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Crônicas e Artigos

Ano 4 - N° 182 - 31 de Outubro de 2010

ROGÉRIO COELHO
rcoelho47@yahoo.com.br
Muriaé, Minas Gerais (Brasil)
 

Coerência doutrinária

Não é possível ser espírita e, ao mesmo tempo, esposar princípios contrários ao Espiritismo

“(...) O Espiritismo é uma Doutrina que se basta a si mesma, sem empréstimos nem acréscimos artificiais.” - - Deolindo Amorim


Sempre será muito difícil a tradução de um livro obedecer fielmente às nuanças e sintonias finas do original, em virtude das características particulares, das idiossincrasias de cada idioma.   Sem embargo, tais distorções não estão atreladas tão-somente às questões do vernáculo, mas também ao talante do tradutor. As traduções da Codificação Espírita não escaparam dessas ocorrências...   Coligindo-as em “pente-fino”, com o original francês, vamos encontrar pequenas e grandes distorções, sem falar dos pleonasmos, (encarar face a face) já do âmbito interno.

Vamos apenas a um exemplo, para elucidar o que estamos falando: No original francês de “O Evangelho segundo o Espiritismo”, no capítulo XXVII, item 22, § 2º, lemos no texto de V. Monod. (Bordéus, 1862): “(...) La prière du chrétien, du Spirite de quelque culte que ce soit, doit être faite dès que l`Esprit a repris le joug de la chair...”

Na tradução de Guillon Ribeiro da FEB, temos: “(...) A prece do cristão, do Espírita, seja qual for o culto, deve ele dizê-la logo que o Espírito haja retomado o jugo da carne...” Na tradução de Herculano Pires, da LAKE, lemos: “(...) A prece do cristão, do Espírita, principalmente, de qualquer outro culto que seja, deve ser feita no momento em que o Espírito retoma o jugo da carne...” Na tradução de Salvador Gentile, da IDE, e de Elias Barbosa da Ed. Allan Kardec, observamos: “(...) A prece do cristão, do espírita, de qualquer culto que seja, deve ser feita desde que o Espírito retomou o jugo da carne...” Na tradução de Torrieri Guimarães, revisada por Carlos Imbassahy, da Ed. Edigraf, flagramos: “(...) A rogativa do cristão, do espiritista e de qualquer culto que seja, deve ser feita desde que o Espírito haja retomado o jugo da carne...” 

Herculano Pires, que sem a menor dúvida foi “o melhor metro que mediu Kardec”, chega mesmo a fazer uma oportuna ressalva: “Nos primeiros tempos, os adeptos do Espiritismo ainda permaneciam, muitas vezes, ligados às Igrejas de que provinham. O mesmo aconteceu com o Cristianismo dos primeiros tempos”.  Sem embargo, as traduções foram feitas, salvaguardando a possibilidade de se entender que o Espírita poderia ser ao mesmo tempo católico, protestante, umbandista etc.... Tudo por uma simples questão de vírgula, que muda totalmente o sentido original do texto que analisamos.  

O não menos notável DEOLINDO AMORIM, que também estudou o Espiritismo no original francês, vem em nosso auxílio, no episódio que destacamos nas diversas traduções acima e esclarece[1]: “(...) A expressão “espírita de qualquer culto”, poderia abonar facilmente a opinião, aliás, respeitável, daqueles para quem se pode ser ao mesmo tempo espírita, católico, budista ou metodista... Sim, se o pensamento que ocorreu na comunicação foi o de Espírita, na acepção trivial da pessoa que apenas crê nos Espíritos. Aí a expressão estaria certa, e não há dúvida alguma, porque se pode cultivar a mediunidade ou a crença nos Espíritos desencarnados e pertencer a qualquer culto religioso... A faculdade mediúnica é independente da convicção religiosa. Em todas as religiões há pessoas que creem nos Espíritos. Há muita diferença, todavia, entre o “crente” e o “adepto” da Doutrina: Crente é todo aquele que, embora não aceite a Dou­trina Espírita, porque não abre mão de suas ideias religiosas ou de suas opiniões filosóficas, crê na intervenção dos Espíritos, e apenas isto. Adepto é aquele que se filia à Doutrina, que adere conscientemente à filosofia do Espiritismo, porque encontra nesta filosofia uma concepção de vida que atende às solicitações de sua inteligência e de seus sentimentos.

