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Ano 3 - N° 110 – 7 de Junho de 2009

JÁDER SAMPAIO
jadersampaio@uai.com.br
Belo Horizonte, Minas Gerais (Brasil)

 

Visão espírita das curas
e passes na tradição
judaico-cristã

A imposição de mãos foi utilizada com frequência por Jesus, embora não haja relatos de passes (movimentação de mãos),
e as obsessões foram quase totalmente tratadas com
diálogos estabelecidos com os Espíritos que
Jesus tratava com autoridade
 

(1ª Parte)


Os livros da Bíblia são uma grande referência cultural para a civilização como um todo. Afirmados ou contraditados pelos sistemas filosóficos contemporâneos, usados às vezes como um conhecimento que foi válido um dia, defendidos por crentes ardorosos e confiantes na fé, os postulados bíblicos continuam presentes no nosso cotidiano. 

Kardec incentivou os espíritas ao estudo bíblico à luz do Espiritismo, ao afirmar que “O Espiritismo se nos depara por toda a parte na antiguidade e nas diferentes épocas da Humanidade. Por toda parte se lhe descobrem os vestígios: nos escritos, nas crenças e nos monumentos. Essa a razão por que, ao mesmo tempo que rasga horizontes novos para o futuro, projeta luz não menos viva sobre os novos mistérios do passado.” (KARDEC, 1978, p. 27.) 

As doenças eram tratadas ou curadas com alguma prática semelhante ao passe nos escritos bíblicos? Como se interpretavam no contexto do antigo e do novo testamento as práticas de cura a partir da imposição de mãos? Como o Espiritismo codificado por Allan Kardec é afetado pela tradição cristã da imposição de mãos? 

Doença e pecado 

Na introdução de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, Kardec defende a necessidade de se entender o significado das palavras encontradas nos escritos hebreus e cristãos em sua época porque elas “caracterizam o estado dos costumes e da sociedade judia naquela época” e hoje têm sentido diferente, dificultando a compreensão. Ele propõe que se faça um estudo hermenêutico, que se diferenciem os mitos e lendas dos fenômenos históricos e que se possam explicar algumas passagens, até hoje compreendidas pela fé como milagres ou ação de Deus, a partir dos princípios e da fenomenologia espírita. 

Um estudo compreensivo do Antigo Testamento vai encontrar nos descendentes de Moisés um entendimento da doença como um castigo divino aos pecados da própria pessoa ou de seus ascendentes. Moisés, no Pentateuco, estabeleceu, em nome de Iahweh, todo um rito que tinha por função o reconhecimento e a purificação dos pecados. Originalmente, este perdão dos pecados estava associado aos sacrifícios de animais, especialmente os novilhos, os cordeiros e os bodes (daí a expressão bode expiatório). 

O rito sacerdotal e os sacrifícios tinham uma função mediadora entre os homens e a divindade, ou seja, tornavam pública e exterior a crença e a aceitação perante a sociedade das leis atribuídas a Deus. 

O adoecimento de Jó 

A associação entre doença e punição divina é muito clara no livro de Jó. Neste possível mito bíblico, Jó é um homem que age no atendimento cuidadoso, para não dizer obsessivo, dos cuidados prescritos por Deus, para evitar o mal e a doença em sua vida. Ele tem muitas esposas, filhos, rebanhos e riquezas, o que sinaliza ao leitor que ele recebeu a prosperidade em troca da fé, a promessa do Antigo Testamento. Inusitadamente, em uma esfera divina, Satanás questionaria a Deus se, ao contrário do que ele afirmava, a fé não seria fruto da prosperidade. 

Sem que Jó tivesse consciência, Deus, nesta história, põe-lhe à prova a fé, permitindo que todos os seus bens (incluindo-se aí a sua família) lhe fossem “tomados” e, posteriormente, que a saúde lhe fosse afetada. O texto bíblico se desenvolve em um diálogo intimista entre Jó e três amigos que o vieram consolar, e se torna uma espécie de reflexão da fragilidade e da incompreensão humanas ante os desígnios divinos.  

