CHRISTINA NUNES
cfqsda@yahoo.com.br
Rio de Janeiro,
RJ (Brasil)
Amor, não apenas
próprio
Ocorreu-me, de
repente, a
lembrança
engraçada de uma
historinha em
quadrinhos, que
li na minha
infância; muitas
vezes é dessa
forma que me vem
a inspiração
para a
construção de um
artigo.
Relatando de
forma resumida,
uma menininha
morava isolada
num castelo
repleto de
moedas de ouro,
e circundado por
um fosso escuro,
onde vivia um
dragão
mergulhado em
suas águas
sombrias. A
menininha não
dava a menor
bola para
aqueles
milhares de
moedas de ouro,
mas aquilo era
um feitiço. O
dragão só
deixaria
atravessar o
fosso alguém que
o fizesse, não
pelos
milhares de
moedas, mas pela
menininha, que
vivia sonhando
em ter alguém
com quem
brincar.
Uma multidão
constante
cercava a área
ao redor daquele
fosso imenso com
seu castelo no
centro. As
tentativas para
alcançá-lo eram
infindáveis. Uns
tentavam salto
com vara; mas
nunca dava
certo, e dessa
maneira muitos
morriam nas
garras do
dragão,
implacavelmente.
Outros, nadando,
na tentativa de
burlar a
vigilância do
monstro, tinham
o mesmo triste
destino; uma
mulher no meio
daquela multidão
comentava que
seu marido podia
treinar pombos
que voassem até
o interior do
castelo,
passando por uma
das muitas
janelas, para
trazerem as
moedas, de uma
em uma. E a
melancólica
menininha
prosseguia,
dessas janelas,
presenciando o
espetáculo
lamentável, a
respeito do qual
nada podia
fazer. Suspirava
em desânimo, e
voltava para o
interior da
imensa e
solitária
moradia.
Até que um dia,
quando muitos já
haviam
desistido, um
menino sujo e
esfarrapado
apareceu e viu a
menininha na
janela, com sua
expressão
triste. Ele já
tinha ouvido as
histórias sobre
a fortuna
existente dentro
daqueles muros,
mas não deu a
isso a menor
atenção; somente
quando viu a
menininha,
apiedou-se de
que ela ali
vivesse daquele
jeito tão
solitário, e
logo teve
vontade de
entrar para
conversar e
brincar com ela.
Então aconteceu
o fenômeno.
Quando o menino
pensava na
melhor forma de
atravessar
aquelas águas, o
dragão
ameaçador, de
repente, emergiu
e, estranhamente
dócil, formou,
com seu imenso
corpo, uma ponte
entre a margem
onde se achava o
menino e o outro
lado, a ilhota
onde ficava o
castelo. A
menininha
exultou, vendo o
espetáculo da
janela mais
alta; e o
menino,
agradecido,
atravessou
alegremente,
encontrando
pouco depois a
pequena. O
dragão, então,
inesperadamente,
transformou-se
numa linda e
permanente ponte
de ouro, que
libertou a
menininha de seu
cativeiro. Ela e
seu amigo, a
partir de então,
brincavam muito
de empilhar
aquele amontoado
enorme de
moedas, e
atravessavam,
sempre que
queriam, para a
outra margem.
Conto esta
historieta a
propósito do que
é notório; a
tendência do ser
humano a
supervalorizar
as
transitoriedades
ilusórias da
vida, em
detrimento da
preciosidade do
afeto e do amor
entre as
pessoas.
Sem embargo,
percebe-se que
flui muito mais
facilmente a
crítica
impiedosa do que
o elogio
encorajador;
alguém certa vez
comentou,
desencantadamente,
que ouvira da
pessoa, com quem
estivera
envolvido, que
ele deveria
"demonstrar
menos seus
sentimentos",
naquela
manifestação
típica de
pobreza de
espírito que
considera as
expansões
espontâneas de
afeto como
atestado de
falta de
amor-próprio –
no uso da
conhecida e
lastimável
política tacanha
de não se
elogiar, não se
demonstrar amor
e afeto pelo
próximo para
"não dar
cartaz".
E, no entanto,
os seres humanos
chegam muitas
vezes ao extremo
de se aviltarem
e de se
corromperem por
causa de um
quinhão de
dinheiro a mais.
Os pruridos de
amor-próprio,
tão tenazmente
mantidos na hora
de se mostrar um
pouco mais de
lealdade, de
amor e de
ternura, se
esvaem como
névoa, quando o
objeto da cobiça
é o dinheiro, ou
são os bens
materiais.
Travam-se
batalhas
judiciais
seculares nas
disputas pelas
posses de bens
familiares; nos
casos de
separação
conjugal, o
"cartaz" que não
se deu ao
cônjuge em
outros tempos
felizes, a
título da
preservação do
amor-próprio, é
enxovalhado da
forma mais
rasteira, ao
desviar-se para
o reles aparelho
de DVD que "é
meu de direito,
pois fui eu que
comprei". As
pessoas, tão
zelosas em não
demonstrarem
afetividade por
escrúpulos
mesquinhos, não
se doem de
abrirem mão tão
grotescamente da
sua dignidade na
luta cruenta por
valores
tacanhos, quase
sem se darem
conta da
contradição
clamorosa nos
seus
posicionamentos.
É relevante
fazer notar que
qualquer crítica
vinda de bocas
não adestradas
no amor e no
elogio justo se
desautoriza por
si própria, por
carecer de
respeitabilidade
e da expressão
da sensatez.
Alguém que
conheci outrora,
extrato do
equilíbrio na
educação e
criação de seus
filhos já
adultos, pessoas
amorosas e
espiritualmente
elevadas, me
afiançou tê-los
criado "na base
do elogio" – e
eu entendi
plenamente o que
aquela amorável
senhora quis
dizer. Ela não
se referia a
"elogios"
desmerecidos,
mal colocados, e
exclusivos no
processo de
educação.
Mencionava o seu
uso de entremeio
à orientação
sensata e
madura, que
ensina as
crianças a
desenvolverem as
próprias forças,
no
amadurecimento
da consciência
plena do seu
valor e
potencial
humano, para
superar com
sucesso seus
desafios. E isto
é exemplo a ser
seguido em
qualquer nível
do
relacionamento
humano.
Projetar no seu
próximo energias
positivas,
reconhecendo as
suas melhores
qualidades,
distinguindo-o
com amizade e
com carinho, é
fazer como o
dragão, que vê a
luz no coração
do menino e se
transforma em
ponte para
fortificar e
participar da
felicidade do
semelhante.
Quem, ao
contrário, age
como a multidão
tola em torno do
fosso, pensando
apenas em si
próprio e em
bens materiais,
sem afeto e
compaixão a
oferecer,
isola-se –
decreta sua
própria prisão
para longe do
oásis valioso do
amor, habitat da
verdadeira
felicidade, onde
todos celebram a
perenidade e as
alegrias
inestimáveis da
união e da luz,
para muito além
da ilusão
errônea e fugaz
em torno de
"moedas de ouro"
e de uma coisa
que, mal
conceituada de
"amor-próprio",
é, antes,
desamor e
"egoísmo cego".