencente
exclusivamente à
área do
sentimento, é
que muitas
pessoas
confundem emoção
com fé. Por
isso, é comum
pessoas dizerem
ter sentido uma
fé imensa, capaz
de levá-las a
grandes
realizações, no
momento em que
ouviam o relato
de passagens do
Evangelho, ou de
ações levadas a
efeito por
benfeitores da
Humanidade, ou
até mesmo em
decorrência da
simples leitura
de uma página
edificante. A
emoção, a
vibração
espiritual que
os atos nobres
suscitam nas
almas já
portadoras de
alguma
sensibilidade
não pode ser
confundida com
fé. O estado
emocional é
transitório,
enquanto a fé é
permanente. A
emoção, se
analisada e
orientada pela
inteligência,
pode ser
auxiliar valiosa
para levar a
criatura a
modificar-se
para melhor.
Entretanto, se
não for
esclarecida pela
razão pode
conduzir ao
fanatismo, à
chamada fé cega,
que é a negação
da própria fé.
O mundo está
cheio de
exemplos tristes
dos frutos do
fanatismo
religioso. Em
nome da fé,
quantas
perseguições,
quantas mortes e
até guerras?
Ainda nos dias
atuais,
principalmente
na semana santa,
existem pessoas
que vertem seu
próprio sangue,
ferindo seus
corpos, ou se
entregam a
privações
terríveis no
intuito de
mostrar sua fé
em Deus. Se
raciocinassem,
veriam que Deus,
como Pai
amoroso, bom e
misericordioso,
nunca poderia
ser homenageado
com o
derramamento do
sangue dos Seus
filhos. Essa
concepção de um
deus
sanguinário,
combateu-a o
Profeta Elias,
séculos antes de
Jesus, quando
enfrentou os
sacerdotes
adoradores do
deus Baal. (I
Reis, 18: 22 a
40.)
Aprende-se no
Espiritismo que,
na sua caminhada
evolutiva, o
Espírito vai
conhecendo as
leis de Deus,
vai
percebendo-lhes
a perfeição e,
quanto mais as
conhece, mais se
identifica com
elas, mais
confia na
justiça e no
amor do Criador,
mais se
conscientiza da
Sua perfeição,
mais tem fé.
Essa, a fé que
nasce do
entendimento:
inabalável,
indestrutível.
Emmanuel ensina:
“Ter fé é
guardar no
coração a
luminosa certeza
em Deus, certeza
que ultrapassou
o âmbito da
crença
religiosa,
fazendo o
coração repousar
numa energia
constante de
realização
divina da
personalidade.
Conseguir a fé é
alcançar a
possibilidade de
não mais dizer
eu creio, mas
afirmar eu sei,
com todos os
valores da
razão, tocados
pela luz do
sentimento” (2).
A fé que o
Espiritismo
preconiza não é
uma fé
contemplativa,
capaz de levar
uma pessoa à
imobilidade, em
situações de
êxtase, em que
fica aguardando
providências de
Deus em seu
favor. Ao
contrário, é uma
fé dinâmica,
edificada
vagarosa e
conscientemente
pelo Espírito, à
medida que
evolui, conforme
ensina Emmanuel:
“A árvore da fé
viva não cresce
no coração
miraculosamente.
A conquista da
crença
edificante não é
serviço de menor
esforço. A
maioria das
pessoas admite
que a fé
constitua
milagrosa
auréola doada a
alguns Espíritos
privilegiados
pelo favor
divino” (3).
A fé espírita
não é aquela que
se fixa em
objetos
materiais como
cruzes,
escapulários,
bentinhos,
talismãs,
amuletos,
medalhas etc. O
espírita tem fé
em Deus, em
Jesus, nos bons
Espíritos,
entidades
dotadas de
sentimento e de
inteligência,
seres capazes de
movimentar
recursos em seu
favor. Essa fé é
muito diferente
da crença
infantil num
pretenso poder
mágico de
objetos
materiais, que
não poderiam
jamais
movimentar, com
inteligência e
sentimento,
recursos a
benefício de
alguém.
Entretanto, é
lícito se
indague sobre a
origem da fé
raciocinada.
Teria ela
nascido com o
Espiritismo?
Não, a fé
raciocinada nos
vem de Jesus,
dos ensinamentos
do seu
Evangelho. O
Mestre mudou
completamente o
próprio conceito
de religião,
introduzindo no
campo até então
puramente
emocional da fé,
o componente
razão,
entendimento.
Ninguém, até
Jesus, fez
tantos apelos ao
raciocínio no
âmbito
religioso.
