MILTON R.
MEDRAN MOREIRA
medran@via-rs.net
Porto Alegre,
Rio Grande do
Sul (Brasil)
Os novos
excomungados
Você tem ideia
do que
significava para
alguém, no
Estado
teocrático, ser
excomungado?
Atente para a
etimologia da
palavra:
excomunhão
significa
literalmente ser
retirado da
comunhão com os
outros. Pois era
isso mesmo. O
cristão
excomungado
perdia
inteiramente o
direito de
conviver com
quem quer que
seja: com a sua
família, com os
seus amigos, com
a Igreja e, pelo
poder que todos
reconheciam na
autoridade
religiosa, com o
próprio Deus.
Não podia haver
maior desgraça.
Aliás, aí está
outra palavrinha
que talvez nos
ajude a imaginar
a tragédia
imposta a um
excomungado:
desgraça,
literalmente, é
a ausência da
graça. O sujeito
excomungado
perdia a graça,
que era da
alçada divina.
E, ora, se Deus
o havia
desgraçado,
afastando-o de
Sua presença,
quem ousaria lhe
oferecer
qualquer forma
de convivência?
Nesse tempo, a
fonte do Direito
era basicamente
uma só: ele
provinha,
dizia-se,
diretamente de
Deus. Seus
intérpretes eram
as autoridades
religiosas, que,
afinal, ungidas
de Deus,
detinham, só
elas, a
administração da
verdade, que era
sagrada, eterna
e imutável. Por
isso, também, o
maior de todos
os delitos era a
descrença.
Ausência de fé,
especialmente
quando expressa
concretamente
pela palavra ou
a ação em
desacordo com a
verdade revelada
por Deus – fonte
absoluta do
Direito –, se
constituía na
ignomínia
suprema, na mais
vil
desobediência.
Passível, pois,
da excomunhão.
Depois, bem,
depois o homem
foi iluminado
pela concepção
do Direito
Natural,
resgatada do
antigo
pensamento
grego. Um de
seus mais
ilustres
formuladores, um
holandês chamado
Hugo Grócio
(1583-1645),
ousou afirmar o
Direito como
algo inerente ao
homem e não,
necessariamente,
provindo daquele
Deus pessoal que
regulava a vida
do indivíduo e
da sociedade.
Para escândalo
de muitos,
chegou a
declarar que o
Direito Natural
existiria mesmo
que Deus não
existisse ou
que, existindo,
não se
envolvesse com
as questões
humanas. O
Direito, a
partir dali,
começava a se
emancipar da
religião. O que
não significava,
necessariamente,
emancipar-se de
Deus. Pelo menos
para aqueles
capazes de
percebê-lo na
harmonia da
natureza e na
consciência do
justo que
repousa no
íntimo do
coração humano.
Começava ali a
mais fantástica
aventura humana,
com a qual,
aliás, a
religião nunca
iria se
conciliar.
Quando, nos dias
de hoje, um
purpurado da
Igreja declara
excomungados
médicos e pais
de uma criança
de nove anos de
idade, por
submeterem-na a
um aborto, única
forma
reconhecida pela
lei e a medicina
de preservar sua
vida e sua
dignidade, ele e
a instituição
que representa
dão clara
demonstração
dessa radical
inconformidade.
E dão, com isso,
testemunho do
também radical
divórcio entre a
religião e o ser
humano. O
Direito do qual
se dizem
representantes
deixa de ser o
Direito dos
homens e da
natureza que os
envolve. Mas
também não é o
daquele Deus que
o ser humano foi
capaz de
descobrir nas
leis naturais –
e, logo, divinas
– e na
intimidade de
sua própria
consciência.
Razão e
sentimentos,
conjugados,
geraram o novo
homem. Este só
tem uma certeza:
a de que a
verdade absoluta
lhe é
inacessível. E
sempre que, em
nome da verdade,
lhe ameacem ou
soneguem a
liberdade e a
dignidade
conquistadas,
reage com o que
lhe restou de
verdadeiramente
sagrado nessa
fantástica
aventura: a sua
condição
humana.
Ela, a condição
humana,
percebe-se hoje,
é a justa medida
do Direito. Em
seu nome, o ser
humano já pode,
sem qualquer
temor às suas
terríveis
sanções,
exorcizar os
antigos
detentores da
verdade,
isolando-os em
suas catedrais,
para que ali, e
somente ali,
cultuem suas
verdades eternas
e imutáveis. É
assim que, pouco
a pouco, eles se
tornam estranhos
à comunhão
humana.
Literalmente,
excomungados.
Por opção
própria.
O
autor é
Procurador de
Justiça
aposentado e
jornalista.
(Artigo
publicado no
jornal Zero
Hora, de Porto
Alegre, na
edição de
10/03/2009.)