Uma questão em especial incomoda a Jó: ele era fiel àquilo que Deus lhe havia solicitado por meio da lei mosaica, e não compreendia por que padecia todas aquelas perdas e doenças, como se pode ler no livro de Jó, capítulo 27: “Pelo Deus Vivo que me nega justiça, por Shaddai que me amargura a alma, enquanto em mim houver um sopro de vida e o alento de Deus nas narinas, meus lábios não dirão falsidades, nem minha língua pronunciará mentiras! Longe de mim dar-vos razão! Até o último alento manterei minha inocência, fico firme em minha justiça e não a deixo. A consciência não me envergonha por meus dias (...)” 

Fica evidente que o homem do Antigo Testamento, que cumpre o “pacto ritual com Deus”, não entende o adoecimento que não cede à rudimentar medicina hebraica ou aos sacrifícios, se não tiver cometido algum pecado. A doença que resiste ao tempo e aos remédios é vista como castigo de Deus. Em Jó, a doença é uma prova de fé, que o herói do Antigo Testamento não é capaz de perceber.

Ainda no Antigo Testamento há outras evidências de a doença ser um sinal da ação divina. O Espiritismo não defende a existência de uma divindade do mal. No mito de Jó, Satanás não personifica um Espírito mau, mas a precariedade do mundo e da vida, que possibilita que qualquer homem passe por provas, seja ele religioso ou não. Shaddai, segundo a Bíblia de Jerusalém, é um “antigo nome divino da época patriarcal, mantido especialmente pela tradição sacerdotal”. O sentido da palavra poderia ser “Deus da Montanha”, se a palavra for originada no acádico Shadû, ou “Deus da Estepe”, se oriundo do hebraico Sadeh. 

Elias, o “Homem de Deus” 

Elias é um outro herói legendário bíblico que defende a fé em Iahweh e se opõe a outras crenças, como a do Deus Baal. No primeiro livro de Reis, capítulo 17, Elias vai à cidade de Sarepta, ordenado por Deus, e fica na casa de uma viúva com o filho doente. Após um episódio semelhante à multiplicação dos pães do Novo Testamento, o filho da viúva “adoeceu, e seu mal foi tão grave que ele veio a falecer”. 

Para o nosso estudo, interessa o comentário da mãe do menino, que diz: “Que há entre mim e ti, homem de Deus? Vieste à minha casa para reavivar a lembrança das minhas faltas e causar a morte do meu filho!” 

A viúva não pergunta, afirma sonoramente sua crença na associação entre as faltas e a morte do filho. Ela entende também que Elias é homem de Deus, porque a capacidade de punir as faltas com a morte ou a doença é um poder divino. Elias toma o menino, estende-se sobre ele por três vezes, e pede a Iahweh que lhe devolva a alma, fazendo-o reviver. Imediatamente, a viúva comenta: “Agora sei que és um homem de Deus e que Iahweh fala verdadeiramente por tua boca!” 

Mito ou realidade, história ou lenda, já se encontra no Antigo Testamento uma prática semelhante à dos passes magnéticos, só que no contexto cultural da época, que explica o entendimento do seu resultado por meio de uma ação divina. 

O Messias de Isaías 

O livro de Isaías, no conjunto do Antigo Testamento, além do caráter político, no qual ele incentiva seu povo a abandonar as alianças políticas com assírios e egípcios para confiar em Deus, denuncia a corrupção dos costumes e anuncia a vinda do Messias. A concepção do Messias em Isaías é complexa e foge ao escopo deste texto, interessando uma de suas características divinas: a capacidade de curar as doenças, libertando os homens do sacrifício ritual para Deus. 