Notemos que a comunicação se refere a “espírita de qualquer culto”, (Spirite de quelque culte que ce soit), mas de um modo indeterminado sem definir o que é espírita, porque o pensamento central está preocupado, principalmente, com o valor da prece para todos os homens que têm crença...  Tanto isto é certo, que a comunicação começa por uma ideia geral: “o primeiro dever de toda criatura humana, o primeiro ato pelo qual deve demonstrar a entrada na vida ativa de cada dia, é a prece. Quase todos oram, mas quão poucos sabem orar!” Se a intenção do Espírito comunicante — como no-lo mostra todo o contexto da dissertação — é chamar a atenção dos crentes em geral para a necessidade da prece sincera, sejam quais forem as suas denominações religiosas, não se pode dar àquela expressão o sentido de um conceito completo. Não é uma definição, é um pensamento que participa de uma série de advertências feitas indistintamente.

A circunstância de tempo vai incidir, outra vez, nesta ordem de ideias. A publicação de “O Evangelho segundo o Espiritismo” é de 1864. Ainda se falava, amplamente, em espírita de “qualquer culto”, de um modo a bem dizer vago, sem precisar os termos. Decorrido um período de mais de quatro anos, na fase final de seus incessantes e profícuos trabalhos, vemos Allan Kardec dizer, textualmente, o seguinte: “A crença no Espiritismo já não será simples aquiescência, muitas vezes parcial, a uma ideia vaga, porém, uma adesão motivada, feita com conhecimento de causa e comprovada por um título oficial, deferido ao aderente. Assentando numa base precisa e definida, essa qualificação a nenhum equívoco dá lugar, permitindo aos adeptos que professem os mesmos princípios e caminhem pela mesma senda se reconheçam, sem outra formalidade mais do que a declaração de sua qualidade e, se for preciso, a apresentação de seu título”.

 Essas declarações de Kardec fazem parte da “Constituição do Espiritismo” e foram incorporadas às matérias finais do livro: “Obras Póstumas”. Aquele trecho tem valor fundamental, porque é o resultado de um processo de embasamento em que, tendo chegado às últimas conclusões, a obra do Codificador já estava em condições de fazer exigências consentâneas com o caráter da Doutrina. Convém recordar que a Codificação, a esta altura, já estava terminada. Cabia, agora, ao seu organizador, traçar normas para os adeptos do Espiritismo.   Como acabamos de ver, era tanto o rigor de Allan Kardec, que reclamava, até, o título de espírita para que alguém pudesse aparecer como adepto professo do Espiritismo. A credencial do espírita seria subscrita por uma Sociedade, justamente para evitar confusão com os adventícios e falsos espíritas. Assim pensava o Codificador da Doutrina. 

Não seria muito fácil tornar-se espírita, como não bastaria apenas tomar passes ou comparecer religiosamente a sessões espíritas.  Se Allan Kardec, de­pois de doze anos ininterruptos de trabalho, porque foi esse o período de execução de sua Obra, chegou à conclusão de que a condição de espírita exige a concordância com os princípios da Doutrina, é justo deduzir, daí, que não é possível ser espírita e, ao mesmo tempo, esposar princípios contrários ao Espiritismo.  Vamos pela lógica: se o Espiritismo é uma Doutrina que não admite o culto de imagens, e se alguém, apesar de ler e “compreender” a Doutrina, adora imagens e crê no fogo do inferno e outros dogmas irreconciliáveis com o Espiritismo, evidentemente não é espírita. Quem assim ainda pensa pode ser simpatizante, mas não é adepto da Doutrina. Se, portanto, em vários passos da obra de Kardec, lemos expressões como: “espírita de qualquer culto”, “espírita é todo aquele que crê nas manifestações dos Espíritos” e ainda outras igualmente abertas a quaisquer interpretações pessoais, logo depois, no momento oportuno, o Codificador da Doutrina faz ver que não é tão simples ser espírita, tanto assim que ele próprio disse que lhe assistia o direito de “definir as crenças e as qualidades do verdadeiro espírita”.

Em 1859 escreveu Kardec no livro “O Que é o Espiritismo”:  “(...) O verdadeiro caráter do Espiritismo é o de uma ciência, e não de uma religião; e a prova é que conta, entre os seus aderentes, com pessoas de todas as crenças, e que, nem por isso, renunciam às suas convicções:  católicos fervorosos, que não deixam de praticar os deveres de seus cultos; protestantes de todas as seitas, israelitas, muçulmanos e até budistas e bramanistas...”

