MILTON R.
MEDRAN MOREIRA
medran@via-rs.net
Porto Alegre,
Rio Grande do
Sul (Brasil)
Um pintor cego.
Dá para
explicar?
Os gênios também
divergem.
Discípulos
dissentem de
seus mestres.
Foi o que
aconteceu entre
Platão e
Aristóteles e
suas respectivas
teorias do
conhecimento.
Platão defendia
a tese das
ideias inatas.
Para ele, a
alma, e só ela,
era detentora do
conhecimento.
Seu mais famoso
discípulo
discordou.
Aristóteles
cunhou a frase
que aprendi nos
velhos tempos de
latim: “Nihil
est in
intelelectu quod
non prius fuerit
in sensu” (nada
está no
intelecto que
não tenha
primeiro passado
pelos sentidos).
Ou seja: é pela
visão, pelo
tato, pelos
sentidos
corporais,
enfim, que
adquirimos o
conhecimento.
Sem experienciar,
nada aprendemos.
Diferente de seu
mestre para quem
“aprender é
recordar”, ou
seja, é acessar
o imenso
universo das
ideias que
deixamos lá fora
da caverna, onde
estamos
acorrentados e
permaneceremos
enquanto nossa
alma não se
libertar do
corpo.
Estou recorrendo
aos dois gênios
da Grécia Antiga
para tentar
desvendar um
mistério de
nossos dias. Na
Turquia, não
muito distante,
pois, da pátria
onde se deu esse
embate
intelectual, um
homem chamado
Esref Armagan
encanta e
confunde o
mundo. Encanta
porque pinta
maravilhosamente
bem. Uma pintura
leve, cheia de
cores, de
gramados muito
verdes, de
casinhas
multicoloridas
com vasos de
flores nas
janelas e
passarinhos
pousando nelas.
Confunde porque
esse homem
nasceu cego.
Nunca enxergou.
Sua relação com
tudo o que o
rodeia dá-se
preferentemente
pelo tato. Para
pintar seus
quadros toca nas
flores, nas
plantas, nas
pessoas e,
depois,
reproduze-as com
os acréscimos
que sua alma de
artista é capaz
de criar.
De sua alma, eu
falei? Bem, aí é
que a coisa
pega. O mundo
pós-moderno está
muito mais para
aristotélico do
que platônico. A
alma dos
filósofos
idealistas, que
foram tantos e
tão ricos e que
se derramaram
também pela
modernidade, já
não conta para a
ciência dos
neurônios e dos
bits. Juntos,
estes se
apresentam como
capazes de
explicar todas
as maravilhas
dos homens e das
máquinas. A
neurociência
localiza no
cérebro a sede e
a causa de cada
emoção, de cada
gesto e
comportamento,
do bem e do mal.
E nessa ditadura
neuronial não
sobra lugar para
a alma. Esta,
antes liberta no
vasto mundo das
ideias, agora é
propriedade
exclusiva das
religiões.
Prisioneira do
dogma foi
encerrada no
quarto escuro do
mistério.
Platão não teria
dúvida. O pintor
que nasceu sem
os olhos nem
sempre teria
sido cego. Sua
alma, viajora do
tempo, antes de
aprisionar-se ao
corpo, percebera
e retivera as
imagens que hoje
pinta mesmo sem
as ver. Para os
neurocientistas,
no entanto, há
um campo no
cérebro onde se
formam as
imagens captadas
pela visão. Quem
não enxerga,
como Esref, pode
suprir isso com
os outros
sentidos,
especialmente o
tato, formando,
naquela mesma
área cerebral,
as imagens que
consegue
reproduzir em
tintas com seu
pincel.
Só não consigo
entender como
Esref, sem ver,
pinta o gramado
de verde, as
flores com suas
cores originais,
os telhados
vermelhos com a
neve branca. Ou
melhor, consigo,
sim. Para isso,
preciso
harmonizar as
relações
Platão/Aristóteles:
sim, é a alma
que conhece,
como disse um.
Sim, o
conhecimento
chega pelas
percepções
sensoriais, como
afirmou o outro.
A síntese dessas
duas
afirmativas, à
primeira vista
antagônicas, se
dá pela lei das
vidas sucessivas
e pelas
reminiscências
que delas guarda
a alma ou
Espírito. Uma
lei em tudo
racional, capaz
de interpretar o
fenômeno Esref.
Mas para
aceitá-la será
preciso
enfrentar dois
dogmas da
pós-modernidade:
o de que a alma
não existe, e o
de que se, vá
lá, possa
existir, é coisa
que deve ser
aprisionada no
quarto escuro do
mistério e da
fé.