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Crônicas e Artigos
Ano 2 - N° 60 - 15 de Junho de 2008

JOSÉ CARLOS MONTEIRO DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo Horizonte, Minas Gerais (Brasil)
 

O suicídio de Deus

                    “Deus matou Deus, para apaziguar Deus” - Diderot.

1. A liberdade de culto, concedida aos cristãos através do Edito de Milão, no ano 313, acarretou, paradoxalmente, lamentáveis conseqüências para o Cristianismo. As divergências e dissensões, que há algum tempo despontavam em seu seio, assumiram então proporções de monta, porquanto já não havia mais a necessidade da discrição e dos cuidados que um culto proibido exigia.

Saídos da sombra em que até aquela ocasião se escondiam, os cristãos se viram livres para criar, alimentar, cultivar e expandir antigas desavenças, cujas origens remontam aos primeiros tempos do Cristianismo. Nessa altura, contudo, elas haviam alcançado dimensões e colorações diferentes. Já não se tratava mais de disputas internas entre os seus adeptos, mas de contendas que se projetaram para fora do seu círculo e que foram ganhar espaço no campo político-social. Alcançaram os salões do poder temporal e, neles, foram acolhidas e oficializadas, sobretudo as que melhor servissem aos objetivos de mando e dominação dos governantes. Começaram, assim, oficialmente, as grandes defecções do Cristianismo, que perduram até os dias de hoje.

2. Três fatos de grande importância serviram para incrementar essa situação e para deturpar a pureza e a simplicidade dos seus primeiros tempos. Inicialmente foi a deificação de Jesus, obra do Concílio de Nicéia (325), convocado por Constantino, e cuja finalidade era nitidamente política, conforme dão conta os registros frios e imparciais da História. Em 380, o Edito de Tessalônica, de autoria de Teodósio I, o elevou à condição de religião oficial do Império Romano e, finalmente, o Concílio de Constantinopla I, em 381, e sob a inspiração do mesmo Teodósio I, confirmou a divindade de Jesus, além de introduzir a figura do Espírito Santo, criando, dessarte, a trindade cristã, a exemplo do que já existia na quase totalidade das religiões da Antigüidade. Os cristãos, já, nessa época, sob a sombra do Catolicismo nascente, viram-se obrigados a conviver com o ininteligível, confuso e misterioso dogma da Santíssima Trindade.

A partir desses acontecimentos, a doutrina de amor e de consolação, pregada e exemplificada pelo Mestre e que tinha por palco as montanhas, vales e praias da Palestina, cedeu lugar ao radicalismo, à violência, ao terror e à intimidação, passando, por outro lado, a ocupar os suntuosos e sinistros templos de pedra e a freqüentar as antecâmaras dos palácios em que o poder se encastelava. E os cristãos, que se tinham à conta de únicos detentores da verdade, foram, progressivamente, transformando-se em terríveis perseguidores dos que ousavam discordar de seus pontos de vista.

3. Acertado e definido que Jesus era Deus, somente restava ao homem conviver com o terrível dilema criado pelos teólogos conciliares. A Igreja ensinava que o Deus-Pai era em tudo igual ao Deus-Filho, pelo simples e irrefutável fato de que ambos eram um só Deus, o que implica a inexorável conclusão da mais absoluta e total igualdade entre um e outro.

Todavia, Jeová, o Deus-Pai, ao contrário de Jesus, o Deus-Filho – manso e pacífico por excelência, – era possuidor de um gênio irascível e vingativo, conforme se vê de sua indignação e revolta diante do erro do primeiro casal que havia criado, apesar da ampla, reconhecida e total falta de conhecimento dos dois a respeito de tudo que os cercava. Nessa situação da mais absoluta e total ignorância, deveriam permanecer eternamente, por conta da vontade do Altíssimo, que, ao se ver contrariado naquele seu inexplicável capricho, os condenou a uma pena severíssima e inteiramente desproporcional à gravidade da ofensa cometida. Como se não bastasse tamanho exagero e crueldade, estendeu a condenação aos seus futuros descendentes, que nem sequer haviam nascido.

Essa culpabilidade “a priori”, por faltas que não cometeram, tem perseguido o ser humano ao longo de sua existência. Agride o senso de justiça que existe dentro de cada homem e conflita até com as frágeis leis que ele elabora. A Constituição do Brasil, por exemplo, obedecendo a uma norma de âmbito geral no mundo moderno, estabelece no seu artigo 5º, inciso XLV, que nenhuma pena passará da pessoa do condenado. No mesmo sentido se coloca a lei penal naquilo que a doutrina denomina “individualização da pena” e que condiciona o Juiz, ao proferir uma sentença condenatória, a levar em consideração a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e as conseqüências do crime (artigo 59 do Código Penal). Uma triste e inevitável conclusão daí se retira: a justiça de um país do chamado terceiro mundo se coloca muitos graus acima daquela emanada de Deus!