Quando Kardec escreveu as palavras acima, tal como na questão das traduções que comentamos, não podemos perder de vista que o Espiritismo ainda estava sendo gerado no “útero” da Ciência e cercado pelo “líquido amniniótico” da filosofia, e como tal podia perfeitamente não causar estranheza e ser aceito por cientistas, filósofos e religiosos de todos os matizes. Mas...  quando, a partir de 1864, com a impactante publicação do livro “O Evangelho segundo o Espiritismo”, a Doutrina Espírita começou a se nortear em direção à sua tríplice formatação: Ciência, Filosofia e Religião, já não poderia mais haver compatibilização doutrinária possível entre o Espiritismo e as religiões tradicionais, estas últimas sempre engessadas em seus ancestrais dogmas ancilosantes e limitadas a círculos restritos.  Portanto, não poderiam mais existir “espiritólicos” e quejandos... Tudo isso fica claro e transparente quando lemos em a “Constituição do Espiritismo”, nas páginas finais do livro “Obras Póstumas”, de Allan Kardec:

“(...) O Espiritismo teve, como todas as coisas, o seu período de gestação e, enquanto todas as questões, principais e acessórias, que d`Ele derivam não se acharem resolvidas, somente pode dar resultados incompletos. Entreviu-se-lhe a finalidade, pressentiram-se-lhe as consequências, mas apenas de modo vago. Da incerteza sobre pontos ainda não determinados haviam forçosamente de nascer divergências sobre a maneira de os considerar; a unificação tinha que ser obra do tempo e se efetuou gradualmente à medida que os princípios se foram elucidando. Unicamente quando tiver desenvolvido todas as partes em que se desdobra é que a Doutrina formará um todo harmônico e só então se poderá julgar do que é o Espiritismo.

Enquanto ele não passava de uma opinião filosófica, não podia contar, da parte de seus adeptos, senão com a simpatia natural que a comunhão de ideias produz; nenhum laço sério podia existir entre eles, por falta de um programa claramente traçado. Esta, evidentemente, a causa fundamental da débil coesão e da instabilidade dos grupos e sociedades que logo se formaram.  Por isso mesmo, constantemente procuramos, e com todas as nossas forças, afastar os espíritas do propósito de fundarem prematuramente qualquer instituição especial com base na Doutrina, antes que esta assentasse em alicerces sólidos. Fora se exporem a fracassos inevitáveis, cujo efeito teria sido desastroso, pela impressão que produziriam no público e pelo desânimo em que lançariam os adeptos. Semelhantes fracassos talvez retardassem de um século o progresso definitivo da Doutrina, a cuja impotência se imputaria um insucesso devido, na realidade, à imprevidência. Por não saberem esperar, a fim de chegarem no momento exato, os muito apressados e os impacientes, em todos os tempos, hão comprometido as melhores causas.

Não se deve pedir às coisas senão o que elas podem dar, à medida que se vão pondo em estado de produzir. Não se pode exigir de uma criança o que se pode esperar de um adulto, nem de uma árvore que acaba de ser plantada o que ela dará quando estiver em toda a sua pujança. O Espiritismo, em via de elaboração, somente resultados individuais podia dar; os resultados coletivos e gerais serão fruto do Espiritismo completo, que sucessivamente se desenvolverá”.

Notamos assim, com Kardec e com Deolindo Amorim, que alguma coisa se completou, conforme palavras do próprio Codificador na obra referida; e nesse completou, está implícito o surgimento do Espiritismo em sua definitiva formatação: Ciência, Filosofia e Religião.

Ao consolidar-se o aspecto religioso do Espiritismo, foi uma debandada só, já que muitos não aderiram (até hoje) ao tríplice aspecto. Os que permaneceram nas fileiras espiritistas a partir daí é que realmente podem ser chamados de Espíritas Verdadeiros ou Espíritas-Cristãos.

Certo do levantar dos broquéis e da debandada geral que aconteceria com o incremento religioso do Espiritismo, Kardec escreveu[2]: “(...) Se a constituição tem por efeito diminuir momentaneamente o número aparente dos espíritas, terá, por outro lado, como consequência, dar mais força aos que caminharem de comum acordo para a realização do grande objetivo humanitário que o Espiritismo há de alcançar.  Eles se conhecerão e se estenderão mutuamente as mãos, de um extremo a outro do mundo. Terá, além disso, por efeito opor barreira às ambições que, se se impusessem, tentariam desviá-lo em proveito próprio. Tudo está calculado, visando esse resultado, pela supressão de toda autocracia ou supremacia pessoal”.

Segundo Deolindo Amorim2, “O Espiritismo é uma Doutrina que se basta a si mesma, sem empréstimos nem acréscimos artificiais”.  Contestar, quem há de?                                         

 

 

[1] - AMORIM, Deolindo. O Espiritismo e as Doutrinas Espiritualistas. 4 ed. Rio [de Janeiro]: CELD, 1989.

[2] - KARDEC, Allan. Obras Póstumas. 25. ed. Rio [de Janeiro]: FEB, 1990, – Constituição do Espiritismo (in fine).


 


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