Isaías assim escreve: “... e, no entanto, eram as nossas enfermidades que ele levava sobre si, as nossas dores que ele carregava” (Isaías 53:4). 

Iahweh, segundo a Bíblia de Jerusalém, é o nome que Deus dá a Moisés para ser ensinado ao povo, quando está na montanha. Há uma discussão etimológica sobre o seu nome, mas a palavra está relacionada ao verbo ser e pode ser traduzida como “Aquele que é” e traz em seu bojo o significado da existência, ou seja, ele apresenta-se como o único que realmente existe.   

Baal, segundo o Houaiss, é o nome de uma divindade cananeia e fenícia, adorada por outros povos do Oriente próximo na antiguidade. Essa passagem levou o evangelista Mateus a reconhecer em Jesus, após a expulsão dos Espíritos e a cura de enfermos na casa da sogra de Pedro, a pessoa do Messias pregado por Isaías (Mt 8:17). 

As curas de Jesus 

Parte significativa dos evangelhos trata das curas realizadas por Jesus. Kardec evita discuti-las em “O Evangelho segundo o Espiritismo”, mas dedica toda uma parte de “A Gênese” explicando-as com o auxílio da Doutrina Espírita. 

Kardec entende que Jesus não agia como médium nas curas que efetuava, por não necessitar de assistência, mas “agia por si mesmo, em virtude do seu poder pessoal, como o podem fazer, em certos casos, os encarnados, na medida de suas forças”. (KARDEC, 1973, p. 311.) 

As descrições das curas nos evangelhos compreendem imposição de mãos, toques, aplicação de barro sobre o órgão afetado, cura a distância, entre outras.

a) Imposição de mãos - São muitas as passagens em que Jesus cura impondo as mãos sobre os doentes. Como exemplos, Mateus narra o pedido de Jairo a Jesus, que imponha as mãos sobre a filha, considerada morta (Mt 9:18 e Mc 5:21) e Marcos relata que Jesus curava enfermos impondo as mãos (Mc. 6:5). Esta capacidade, na cultura judaica, como já foi dito anteriormente, era própria dos profetas. Foi após um episódio de curas que Mateus identifica Jesus como sendo o Messias (Mt 8:17), ao transcrever uma fala de uma pessoa do povo, que repete a profecia  de  Isaías.  O conceito  de

saúde não se dissociava da influência de demônios. São inúmeras as passagens em que Jesus conversa com demônios ou os expulsa de pessoas. Lucas (Lc. 13:11) narra a cura de uma possessa encurvada por meio da imposição de mãos. A imposição de mãos parece ter um outro sentido, talvez uma bênção ou, em linguagem médica contemporânea, um papel profilático. Em outra passagem evangélica, Mateus (Mt. 19:14 e 15) relata Jesus impondo as mãos sobre os meninos que queriam vê-lo e em princípio haviam sido impedidos pelos apóstolos. Eles não se encontravam doentes e, ao que parece, apenas desejavam conhecer a Jesus. Além da imposição de mãos, outras formas de tratamento são descritas nos Evangelhos. 

b) Toque de mãos - Jesus curou a sogra de Pedro tocando-a com as mãos (Mt. 8:15). Também a mulher hemorroíssa teve sua doença curada, mas foi ela quem tocou as vestes de Jesus (Mt 9: 20-22), que lhe disse: “Ânimo, minha filha, a tua fé te salvou”. Três dos evangelistas (Mt. 9: 18-26, Mc 5:21-43 e Lc 8:40-56) narram a cura da filha de Jairo, chefe da Sinagoga. Ela era considerada morta, mas Jesus diz que ela não havia morrido, que estava apenas dormindo. Ele “tomou-a pela mão e ela se levantou”. 

