JOANA ABRANCHES
joanaabranches@gmail.com
Vitória, Espírito Santo
(Brasil)
Espíritas e espirolas
Há que se ter humildade
para repensar nossas
práticas doutrinárias,
reconhecer equívocos,
resgatar a
doutrina
simples e libertária de
Jesus
Já faz algum tempo, uma
antiga vizinha sem papas
na língua, me vendo
sempre às voltas com
atividades na Casa
Espírita, um dia não
resistiu e em meio a uma
conversa acabou
"soltando" que eu
era "muito carola!"
Levando a coisa na
farra, tentei
argumentar: - "Mas eu
sou espírita e não
católica..." Ela aí
não titubeou: -
"Então, é espirola."
O pitoresco virou piada,
mas trouxe à tona uma
séria questão: até onde
nós, espíritas,
estaremos descambando
para o igrejismo e a
superficialidade?
Temos visto Grupos tão
obcecados com
assiduidade e
pontualidade, tão cheios
de regras, critérios,
exigências e uma
intolerância tal, que
mais parecem a velha e
inquisitorial igreja
romana da idade média do
que oficinas fraternas
de estudo e vivência do
Evangelho de Jesus.
Onde foi que perdemos o
rumo da fraternidade?
Que paramentos
invisíveis ainda nos
fazem oscilar entre a
pseudo superioridade dos
sacerdotes e a submissão
dos beatos?
Em um dos costumeiros
papos fraternos com meu
saudoso amigo Palhano
Jr., uma vez questionei:
- Por que será que os
espíritas se degladiam
tanto por cargos, até
mesmo naqueles grupos
minúsculos que ficam lá
onde Judas perdeu as
botas?...
Bem-humorado, como
sempre, ele me respondeu
com uma risadinha
marota: - "A briga é
pelo poder sobre as
almas, minha cara.
Muitos espíritas ainda
se alimentam da
autoridade clerical que
tinham, quando nas
fileiras do catolicismo.
O poder vicia".
Para esse autoritarismo
rançoso, o que não
faltam são defesas
equivocadas. Afinal,
Emmanuel recomendou:
"Disciplina, disciplina,
disciplina". Foi o
bastante para que
instruções superiores,
aplicadas a um contexto
específico, se
tornassem o jargão
justificador da
inflexibilidade fria que
campeia em nosso meio e
que vem transformando
nossas instituições -
destinadas a ser escolas
do amor - em verdadeiros
quartéis de controle e
enquadramento. E quantos
exageros em nome da
disciplina...
Certa vez, uma
palestrante
habitualmente pontual,
chegou à nossa reunião
pública em cima da hora.
Estava mortificada. Por
mais que tentássemos
deixá-la à vontade,
repetia sem parar que
"a espiritualidade tem
horário a cumprir".
Naquela noite o seu
desempenho, obviamente,
não foi dos melhores.
Porém, é perfeitamente
compreensível a reação
da companheira. Ocorre
que se os dirigentes
espirituais levam em
conta que estamos na
matéria, sujeitos a
limitações e imprevistos
comuns à vida terrena,
os dirigentes
encarnados, em grande
maioria, não o fazem.
Numa afirmação de poder,
até mesmo inconsciente,
sobretudo com relação
aos médiuns, insistem em
generalizar, e saem por
aí a prodigalizar
suspensões ou
prescrições de
inumeráveis passes e
palestras doutrinárias,
até que o faltoso ou
atrasadinho,
supostamente
reequilibrado, mas no
fundo, punido, possa
então reconquistar a
permissão de voltar às
atividades... Haja
penitência!
Façamos o dever de casa.
Em O Livro dos
Médiuns, cap. XXIX,
item 333, ao tratar das
reuniões espíritas, o
codificador é muito
claro: "Se bem que os
Espíritos prefiram a
regularidade, os
verdadeiramente
superiores não são
meticulosos a este
ponto. A exigência de
uma pontualidade
rigorosa é um sinal de
inferioridade, como tudo
o que é pueril".
Tão preocupante, também,
a falta de naturalidade
com que as pessoas têm
se comportado no
ambiente espírita.
Observa-se uma
despersonalização e um
formalismo alarmantes,
em lugar da camaradagem
espontânea que deveria
existir entre irmãos.