Kardec,
conhecedor
profundo da
atuação de
Jesus, o
conhecia, não
como um místico,
mas como um
educador de
almas que, ao
tempo em que
tocava o
sentimento
daqueles que o
ouviam, sabia
também levá-los
ao entendimento
das lições. Por
isso, tem a
Doutrina
Espírita essa
característica
de
racionalidade. E
não podia ser de
outra forma, de
vez que ao
Espiritismo
coube o papel de
reviver o
Cristianismo na
sua pureza,
simplicidade e
pujança
originais.
Jesus nunca
explorou a
emoção de
ninguém. Sua
fala, mansa e
humilde, precisa
e firme, era
dirigida ao
sentimento e à
inteligência.
Suas lições
foram sempre
pautadas no
diálogo, através
do qual propunha
o exame racional
daquilo que
ensinava.
Censurado por
haver curado uma
mulher
paralítica num
sábado, bem
poderia deixar
que a própria
cura falasse por
ele, mas não
perdeu a
oportunidade de,
através de uma
pergunta, fazer
pensar aqueles
que o ouviam:
“(...) no sábado
não desprende da
manjedoura cada
um de vós o seu
boi, ou o
jumento, e não o
leva a beber? E
não convinha
soltar desta
prisão, no dia
de sábado, esta
filha de Abraão,
a qual há
dezoito anos
Satanás a tinha
presa?” (Lc, 13:
15 e 16).
De outra feita,
ele próprio
perguntou aos
doutores da lei,
antes de curar
um homem: “É
lícito curar no
sábado?” (Lc,
14: 3). Como não
respondessem,
Jesus curou o
hidrópico e o
despediu.
Depois, ele
volta a
inquiri-los, a
fim de
conscientizá-los
de que acima da
letra morta há
uma
interpretação
racional,
inteligente:
“Qual de vós o
que, caindo-lhe
num poço, em dia
de sábado, o
jumento ou o
boi, o não tire
logo?” (Lc, 14:
5).
“E, orando, não
useis de vãs
repetições...”
(Mt, 6: 7). Quer
o Mestre dizer
que devemos orar
com plena
consciência
daquilo que
falamos, que a
nossa oração não
seja uma
repetição
emocional de uma
fórmula
decorada, como
se fosse algo
recitado ou
declamado. Ao
contrário, que
seja uma
mensagem
conscientemente
elaborada, com
um conteúdo de
comunicação
dirigida ao
Alto, e que não
seja uma simples
ladainha.
Jesus, ao
conversar com a
samaritana, à
beira do poço de
Jacó, demonstra
que não
necessitava
inquirir alguém
para informar-se
de algo. Ali
deixa claro para
ela que
conhecia-lhe o
passado como a
palma de sua mão
(Jo, 4: 17).
Entretanto,
frequentemente
fazia perguntas
para suscitar
dúvida no seu
interlocutor, a
fim de fazê-lo
pensar,
raciocinar e não
receber
passivamente um
ensinamento:
“Qual é mais
fácil? Dizer: Os
teus pecados te
são perdoados;
ou dizer:
Levanta-te e
anda?” (Lc, 5:
23).
Ao invés de
fazer um
discurso
eloquente e
emocionado sobre
a Providência
Divina, o Mestre
busca, através
de perguntas,
levar seus
ouvintes a
pensarem, a
raciocinarem
sobre Deus.
Depois de lhes
ter falado sobre
os lírios do
campo, dizendo
que Deus os
veste, e compara
sua vestimenta
ao luxo do rei
Salomão: “Pois,
se Deus assim
veste a erva do
campo, que hoje
existe e amanhã
é lançada no
forno, não vos
vestirá muito
mais a vós,
homens de pouca
fé?” (Mt, 6:
30).
“E qual de vós é
o homem que,
pedindo-lhe pão
o seu filho, lhe
dará uma pedra?
E, pedindo-lhe
peixe, lhe dará
uma serpente? Se
vós, pois, sendo
maus, sabeis dar
boas coisas aos
vossos filhos,
quanto mais
vosso Pai, que
está nos céus,
dará bens aos
que lhos
pedirem?” (Mt,
7: 9 a 11).
Também por essa
passagem pode-se
ver que Jesus
não buscava
levar ninguém a
uma adoração
emotiva, a uma
fé cega. Ele
poderia ter
dito, por
exemplo que se
deve ter fé em
Deus, criador de
tudo o que
existe, que é
bom, amoroso,
misericordioso,
providente etc.
Mas não, só isso
não bastava. Se
ficasse só
nessas
afirmações,
teria suscitado
uma fé passiva.
Ele queria fazer
as criaturas
entenderem,
através de uma
comparação, que
o Todo Poderoso
deveria ser,
necessariamente,
melhor que um
pai terreno e,
portanto, capaz
de dar maiores
bens aos Seus
filhos.