A absurda e ininteligível condenação imposta pelo Criador, bem como as imorredouras conseqüências que gerou para toda a humanidade, constituem a base de um sistema teológico ilógico sobre o qual o Cristianismo, nas suas manifestações mais usuais, procura equilibrar-se e manter-se.

4. À vista do exposto, ressumbram algumas ilações que, além de curiosas e estranhas, revelam-se inteiramente incompatíveis com uma noção ou idéia mais evoluída que se tenha da Divindade.

Uma primeira diz respeito à já referida diferença de gênio e de comportamento do Deus-Pai e do Deus-Filho, embora a apregoada identidade entre um e outro. O pai de tal forma intolerante, arbitrário e irascível, que se mostrou inteiramente incapaz de relevar uma ofensa, mesmo sabendo que o seu autor era dotado da mais completa e absoluta ignorância. O filho, ao contrário, é o amor em ação e detém, no mais alto grau, as virtudes inquebrantáveis da paciência e do perdão, por conhecer e compreender profundamente a indigência moral dos homens. Vítima do mais hediondo crime jamais cometido na Terra, não se insurgiu contra os seus autores nem os condenou. Apenas, perdoou-lhes por sabê-los ignorantes.

A segunda demonstra a pouca inteligência, acuidade e previsibilidade reveladas pelo Criador, impotente sequer para prever o que poderia acontecer com os dois primeiros habitantes da Terra, que, provavelmente, não resistiriam à tentação da curiosidade e haveriam de provar do fruto da árvore proibida, propiciando-lhes o conhecimento de determinados fatos. Aliás, esse comportamento de Deus-Pai mais uma vez se choca com o de Deus-Filho, que nunca exaltou a ignorância como condição necessária à felicidade da criatura. Pelo contrário, segundo a narrativa de João, ela somente se libertará dos seus males e logrará a evolução plena através do conhecimento da verdade (Jo. 8, 32).

Finalmente, uma terceira está relacionada com a absoluta falta de planejamento e com o manifesto empirismo da criatividade divina, pois só depois de concluir suas obras é que Deus verificava se eram boas ou não: -“E viu Deus tudo quanto tinha feito e eis que era tudo muito bom; e foi tarde e manhã, o dia sexto”. (Gen., 1, 31)

No caso particular de Adão, “não era tudo muito bom”, pois logo ele constatou que a obra estava pela metade e que deveria também criar-lhe uma companheira. Pelo menos é o que o Gênesis ensina: – “E disse o Senhor Deus: Não é bom que o homem esteja só; far-lhe-ei uma ajudadora idônea para ele”. (Gen. 2, 18)

5. É difícil conceber-se que desse imbróglio Jesus, “Deus-Filho”, não tenha participado, como autor ou co-autor. Como se não bastasse o terrível emaranhado provocado por toda essa história, os homens inventaram o dogma da Santíssima Trindade e a participação divina deixa de ser dupla, para ser trina, em razão da incompreensível equivalência da unidade com a trindade, o que significa dizer, em última análise, que um é igual a três. Nos termos dessa tripartição divina, que embora tríplice é una, Jesus é igual a Deus que, por sua vez é igual ao Espírito Santo que, de sua parte, é igual a Jesus. Daí, pois, que Jesus é Deus, Deus é Jesus, ambos são o Espírito Santo, que também é Deus e também é Jesus!!!

À vista de tudo isso é inevitável o raciocínio de que tanto Jesus, Deus-Filho, quanto o Espírito Santo-Deus colaboraram na ação de Deus-Pai quando criou o mundo, o homem e tudo o mais que existe sobre a Terra, debaixo dela e, em cima, no ar. E isso porque, no curso dos dois mil anos de Cristianismo, os teólogos têm ensinado que os três são o único e mesmo Deus.

Daí se conclui, portanto, que, em todos os episódios da história, lá estava Jesus, o Deus-Filho, como autor ou co-autor da ação de Deus-Pai, secundados ou assessorados pelo Espírito Santo-Deus, uma vez que os três eram um e o um era os três... Ademais, a partir da imanência e transcendência de Deus e dessa tríplice unidade, torna-se impossível a separação dos três, para o fim específico de divisão e de definição de encargos e de responsabilidades.

6. Em face de tamanhas incongruências, produto exclusivo da capacidade criadora da mente humana, é inquestionável que Deus-Pai, com a concordância de Deus-Filho e assistido pelo Espírito Santo-Deus, ao exigir o sacrifício do segundo, que também era Ele, para salvar a humanidade de um erro que ela não cometeu, exigiu o seu próprio sacrifício, o que implica dizer: Deus se matou. Induvidosamente, estamos diante de uma típica situação de suicídio. E o que é mais grave: Suicídio de Deus!


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 Revista Semanal de Divulgação Espírita