ABEL SIDNEY
abelsidney@gmail.com
Porto Velho, Rondônia
(Brasil)
Jean Pierre, o rapaz das
moedas de ouro
“Somente o homem que
escreveu tais linhas
pode me ajudar. Vou
encontrá-lo’’, pensou o
pobre rapaz.
O inverno daquele ano
fora um dos piores de
que se tivera notícia.
Os parques da cidade
deixavam à mostra as
árvores sombriamente
cobertas de neve. Os
parisienses
encolhiam-se,
recolhendo-se mais cedo.
As lareiras crepitavam,
quando bem alimentadas
pelo carvão, escasso e
caro.
As revoluções que
varriam a Europa há
décadas ainda não haviam
conseguido atender os
trabalhadores mais
pobres de Paris, nas
suas necessidades mais
básicas. O ar
intelectual que se
respirava deixava ver
que profundas
transformações
aconteciam; as
descobertas e as
invenções se sucediam;
livros eram editados,
quadros expostos; a vida
cultural nos teatros e
nos salões era de raro
esplendor. No entanto,
havia fome. E frio. E
outras comezinhas
necessidades humanas,
não atendidas.
Jean Pierre vagava na
noite pouco iluminada e
fria. O ano: 1865.
Inverno. Mês de
dezembro. Ele carregava
um livro nas mãos –
“L’Évangile sélon L’Spiritisme”.
Descobrira o endereço do
autor, situado no centro
da cidade e para lá se
encaminhava em tão
adiantada hora.
Localizada a moradia do
professor Rivail,
conforme lhe informou um
guarda, bateu-lhe à
porta. Transido de frio
e fome, não teve forças
para dizer nada.
Desmaiou. O livro lhe
cairia das mãos e Kardec
ao pegá-lo leria o que
ele próprio escrevera,
destacado em lápis
vermelho pelo seu
inesperado visitante
noturno e leitor:
Nas grandes calamidades,
a caridade se comove e
veem-se os rasgos de
generosidade para
reparar os desastres,
mas ao lado dessas
desgraças coletivas, há
milhares de desgraças
particulares que passam
despercebidas, de
pessoas que jazem sobre
um leito miserável, sem
uma queixa. São os
infortúnios discretos e
ocultos, que a
verdadeira generosidade
sabe descobrir sem
esperar que venham pedir
auxílio.
O professor
acolheu-o em sua casa,
onde dormiria aquela
noite. Alimentou-o,
deu-lhe roupas de frio e
conversaram longamente
sobre o trecho em
destaque, que tanto o
sensibilizara. Ao
despedirem-se,
entregou-lhe uma carta
de recomendação, lavrada
de próprio punho, para
que pudesse mais
facilmente arrumar um
emprego.
Jean Pierre não andara
muito e notou que num
dos bolsos do grande
casaco que ganhara tinha
algo que não percebera
antes: duas moedas de
ouro. Como tinham ido
parar ali? Vestira o
casaco ainda dentro da
casa e nada notara. Que
mãos ligeiras teriam
colocado aquelas moedas
naquele bolso?
Voltou à casa do
professor, pois
aquelas moedas não lhe
pertenciam. Muito embora
elas pudessem lhe
garantir o sustento por
quase um mês... Kardec
atendeu-o de boa vontade
e perguntou-lhe o que o
trazia de volta tão
rapidamente. Jean Pierre
mostrou-lhe as moedas.
– Deixe-me vê-las, pediu
o mestre lionês. – Não
são minhas não, meu caro
rapaz! Tens mesmo
certeza de que estavam
no casaco?
O rapaz o olhou admirado
e indagou a si mesmo:
“Então terá sido um
milagre?”.
Lembrou, então, do rigor
com que o professor
tratava toda e qualquer
questão e argumentou:
– Bem, se não são suas e
o casaco me foi dado, é
natural que eu me aposse
delas, pois fará parte
do casaco, que agora me
pertence, não é?
Houve concordância mútua
e Jean Pierre lá se foi
com suas moedas de ouro,
feliz da vida.
Dois anos mais tarde,
numa das reuniões da
Sociedade Espírita de
Paris, Kardec lê a
mensagem de um Espírito,
que se manifestara,
trazendo ao grupo uma
interessante narrativa.
Ei-la, na íntegra:
‘Meus amigos, Deus vos
abençoe. Um dia, há
pouco mais de dois anos,
encontrei um homem
verdadeiramente
caridoso. E discreto.
Generoso, deu-me duas
moedas de ouro.
Ensinara-me, através do
que escrevera no ano
anterior, que devíamos
buscar as misérias
ocultas e socorrer suas
vítimas. Assim fiz.
Multipliquei as moedas
de ouro, primeiro
trocando-as em moedas
menores e depois as
empregando em um bom
negócio, o que as
quintuplicou.
Trocava-as, distribuía
parte delas a quem muito
necessitava e a outra
parte investia de novo
nos negócios. Em pouco
tempo fiz pequena
fortuna e, tanto mais as
doava, mais elas se
multiplicavam.
Embora todo o meu
cuidado em não me
revelar, um dia fui
descoberto, pois não
tinha as mãos tão
ligeiras quanto à
daquele homem generoso.
Empreguei, então,
abertamente todo o meu
capital numa pequena
indústria e proporcionei
trabalho a muita gente.
Quando a morte me
acolheu em seus braços,
muitos corações me
choraram a ausência. Eu,
por graça divina, pude
continuar aqui o
trabalho iniciado. E
sempre que posso, saio
por aí, buscando
inspirar as pessoas para
que elas não se esqueçam
das misérias que se
ocultam tão próximas de
seus olhos. Basta ter
olhos de ver, conforme
ensinou o Mestre... Não
se esqueçam de
multiplicar os tantos
talentos que a vida vos
concedeu!”. -
Jean Pierre, o rapaz das
moedas de ouro
Não consta nenhuma
referência ao fato, nas
várias biografias que se
escreveu sobre Kardec.
Nem mesmo se sabe se ele
revelou ser aquele homem
generoso e discreto, que
doara as tais moedas de
ouro àquele rapaz.
Possivelmente não, pois
se revelasse o feito,
deixaria de ser
discreto, embora
continuasse generoso.
Como a verdadeira
generosidade anda a
braços dados com a
discrição, ele,
certamente, calou-se.
Como descobriram o caso
das moedas de ouro é
outra história, muito
longa, que convém deixar
para outra oportunidade.
Ou mesmo ocultar...