Oh Jerusalém!...
Oh Jerusalém!...
Humberto de Campos
É possível a estranheza dos que vivem na
Terra com respeito à atitude dos
desencarnados, esmiuçando-lhes as questões e
opinando sobre os problemas que os
inquietam.
É lógico, porém, que os recém-libertos do
mundo falem mais com o seu cabedal de
experiências do passado, que com a sua
ciência do presente, adquirida à custa de
faculdades novas, que o homem não está ainda
à altura de compreender.
Podem imaginar-se na Terra determinadas
condições da vida sobre a superfície de
Marte; mas, o que interessam, por enquanto,
ao mundo semelhantes descobertas, se os
enigmas que o assoberbam ainda não foram
decifrados? Para o exilado da Terra, não
vale a psicologia do homem desencarnado.
Tateando na prisão escura da sua vida, seria
quase um crime aumentar-lhe as preocupações
e ansiedades. Eu teria muitas coisas novas a
dizer, todavia, apraz-me, com o objeto de me
fazer compreendido, debruçar nas bordas do
abismo em que andei vacilando, subjugado nos
tormentos, perquirindo os seus logogrifos
inextricáveis para arrancar as lições da sua
inutilidade.
Também o homem nada tolera que venha
infringir o método da sua rotina.
Presumindo-se rei na criação, não admite as
verdades novas que esfacelam a sua coroa de
argila.
Os mortos, para serem reconhecidos, deverão
tanger a tecla da mesma vida que
abandonaram. Isso é intuitivo.
O jornalista, para alinhavar os argumentos
da sua crônica, busca os noticiários,
aproveita-se dos acontecimentos do dia,
tirando a sua ilação das ocorrências do
momento.
E meu espírito volve a contemplar o
espetáculo angustioso dessa Abissínia,
abandonada no seio dos povos, como o
derradeiro reduto da liberdade de uma raça
infeliz, cobiçada pelo imperialismo do
século, lembrando-me de Castro Alves nas
suas amarguradas "Vozes d'África":
Deus, ó Deus, onde estás que não respondes?
Em que mundo, em que estrela tu te escondes,
Embuçado nos céus?
Há dois mil anos te mandei meu grito,
Que embalde, desde então, corre o infinito.
Onde estás, Senhor Deus?
Da Roma poderosa partem as caravanas de
guerreiros. Cartago agoniza no seu
desgraçado heroísmo. Públio Cornélio
consegue a mais estrondosa das vitórias. Os
cérebros dos patrícios ilustres embriagam-se
no vinho do triunfo e nas galeras suntuosas,
onde as águias simbolizam o orgulhoso poder
da Roma eterna, lamentam-se os escravos nos
seus nefandos martírios.(1)
Os Césares enchem a Cidade das Sabinas de
troféus e glórias. Todos os deuses são
venerados. Os países são submetidos e os
povos entoam o hino da obediência à senhora
do mundo.
Já não se ouve a melodiosa flauta de Pã nos
bosques da Tessália e nas margens do Nilo
apagam-se as luzes dos mais suaves
mistérios.
Vítima, porém, dos seus próprios excessos, o
grande império vê apressar-se a sua
decadência. No esboroamento dos séculos, a
invencível potência dos Césares é um montão
de ruínas. Sobre os seus mármores suntuosos
aumentam as destruições.
Roma dormiu o seu grande sono. Ei-la,
contudo, que desperta. Mussolini deixa
escapar um grito do seu peito de ferro e a
Roma antiga acorda do letargo, reconhecendo
a perda dos seus imensos domínios.
Urge, porém, recuperar o poderio,
empenhando-se em alargar o seu império
colonial.
Onde e como?
O mundo está cheio de leis, de tratados de
amparo recíproco entre as nações.
A França já ocupou todos os territórios ao
alcance das suas possibilidades, a Alemanha
está fortificada para as suas aventuras, o
Japão tem as suas vistas sobre a China, e a
Inglaterra, calculista e poderosa, não pode
ceder um milímetro no terreno das suas
conquistas.
Mas Roma quer a expansão da sua força
econômica e prepara-se para roubar a
derradeira ilusão de um povo desgraçado, ao
qual não basta a lembrança amarga dos
cativeiros multisseculares, julgando-se
livre na obscura faixa de terra para onde
recuou, batido pela crueldade das potências
imperialistas.
Que mal fizeste à civilização corrompida dos
brancos, ó pequena Abissínia, grande pela
expressão resignada do teu ardente heroísmo?
Como pudeste, das areias calcinantes do
deserto, onde apuras o teu espírito de
sacrifício, penetrar nas instituições
europeias, provocando a fúria das suas
armas?
Deixa que passem sob o teu sol de fogo as
hordas de vândalos, sedentas de chacina e de
sangue.
Sobre as tuas esperanças malbaratadas
derramará o Senhor o perfume da sua
misericórdia. Os humildes têm o seu dia de
bem-aventurança e de glória.
Não importa sejas o joguete dos caprichos
condenáveis dos teus verdugos, porque sobre
o mundo todas as frontes orgulhosas desceram
do pináculo da sua grandeza para o
esterquilínio e para o pó.
Se tanto for preciso, recebe sobre os teus
ombros a mortalha de sangue, porque, junto
do maravilhoso império da civilização
apodrecida dos brancos, ouve-se a voz
lamentosa de um novo Jeremias: Ó
Jerusalém!... Jerusalém!...
Do livro Palavras
do Infinito, obra mediúnica psicografada
pelo médium Francisco Cândido Xavier.
(1) A
mensagem acima, psicografada em 11 de agosto
de 1935, mostra que o estado de beligerância
dos dias atuais não é muito diferente do que
ocorria no Velho Mundo, oito décadas atrás.