Não raro, rir e brincar
inter-reuniões parece
ser, implícita ou
explicitamente,
proibido: - "Quebra a
vibração". Cada vez
mais, os cumprimentos
espontâneos e afetivos
têm dado lugar a frases
feitas, piegas, e que
soam muito falso. Na
fala, como na escrita,
temos substituído
expressões carinhosas e
simples do cotidiano por
uma linguagem impessoal,
"santificada" e
obsoleta, incompatível
com os novos tempos. Ah,
as palavras ensaiadas...
Os gestos contidos...
Ladainhas do passado,
ainda tão presentes, a
nos distrair de nós
mesmos...
Nas Casas Espíritas,
dirigentes preocupados
apenas em dirigir e
coordenadores
tão-somente concentrados
em coordenar,
esquecem-se do
essencial: AMAR. Casas
se agigantam e pessoas
viram número, em
ambientes tão impecáveis
quanto frios. Alguém
notou a tristeza daquele
companheiro ou a
ausência daquele outro?
Ocupados em crescer, no
quantitativo, ignoramos
Kardec a recomendar
grupos pequenos e o
alerta do próprio Chico,
que já dizia: - "Em Casa
que muito cresce o amor
desaparece".
Perdidos numa burocracia
sem sentido, senhas e
formulários vão aos
poucos tomando o lugar
do coração e
transformando nossos
atendimentos fraternos
em patética mistura de
clínica psicológica e
confessionário, onde o
indivíduo precisa
seguir à risca as etapas
cronometradas do
tratamento para obter
"alta" ou "absolvição”.
Assim, desorientados
orientadores, em tom
grave e superior, seguem
dando receitas iguais
para problemas
diferentes. Alguém
sofreu uma perda e busca
notícias do ente querido
desencarnado? Que vá
"baixar" noutro
Centro, porque nos mais
ortodoxos ouvirá
rispidamente que o
telefone só toca "de
lá pra cá" e fim. A
alegação de que a
mediunidade não está a
serviço de problemas
"domésticos" e sim
de coisas mais sérias.
Valei-me, Chico Xavier!
Quanta saudade da
mediunidade a serviço do
amor, do consolo aos
desesperados de toda a
sorte...
Nas reuniões públicas,
companheiros carrancudos
às portas das cabines de
passe chamam com voz
cavernosa: - Os
próximos! E aquele que
está indo pela primeira
vez fica a imaginar que
ritual terrível deve
acontecer naquela
salinha escura onde
todos entram
cabisbaixos, como bois
para o matadouro.
Diretores severos, após
comoventes preces, olham
por baixo dos óculos com
olhar de censura para a
mãe de alguma criança
que chora, ou pedem que
se retire. Médiuns
coreografados
sincronizam movimentos
como se fossem clones
uns dos outros. Qualquer
semelhança com
farisaísmo,
lamentavelmente, não
será mera coincidência.
Na Evangelização,
criança que chega
atrasada volta; se falta
muito é cortada; mesmo
aquela que mais precisa
da orientação e do pão.
A mãe, senhora simplória
assistida pelo Grupo e
que muitas vezes sequer
tem o dinheiro da
passagem, ouve um duro
sermão de alguém que
ignora a sua difícil
realidade. Normas são
normas. Quem
negligenciar a
frequencia dos filhos
não tem direito a cesta
básica. O tom é
incisivo. Muitos dirão
que é necessário usar
estratégias para
evangelizar "os nossos
irmãos que mais
precisam". Talvez tenham
razão... Parece que são
os espíritas que já não
precisam mais do
Evangelho...
Navegantes desatentos às
ciladas da superfície,
não percebemos o risco
de naufrágio iminente.
Parecemos surdos à
conclamação do Espírito
de Verdade:
-"Espíritas! Amai-vos,
este o primeiro
ensinamento" - E
indiferentes à terna
advertência de José,
Espírito Protetor, a
nos lembrar que "a
indulgência atrai,
acalma, reergue, ao
passo que o rigor
desencoraja, afasta e
irrita". Até quando
continuaremos atraídos
pelo canto da sereia?
Há que se ter humildade
para repensar nossas
práticas doutrinárias,
reconhecer equívocos,
resgatar a doutrina
simples e libertária de
Jesus. Há que se ter
coragem para mudar, para
substituir a frieza
dogmática que tem nos
engessado pela
convivência fraterna,
calorosa e solidária,
que nos identificará, de
fato, como cristãos
redivivos.
Espíritas ou "espirolas"...
O que temos sido? O
que realmente queremos
ser? Cada um se perceba
e se responda. Ainda há
tempo!