ORSON PETER
CARRARA
orsonpeter@yahoo.com.br
Matão, São Paulo
(Brasil)
Instinto
Eis um assunto
para muitos
estudos. Kardec
utilizou-o
diversas vezes.
Está em O
Livro dos
Espíritos,
nas questões 73
a 75 e 845,
entre outras
citações. Também
é abordado em
A Gênese, no
capítulo III e
aparece em O
Evangelho
segundo o
Espiritismo
(capítulo XI –
Instruções dos
Espíritos, em
mensagem de
Lázaro). Na
Revista Espírita
está no volume
do ano de 1862,
mês de
fevereiro. Claro
que há outras
fontes, mesmo na
Codificação, mas
nos limitamos a
estas
indicações. O
interesse pela
abordagem do
tema “instinto”
surgiu em
virtude de um
excelente filme
já disponível
nas locadoras.
O filme
Instinto,
com Anthony
Hopkins e Cuba
Gooding Jr.,
como o próprio
nome diz, trata
do tema
aludido. O
filme é um grito
à liberdade, um
protesto à
manipulação de
qualquer nível,
embora sem
sancionar o uso
da violência
apresentada. Em
resumo, ele
relata a
situação de um
estudioso da
vida animal que
passa a viver na
floresta em
companhia de
gorilas.
Introduz-se
gradativamente
entre os
animais,
conhecendo seus
costumes e
hábitos, sendo
inclusive aceito
como integrante
da família de
gorilas. Tempos
depois, foi
preso, tachado
doente mental
agressivo,
acusado de
assassinato de
diversos guardas
florestais.
Recolhido à
penitenciária de
segurança máxima
para doentes
agressivos,
despertou a
atenção de jovem
médico
psiquiátrico que
se interessa
pelo seu caso:
um recolhido
silencioso,
considerado
agressivo,
irrecuperável e
mantido
algemado.
O jovem médico
consegue o que
parecia
impossível:
ajuda o doente
falar e, com
isso, é
permitida sua
soltura das
algemas. Das
sessões de
terapia
psiquiátrica
consegue extrair
a razão da
violência:
quando na
floresta, em
companhia dos
gorilas, os
animais foram
atacados
impiedosamente
por guardas
florestais e
ele, na defesa
instintiva de
sua família (*),
utiliza-se da
agressão e acaba
assassinando
vários guardas.
No curso do
filme, quando o
médico estava
prestes a
efetivar sua
liberdade, um
colega de prisão
foi atacado por
um dos
carcereiros, e
nosso
personagem,
novamente na
defesa
instintiva de
sua família (*),
volta a usar de
extrema
violência,
complicando em
definitivo
qualquer
possibilidade de
liberdade.
A conclusão do
filme, deixamos
à expectativa do
leitor, mas
destacamos o
inteligente
roteiro usado
pela produção. O
filme destaca
valores reais da
vida humana,
como a
solidariedade, e
mostra a
superficialidade
das ilusões,
mantidas muitas
vezes à custa de
manipulações,
sacrifício da
liberdade (e
cujas grades nós
mesmos
construímos) e
tolas vaidades,
verdadeiramente
passageiras.
O instinto
solicita o uso
da razão para
evitar o
comprometimento
indevido, como
aconteceu no
filme. A
mensagem é muito
profunda, pois
leva ao
questionamento
das ilusões que
alimentamos e
prisões em que
nos trancamos
por força das
circunstâncias
que nos cercam
ou pelo desejo
de agradar
sempre...
De outro
aspecto, cientes
da justa
reprovação
social da
violência dos
assassinatos,
ainda que na
luta pela
preservação, o
filme nos revela
a facilidade da
escravidão que é
orientada pelo
jogo das
relações humanas
e imposta pela
sociedade. Ah!
Isto é
inquestionável.
E foi justamente
este quadro
social enfermiço
que o personagem
principal buscou
mostrar ao seu
legítimo
defensor. Neste
ponto, prefiro
ficar com o
posicionamento
de outro
excelente filme,
Uma estória
americana,
que narra sobre
o preconceito
racial americano
e culmina com
uma reação sem
violência
daqueles que
eram
discriminados,
segundo o uso da
razão em lugar
do instinto e,
por isso, mais
ajustada aos
princípios
usados pelo
grande Gandhi.
Mas verifiquemos
os estudos
apresentados por
Allan Kardec.
Dentre as
citações
indicadas no
início do
artigo,
utilizemos, para
esclarecer o
tema, em
primeiro lugar,
a transcrição da
Revista
Espírita.
Nela, Kardec
inseriu mensagem
do Espírito
Lázaro,
intitulada
Sobre os
instintos.
Diz a mensagem:
“(...)
Primitivamente
destinado a
desenvolver no
homem animal o
cuidado de sua
conservação e de
seu bem-estar, o
instinto é a
única origem do
mal; porque,
persistindo mais
violento e mais
áspero em certas
naturezas, ele
as impele a se
apoderarem do
que desejam ou a
concentrar o que
possuem. O
instinto, a que
os animais
obedecem
cegamente, e que
é a sua própria
virtude, deve
ser
incessantemente
combatido pelo
homem que quer
elevar-se e
substituir o
grosseiro
utensílio da
necessidade
pelas armas
finamente
cinzeladas da
inteligência.
(...) O instinto
é mau porque é
puramente humano
e a humanidade
não deve pensar
senão em se
despojar, em
deixar a carne
para elevar-se
ao Espírito.
(...) Nada de
verdadeiramente
bom pode emanar
do instinto.
(...)” (1)
Kardec comenta,
no que tange à
mensagem
referida, que,
não obstante o
respeito
creditado ao
autor Espírito,
permite-se não
concordar com as
últimas
proposições da
mensagem.
