JOSÉ
CARLOS
MONTEIRO
DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo
Horizonte,
Minas
Gerais
(Brasil)
O suicídio de Deus
“Deus matou Deus, para
apaziguar Deus” -
Diderot.
1. A liberdade de culto,
concedida aos cristãos
através do Edito de
Milão, no ano 313,
acarretou,
paradoxalmente,
lamentáveis
conseqüências para o
Cristianismo. As
divergências e
dissensões, que há algum
tempo despontavam em seu
seio, assumiram então
proporções de monta,
porquanto já não havia
mais a necessidade da
discrição e dos cuidados
que um culto proibido
exigia.
Saídos da sombra em que
até aquela ocasião se
escondiam, os cristãos
se viram livres para
criar, alimentar,
cultivar e expandir
antigas desavenças,
cujas origens remontam
aos primeiros tempos do
Cristianismo. Nessa
altura, contudo, elas
haviam alcançado
dimensões e colorações
diferentes. Já não se
tratava mais de disputas
internas entre os seus
adeptos, mas de
contendas que se
projetaram para fora do
seu círculo e que foram
ganhar espaço no campo
político-social.
Alcançaram os salões do
poder temporal e, neles,
foram acolhidas e
oficializadas, sobretudo
as que melhor servissem
aos objetivos de mando e
dominação dos
governantes. Começaram,
assim, oficialmente, as
grandes defecções do
Cristianismo, que
perduram até os dias de
hoje.
2. Três fatos de grande
importância serviram
para incrementar essa
situação e para deturpar
a pureza e a
simplicidade dos seus
primeiros tempos.
Inicialmente foi a
deificação de Jesus,
obra do Concílio de
Nicéia (325), convocado
por Constantino, e cuja
finalidade era
nitidamente política,
conforme dão conta os
registros frios e
imparciais da História.
Em 380, o Edito de
Tessalônica, de autoria
de Teodósio I, o elevou
à condição de religião
oficial do Império
Romano e, finalmente, o
Concílio de
Constantinopla I, em
381, e sob a inspiração
do mesmo Teodósio I,
confirmou a divindade de
Jesus, além de
introduzir a figura do
Espírito Santo, criando,
dessarte, a trindade
cristã, a exemplo do que
já existia na quase
totalidade das religiões
da Antigüidade. Os
cristãos, já, nessa
época, sob a sombra do
Catolicismo nascente,
viram-se obrigados a
conviver com o
ininteligível, confuso e
misterioso dogma da
Santíssima Trindade.
A partir desses
acontecimentos, a
doutrina de amor e de
consolação, pregada e
exemplificada pelo
Mestre e que tinha por
palco as montanhas,
vales e praias da
Palestina, cedeu lugar
ao radicalismo, à
violência, ao terror e à
intimidação, passando,
por outro lado, a ocupar
os suntuosos e sinistros
templos de pedra e a
freqüentar as
antecâmaras dos palácios
em que o poder se
encastelava. E os
cristãos, que se tinham
à conta de únicos
detentores da verdade,
foram, progressivamente,
transformando-se em
terríveis perseguidores
dos que ousavam
discordar de seus pontos
de vista.
3. Acertado e definido
que Jesus era Deus,
somente restava ao homem
conviver com o terrível
dilema criado pelos
teólogos conciliares. A
Igreja ensinava que o
Deus-Pai era em tudo
igual ao Deus-Filho,
pelo simples e
irrefutável fato de que
ambos eram um só Deus, o
que implica a inexorável
conclusão da mais
absoluta e total
igualdade entre um e
outro.
Todavia, Jeová, o
Deus-Pai, ao contrário
de Jesus, o Deus-Filho –
manso e pacífico por
excelência, – era
possuidor de um gênio
irascível e vingativo,
conforme se vê de sua
indignação e revolta
diante do erro do
primeiro casal que havia
criado, apesar da ampla,
reconhecida e total
falta de conhecimento
dos dois a respeito de
tudo que os cercava.
Nessa situação da mais
absoluta e total
ignorância, deveriam
permanecer eternamente,
por conta da vontade do
Altíssimo, que, ao se
ver contrariado naquele
seu inexplicável
capricho, os condenou a
uma pena severíssima e
inteiramente
desproporcional à
gravidade da ofensa
cometida. Como se não
bastasse tamanho exagero
e crueldade, estendeu a
condenação aos seus
futuros descendentes,
que nem sequer haviam
nascido.
Essa culpabilidade “a
priori”, por faltas que
não cometeram, tem
perseguido o ser humano
ao longo de sua
existência. Agride o
senso de justiça que
existe dentro de cada
homem e conflita até com
as frágeis leis que ele
elabora. A Constituição
do Brasil, por exemplo,
obedecendo a uma norma
de âmbito geral no mundo
moderno, estabelece no
seu artigo 5º, inciso
XLV, que nenhuma pena
passará da pessoa do
condenado. No mesmo
sentido se coloca a lei
penal naquilo que a
doutrina denomina
“individualização da
pena” e que condiciona o
Juiz, ao proferir uma
sentença condenatória, a
levar em consideração a
culpabilidade, os
antecedentes, a conduta
social, a personalidade
do agente, os motivos,
as circunstâncias e as
conseqüências do crime
(artigo 59 do Código
Penal). Uma triste e
inevitável conclusão daí
se retira: a justiça de
um país do chamado
terceiro mundo se coloca
muitos graus acima
daquela emanada de Deus!