Os apelos que
Jesus, nas suas
lições, fazia
não só ao
sentimento, mas
também à
inteligência,
foram objeto de
estudo até mesmo
fora do ambiente
religioso, por
um médico
psiquiatra,
Augusto Jorge
Cury, quando
diz: “... ele
não anulava arte
de pensar, ao
contrário, era
um mestre
intrigante nessa
arte. Cristo não
discorria sobre
uma fé sem
inteligência.
Para ele,
primeiro se
deveria exercer
a capacidade de
pensar e
refletir antes
de crer, depois
vinha o crer sem
duvidar. Se
estudarmos os
quatro
evangelhos e
investigarmos a
maneira como
Cristo agia e
expressava seus
pensamentos,
constataremos
que pensar com
liberdade e
consciência era
uma obra-prima
para ele”. (4)
O trecho do Novo
Testamento que
mais evidencia o
ambiente
pedagógico, de
diálogo, de
liberdade de
análise, na
busca de
esclarecimentos,
que Jesus
propiciava a
todos que
ouviam-lhe as
lições é,
certamente, o
assim chamado “A
Transfiguração”.
Registra Mateus,
no capítulo 17,
que Jesus subiu
a um alto monte,
acompanhado de
Pedro, Tiago e
João. O Mestre
orou e se
transfigurou,
cobrindo-se de
luz, ao tempo em
que apareceram –
seguramente
materializados,
pois que os três
discípulos os
viram – Moisés e
Elias, que
conversaram com
ele. Passado o
momento sublime,
ao regressarem,
o Mestre ordena
aos discípulos
que não contem
nada do que
acontecera até
que ele
ressuscitasse. É
de se imaginar o
contentamento e
a emoção que
devem ter
sentido aqueles
discípulos ao
contemplarem
Jesus coberto de
luz, Moisés, o
pai dos
profetas, e o
grande profeta
Elias.
Entretanto, eles
não se detiveram
em atitude de
contemplação
mística, de
deslumbramento.
Pelo contrário,
o raciocínio
funcionou
imediatamente,
na busca de
resposta para
algo que lhes
pareceu
estranho: “E os
discípulos o
interrogaram,
dizendo: Por que
dizem então os
escribas que é
mister que Elias
venha primeiro?”
(Mt, 17: 10).
Por que a
pergunta? Ora,
havia sido
predito pelos
profetas – e os
escribas sempre
o repetiam – que
o Mestre seria
precedido por
Elias, que
voltaria para
preparar-lhe o
caminho. Os
discípulos,
vendo Elias
desencarnado,
deduziram que
algo estava
errado: ou as
profecias não
espelhavam a
verdade, ou
aquele que se
apresentara e
conversara com
Jesus não era
Elias, ou Jesus
não era o
Messias! Jesus,
com a
tranquilidade
daqueles que
detêm a verdade,
respondendo,
disse-lhes: “Mas
digo-vos que
Elias já veio, e
não o
conheceram, mas
fizeram-lhe o
que quiseram.
Assim farão eles
também padecer o
Filho do homem”
(Mt, 17: 12). E,
em seguida,
conclui o
Evangelista:
“Então
entenderam os
discípulos que
lhes falara de
João Batista”
(Mt, 17: 13).
Tudo estava
certo. A
profecia já se
havia cumprido.
Diante do que se
acabou de ver,
conclui-se que
Jesus foi um
pedagogo e não
um místico.
Sabia atrair
seus ouvintes
com as doces
consolações da
fé, mas não
alimentava
atitudes de
deslumbramento
contemplativo,
face aos apelos
ao raciocínio
com que mesclava
suas sublimes
lições.
Encaminhava-os
ao entendimento
lógico, racional
dos fatos!
Jesus, como
Mestre admirável
que foi, soube
criar um clima
de diálogo
aberto. Foi essa
liberdade que
levou os
discípulos a
buscarem
imediatamente
esclarecimento
sobre a aparição
de Elias, embora
a pergunta
formulada por
eles contivesse
embutido um
grave
questionamento,
qual seja o da
própria condição
de Messias do
seu Mestre.
Jesus não se
sente agastado
e, com a
segurança
daqueles que
estão com a
Verdade, os
esclarece.
Assim, vê-se
claramente que
Jesus não
impunha suas
ideias, não
violentava
consciências,
nem exigia fé
cega, sem exame.
Não. Sua
mensagem sempre
foi dirigida ao
intelecto e ao
sentimento,
bases legítimas
da fé
raciocinada, que
o Espiritismo
veio reviver.
Referências:
1. O
Evangelho
segundo o
Espiritismo,
cap. 19, item 7.
2. O
Consolador,
perg. 354.
3. Caminho,
Verdade e Vida,
cap. 40.
4. Análise da
Inteligência de
Cristo, pág. 18.
5. Bíblia
Sagrada, trad.
João Ferreira d'Almeida
(todas as
citações).