c) Cura a distância ou por meio do diálogo - Jesus curou os dez leprosos (Mt. 17:11-19) mandando-os de volta à cidade. A cura se efetuou no caminho e um deles voltou para agradecer. Jesus lhe pergunta sobre os outros nove e lhe diz: “Levanta-te e vai; a tua fé te salvou”. Jesus cura o paralítico de Cafarnaum, segundo Mateus (Mt. 8:1-8), apenas dizendo: “Tem ânimo, meu filho; os teus pecados são perdoados” e depois “Levanta-te, toma tua cama e vai para casa”. No templo (Mc 3:1-5) Jesus apenas pediu que um homem estendesse sua mão atrofiada e ela ficou curada. Jesus (Mc. 1:23-28) adverte um “Espírito impuro” em uma sinagoga, o qual subjugava um homem, ordenando-lhe: “cala-te e sai dele”. Também conversando, Jesus cura os dois endemoniados gadarenos, considerados violentos (Mt 8:28-33), expulsando os demônios. Marcos (Mc. 9:14-29) relata a expulsão de um demônio que atormentava um menino com sinais de epilepsia (“Quando ele o toma, atira-o pelo chão. E ele espuma, range os dentes e fica ressequido”). Jesus dirigiu a palavra ao Espírito impuro dizendo-lhe: “Espírito mudo e surdo, eu te ordeno: deixa-o e nunca mais entres nele”. O menino ficou como morto e Jesus tomou-lhe a mão, levantando-o. O filho de uma viúva da cidade de Naim (Lc. 7:11-17) e Lázaro (Jo. 11:1-43), considerados mortos, acordam de seu sono mediante a voz sonora de Jesus que os chama de volta. 

d) Cura com saliva e barro - Marcos (Mc 8:22-26) narra a cura do cego de Betsaida na qual Jesus passa saliva sobre os olhos e lhe impõe as mãos. A cura é comentada por Kardec em “A Gênese” (cap. 15). João (Jo. 9:1-41) relata a cura de um cego de nascença, para a qual Jesus mistura saliva ao barro, passa sobre seus olhos e manda seja lavada a mistura no tanque de Siloé. O mendigo, agora curado, vai ao templo e enfrenta fariseus e sacerdotes, confirmando a cura de Jesus e considerando-o um profeta por tal. 

Estas citações estão longe de esgotar todas as narrativas de curas encontradas nos Evangelhos. Kardec destaca o desconhecimento de doenças que eram tomadas como ação de demônios e Espíritos impuros, como a epilepsia, os estados de coma e a mudez, doenças que o Espiritismo contemporâneo não confundiria com obsessão espiritual, embora possam apresentar um componente obsessivo. 

A imposição de mãos foi extremamente utilizada por Jesus, embora não haja relatos de passes (movimentação de mãos). As obsessões foram quase totalmente tratadas com diálogos estabelecidos com os Espíritos que Jesus tratava com autoridade, autoridade esta que estamos longe de ter nos dias de hoje. 

A ideia de que Jesus tinha uma capacidade superior é mantida por Kardec, mas não se pode esquecer de analisar a trajetória dos apóstolos. Eles também apresentam capacidade de curar e usam para isso a imposição de mãos. (Leia a conclusão deste artigo na próxima edição desta revista.) 

 

Fontes bibliográficas: 

A Bíblia de Jerusalém. São Paulo: Paulinas, 1985.

GOMES, Mauro. O toque das mãos do rei. Acesso em 01/12/ 2007. Disponível em http://www.pulmonar.org.br/blog/tuberculose/o-toque-das-maos-do-rei/.

KARDEC, Allan. O Evangelho segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: FEB, 1978. [Edição Popular]

______ A Gênese. Rio de Janeiro: FEB, 1973.

MICHAELUS. Magnetismo Espiritual. Rio de Janeiro: FEB, 1983.

OLIVEIRA, Maria Izabel B. Morais. O milagre régio e o ciclo legendário em prol do fortalecimento do poder, no círculo de Carlos V França (1364-1380), Revista de História e Estudos Culturais, v.3, n. 1, jan/mar 2006.
 

 


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