A absurda e
ininteligível condenação
imposta pelo Criador,
bem como as imorredouras
conseqüências que gerou
para toda a humanidade,
constituem a base de um
sistema teológico
ilógico sobre o qual o
Cristianismo, nas suas
manifestações mais
usuais, procura
equilibrar-se e
manter-se.
4. À vista do exposto,
ressumbram algumas
ilações que, além de
curiosas e estranhas,
revelam-se inteiramente
incompatíveis com uma
noção ou idéia mais
evoluída que se tenha da
Divindade.
Uma primeira diz
respeito à já referida
diferença de gênio e de
comportamento do
Deus-Pai e do
Deus-Filho, embora a
apregoada identidade
entre um e outro. O pai
de tal forma
intolerante, arbitrário
e irascível, que se
mostrou inteiramente
incapaz de relevar uma
ofensa, mesmo sabendo
que o seu autor era
dotado da mais completa
e absoluta ignorância. O
filho, ao contrário, é o
amor em ação e detém, no
mais alto grau, as
virtudes inquebrantáveis
da paciência e do
perdão, por conhecer e
compreender
profundamente a
indigência moral dos
homens. Vítima do mais
hediondo crime jamais
cometido na Terra, não
se insurgiu contra os
seus autores nem os
condenou. Apenas,
perdoou-lhes por
sabê-los ignorantes.
A segunda demonstra a
pouca inteligência,
acuidade e
previsibilidade
reveladas pelo Criador,
impotente sequer para
prever o que poderia
acontecer com os dois
primeiros habitantes da
Terra, que,
provavelmente, não
resistiriam à tentação
da curiosidade e
haveriam de provar do
fruto da árvore
proibida,
propiciando-lhes o
conhecimento de
determinados fatos.
Aliás, esse
comportamento de
Deus-Pai mais uma vez se
choca com o de
Deus-Filho, que nunca
exaltou a ignorância
como condição necessária
à felicidade da
criatura. Pelo
contrário, segundo a
narrativa de João, ela
somente se libertará dos
seus males e logrará a
evolução plena através
do conhecimento da
verdade (Jo. 8, 32).
Finalmente, uma terceira
está relacionada com a
absoluta falta de
planejamento e com o
manifesto empirismo da
criatividade divina,
pois só depois de
concluir suas obras é
que Deus verificava se
eram boas ou não: -“E
viu Deus tudo quanto
tinha feito e eis que
era tudo muito bom; e
foi tarde e manhã, o dia
sexto”. (Gen., 1, 31)
No caso particular de
Adão, “não era tudo
muito bom”, pois logo
ele constatou que a obra
estava pela metade e que
deveria também criar-lhe
uma companheira. Pelo
menos é o que o Gênesis
ensina: – “E disse o
Senhor Deus: Não é bom
que o homem esteja só;
far-lhe-ei uma ajudadora
idônea para ele”. (Gen.
2, 18)
5. É difícil conceber-se
que desse imbróglio
Jesus, “Deus-Filho”, não
tenha participado, como
autor ou co-autor. Como
se não bastasse o
terrível emaranhado
provocado por toda essa
história, os homens
inventaram o dogma da
Santíssima Trindade e a
participação divina
deixa de ser dupla, para
ser trina, em razão da
incompreensível
equivalência da unidade
com a trindade, o que
significa dizer, em
última análise, que um é
igual a três. Nos termos
dessa tripartição
divina, que embora
tríplice é una, Jesus é
igual a Deus que, por
sua vez é igual ao
Espírito Santo que, de
sua parte, é igual a
Jesus. Daí, pois, que
Jesus é Deus, Deus é
Jesus, ambos são o
Espírito Santo, que
também é Deus e também é
Jesus!!!
À vista de tudo isso é
inevitável o raciocínio
de que tanto Jesus,
Deus-Filho, quanto o
Espírito Santo-Deus
colaboraram na ação de
Deus-Pai quando criou o
mundo, o homem e tudo o
mais que existe sobre a
Terra, debaixo dela e,
em cima, no ar. E isso
porque, no curso dos
dois mil anos de
Cristianismo, os
teólogos têm ensinado
que os três são o único
e mesmo Deus.
Daí se conclui,
portanto, que, em todos
os episódios da
história, lá estava
Jesus, o Deus-Filho,
como autor ou co-autor
da ação de Deus-Pai,
secundados ou
assessorados pelo
Espírito Santo-Deus, uma
vez que os três eram um
e o um era os três...
Ademais, a partir da
imanência e
transcendência de Deus e
dessa tríplice unidade,
torna-se impossível a
separação dos três, para
o fim específico de
divisão e de definição
de encargos e de
responsabilidades.
6. Em face de tamanhas
incongruências, produto
exclusivo da capacidade
criadora da mente
humana, é inquestionável
que Deus-Pai, com a
concordância de
Deus-Filho e assistido
pelo Espírito
Santo-Deus, ao exigir o
sacrifício do segundo,
que também era Ele, para
salvar a humanidade de
um erro que ela não
cometeu, exigiu o seu
próprio sacrifício, o
que implica dizer: Deus
se matou.
Induvidosamente, estamos
diante de uma típica
situação de suicídio. E
o que é mais grave:
Suicídio de Deus!
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