No dia 3 de novembro, a
sentença do juiz João
Frederico Mourão Russel foi
confirmada no Tribunal de
Apelação do antigo Distrito
Federal: os direitos da
pessoa acabam após a morte.
No ano seguinte, Humberto de
Campos estaria de volta são
em salvo. Mas seu novo
livro, Lázaro Redivivo,
exibiria na capa um
pseudônimo: Irmão X.
Humberto de Campos Filho, 33
anos depois, encontrou-se
com Chico Xavier, lhe deu um
abraço forte pelos cinquenta
anos de trabalho e chorou.
Chico ainda agradecia a Deus
e ao advogado pelo final
feliz da polêmica Humberto
de Campos quando foi
surpreendido por um
presente: um piano novo em
folha enviado do Paraná
pelos donos da fábrica
Brasil. Os empresários
apostaram num dos boatos da
temporada: no fim da vida,
ele embalaria a Terra com
músicas ditadas por
compositores consagrados do
além. Tocaram num ponto
fraco de Chico.
Ele vibrava com música. Em
meio ao escândalo na
justiça, sonatas e sinfonias
serviram ao réu como
tranquilizantes e como
companhia. Chico fechava os
olhos e se deixava levar
pela Sinfonia Fantástica, de
Berlioz, pelo Concerto de
Varsóvia, de Tchaikovsky,
pela obra completa de
Beethoven e, claro, pela Ave
Maria, de Gounod. Muitas
vezes, os acordes clássicos
serviam como escudo. Com o
volume de sua vitrola no
máximo, ele abafava,
enquanto escrevia, o som dos
insultos lançados contra ele
por assombrações
desarvoradas. Só assim
conseguia passar para o
papel, com alguma
tranquilidade, os ditados do
outro mundo.
Chico Xavier encarou o piano
e tomou a decisão: aceitaria
o instrumento e aprenderia a
lidar com ele. Num impulso,
contratou uma professora
particular e marcou a
primeira aula para o dia
seguinte. Afinal de contas,
por que não se dar este
prazer? Ele merecia uma
folga. Após os artigos em
sua defesa nos jornais e o
veredicto do juiz, o
trabalho tinha triplicado. A
legião de doentes à sua
procura aumentava a cada
semana.
No dia da aula de piano, ele
tomou um banho demorado,
vestiu seu melhor terno e
cruzou os braços à espera da
professora. As visitas
chegavam e iam se sentando
por ali. Chico pedia calma.
Hoje vou ter a primeira
aula. Acomodem-se. Esperem
um pouco. Cegos, leprosos,
pobres de cidades vizinhas
se apinhavam na porta,
faziam fila. A multidão
crescia. A professora
demorava a chegar. Antes
dela, o aluno viu Emmanuel.
- O que é isto, Chico?
Alguma festa?
O candidato a pianista
gaguejou.
- Não. É que eu resolvi
tomar umas aulas de piano.
- E esses sofredores que
estão aí? Vieram assistir à
aula?
Chico ficou sem resposta.
- Quer dizer que essa gente
toda que está aí sofrendo,
angustiada, ficará
aguardando o dia em que você
resolva atendê-la?
Quando a professora chegou,
Chico se desculpou,
agradeceu e se despediu. Não
poderia perder tempo. No fim
do ano, o ex-futuro-aluno de
piano não resistiu e
arriscou um voo mais
comedido. Pediu ao vizinho
de mesa na Fazenda Modelo, o
músico e escrevente Oswaldo
Gonçalo do Carmo, aulas de
teoria musical. Queria
estudar as notas, tons,
semitons, escalas.
Empolgado, chegou a
confidenciar ao mestre: - Se
aprender música, conseguirei
completar a sinfonia de
Schubert. Oswaldo se
empolgou com a perspectiva
de produzir um gênio. E
ficou impressionado com o
aluno. Chico aprendeu, em
três meses, o que poucos
aprenderiam em um ano.
E parou. A sinfonia de
Schubert ficaria incompleta.
Chico queria relaxar, mas
era impossível. Seu nome, já
estampado na capa de 25
livros, começava a gerar
dinheiro mesmo contra sua
vontade.
Em 1947, a irmã dele, Zina,
foi procurada pela polícia
de Belo Horizonte. Precisava
identificar o "Chico Xavier"
que atraía multidões num
bairro populoso da cidade. O
curandeiro cobrava trezentos
cruzeiros por sessão e cem
por passe e vendia
exemplares autografados das
obras de Emmanuel, Irmão X e
André Luiz. Foi desmascarado
a tempo.
Os charlatões estavam à
solta. Chico vivia numa
espécie de "prisão
domiciliar". A fama custava
caro, tomava tempo e espaço,
acabava com a liberdade de
ir-e-vir do porta-voz dos
mortos. De vez em quando,
ele fugia para o cemitério
ou o açude em busca de
privacidade. Precisava de um
pouco de paz para escrever
seus livros e cumprir o
combinado com seu "patrão"
invisível.
Em 1947, conseguiu pingar o
ponto final no trigésimo
título, Volta, Bocage.
Um alívio tomou conta dele.
Eufórico, viu Emmanuel se
aproximar e perguntou se a
tarefa já estava encerrada.
O guia sorriu e anunciou:
- Começaremos uma nova série
de trinta volumes.
Chico respirou fundo e
obedeceu desanimado. Quanto
mais escrevia, mais ficava
encurralado. As mentiras o
cercavam. Previsões falsas
eram atribuídas a ele e até
mesmo textos apócrifos eram
divulgados como seus.
Do livro As vidas de
Chico Xavier, de Marcel
Souto Maior.
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