Explica o
Codificador que
“Pode-se dizer
que há duas
espécies de
instintos: o
animal, e o
moral. O
primeiro, como
diz muito bem
Lázaro, é
orgânico; é dado
aos seres vivos
para a sua
conservação
(...); é cego,
quase
inconsciente,
porque a
Providência quis
dar um
contrapeso à sua
indiferença e à
sua negligência.
Já o mesmo não
se dá com o
instinto moral,
que é privilégio
do homem. Pode
ser assim
definido:
propensão inata
para fazer o bem
ou o mal. Ora,
essa propensão é
devida ao estado
de maior ou
menor avanço do
Espírito. O
homem cujo
espírito já é
depurado faz o
bem sem
premeditação e
como uma coisa
muito natural,
pelo que se
admira de ser
louvado. Assim,
não é justo
dizer que ‘os
homens que não
são bons e
devotados, senão
instintivamente,
o são mal;
porque sofrem
uma cega
dominação que,
de repente, pode
precipitá-los no
abismo’ (citação
de Lázaro na
mensagem acima
transcrita, ali
não repetida) .
Os que são
instintivamente
bons e devotados
denotam um
progresso
realizado.
(...)” (1)
A explicação de
Kardec se
coaduna com a
narrativa do
filme
Instinto.
Dominado pelo
instinto, o
protagonista
usou da
violência. Se
houvesse no
personagem a
propensão inata
para fazer o bem
– devida ao
estado de maior
ou menor avanço
do Espírito,
como citou
Kardec, a
violência seria
substituída pela
reflexão madura.
De igual forma,
ensina a
resposta à
questão 845 de
O Livro dos
Espíritos:
“As
predisposições
instintivas são
do Espírito
antes de sua
encarnação.
Conforme for ele
mais ou menos
avançado, elas
podem
solicitá-lo para
atos
repreensíveis, e
ele será
secundado nisso
pelos Espíritos
que simpatizam
com essas
disposições, mas
não há
arrebatamento
irresistível,
quando tem a
vontade de
resistir. (...)”
(2) E,
outrossim, como
afirma em A
Gênese:
”(...) Nos atos
instintivos, não
há nem reflexão,
nem combinação e
nem
premeditação.
(...)” (3)
Já, em O
Evangelho
segundo o
Espiritismo,
o mesmo Espírito
Lázaro pondera
que “(...) no
seu início o
homem não tem
senão instintos
e aquele, pois,
em quem os
instintos
dominam está
mais próximo do
ponto de partida
do que do
objetivo. Para
avançar em
direção ao
objetivo, é
preciso vencer
os instintos em
proveito dos
sentimentos,
quer dizer,
aperfeiçoar
estes sufocando
os germes
latentes da
matéria. Os
instintos são a
germinação e os
embriões dos
sentimentos;
eles carregam
consigo o
progresso
(...).”
(4)
Tal comentário,
desse modo,
leva-nos ao
Capítulo das
Paixões.
Comenta Allan
Kardec, após a
resposta da
questão 908: “As
paixões são
alavancas que
decuplicam as
forças do homem
e o ajudam na
realização dos
objetivos da
Providência. Mas
se, em lugar de
dirigi-las, o
homem se deixa
dirigir por
elas, cai nos
excessos e a
própria força
que, em suas
mãos, poderia
fazer o bem,
recai sobre ele
e o esmaga.
Todas as paixões
têm seu
princípio num
sentimento ou
necessidade
natural... O
princípio das
paixões,
portanto, não é
um mal, visto
que repousa
sobre uma das
condições
providenciais de
nossa
existência. A
paixão,
propriamente
dita, é o
exagero de uma
necessidade ou
de um
sentimento. Ela
está no excesso
e não na causa,
e esse excesso
torna-se um mal
quando tem por
conseqüência um
mal qualquer.
Toda paixão que
aproxima o homem
da natureza
animal o
distancia da
natureza
espiritual”. (5)
O filme
Instinto,
portanto, traz
importante
contribuição
para o
entendimento do
domínio das
paixões e pela
necessária
prevalência do
sentimento sobre
o instinto, sem
olvidar outros
questionamentos
significativos
sobre a vida
social.
Sugerimos com
ênfase aos
leitores que
assistam ao
filme e, com o
fim de um sadio
entendimento,
busquem, nessa
direção, o apoio
dos ensinos da
Doutrina
Espírita, sempre
luz em nossos
caminhos.
(*) O destaque
para a expressão
“sua família” é
proposital,
segundo a
narrativa do
filme: tanto em
companhia dos
gorilas, como em
companhia dos
demais presos.
Ora, mesmo sem
os laços da
consangüinidade,
o instinto de
conservação leva
à defesa mútua
dos companheiros
de convivência.
Sem falar dos
laços de família
ou raça,
presenciei
pessoalmente
esta questão de
solidariedade
entre pessoas
estranhas entre
si, porém, que
passaram à
rotina da
convivência.
Durante os anos
de direção de um
lar de idosos,
pude observar
atentamente os
laços de
solidariedade
que são
estabelecidos
entre internos
que juntos
convivem, embora
despidos de
outros vínculos
que os poderiam
prender
emocionalmente.
A convivência,
no caso,
estreitou os
laços e os
afetos,
possibilitou a
solidariedade,
portanto.
Fontes:
(1) Fevereiro de
1862, edição
EDICEL –
tradução de
Júlio Abreu
Filho.
(2) 78ª edição
IDE, tradução de
Salvador Gentile.
(3) 1ª edição
IDE, capítulo
III, item 11,
tradução de
Salvador Gentile.
(4) 107ª edição
IDE, capítulo
XI, item 8,
tradução de
Salvador Gentile.
(5) Questões 907
a 912 de O Livro
dos Espíritos.