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Crônicas e Artigos

Ano 4 - N° 199 - 6 de Março de 2011

JOSÉ CARLOS MONTEIRO DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo Horizonte, MG (Brasil)

 

Kardec, Maomé, o Islã e a Reencarnação


1
. A Revista Espírita dos meses de agosto e novembro de 1866 contém um estudo de Kardec sobre Maomé e o Islamismo, que, entre outras coisas, revela o quanto ele se achava, intelectual e espiritualmente, à frente de sua geração e de sua época, porquanto a ocasião, tanto quanto hoje, não era propícia a qualquer postura a respeito do Islã, que não fosse envolta em fantasia, mistério, medo e rancor. O momento histórico da Europa favorecia tal estado de coisas, tendo em vista as constantes conturbações políticas, sociais, filosóficas e religiosas que a atingiam. O fantasma do Islamismo ainda pairava sobre o Velho Continente, fato que se agravava periodicamente com as frustradas tentativas de independência das colônias europeias do norte da África, território de forte predominância muçulmana. Além disso, a Inglaterra mantinha com mão de ferro o controle sobre a Índia e a Palestina, também tidas como focos do Islamismo. 

A Igreja, por sua vez, vivia um de seus momentos mais difíceis em face da ruína dos Estados Pontifícios, decorrência direta da unificação da Itália. Isso acirrou ao extremo os pouco amistosos ânimos do Vaticano, que, não acostumado a perder, lançou mão de todos os recursos disponíveis (infelizmente, para ele, a fogueira humana já havia sido suprimida), a fim de manter os privilégios temporais de que desfrutara ao longo dos séculos. Em consequência, a intolerância religiosa de Roma, alimentada por sua pretensão de exclusiva detentora da verdade, cresceu de forma superlativa. A sua luta sem tréguas pela manutenção do domínio que, tiranicamente, exercera sobre quase todas as nações da Europa implicou, inclusive, a modificação de sua conduta diante de determinados fatos que tentara ocultar ou mascarar durante os últimos séculos, a exemplo do que aconteceu com o seu cruel antissemitismo, que se viu desnudado aos olhos estarrecidos do Mundo[1]. Ao mesmo tempo, investiu, com todas as suas armas, contra o seu mais novo e temível inimigo, o liberalismo. Em 1864, dois anos antes da publicação do referido estudo do Codificador, o Papa Pio IX se insurgiu oficialmente contra o “terrível mal”, e editou a encíclica Quanta Cura, em que “condenava, com a maior energia, as liberdades modernas, cujos erros, já todos condenados, foram catalogados nas oitenta proposições do Syllabus” [2]. E, não satisfeito, fez-se proclamar infalível em julho de 1870, quando da realização do inacabado Concílio do Vaticano I.

2. As monarquias da Europa, em plena agonia terminal, ainda alimentavam esperanças de sobreviver ao verdadeiro vendaval de liberalismo que varria o continente, e, para tanto, esperavam contar com o apoio da Igreja, que se revelava cada vez mais intransigente, exclusivista e prepotente, na defesa de seus interesses. Os tempos, portanto, não se mostravam favoráveis às tentativas de convivência pacífica com credos religiosos divorciados da ortodoxia romana, principalmente com aquele que ela mais temia e odiava, o Islamismo. O simples fato de ver a religião criada por Maomé como o mais terrível inimigo da fé cristã já era bastante e suficiente para incluir o autor de tamanha ofensa no rol dos anatematizados.

Kardec, todavia, não se deixou intimidar por esse estado de coisas. O seu trabalho não ignora nem omite a dura realidade das atrocidades cometidas pelos cristãos durante as Cruzadas, nas quais se revelaram inigualáveis. A terrível carnificina que promoveram na tomada de Jerusalém em 1099 selou, até os dias atuais, o estado de permanente beligerância entre as duas religiões, agravada pelo vertiginoso crescimento do império otomano que, após a tomada de Constantinopla em 1453, ameaçou seriamente a Europa, tendo Suleyman ocupado Buda, na Hungria (1528), e promovido um malogrado cerco de Viena, no ano seguinte. 

Não viu o Islamismo envolto nas negras nuvens do maniqueísmo fomentado no Ocidente, e foi dos poucos que teve a serenidade de examiná-lo com a devida imparcialidade. Até então, somente alguns vultos do Iluminismo, entre os quais Voltaire, e alguns raros historiadores[3] trataram a questão sem espírito preconcebido e sem as conhecidas fantasias que perduram até hoje.  Embora reconhecendo que nele residia, como ainda reside, a maior dificuldade para a tão desejada convivência fraterna entre as religiões, empenhou-se, antes de tudo, em derrubar os falsos conceitos e preconceitos que sempre o acompanharam, afirmando: “Há, por vezes, sobre homens e coisas opiniões em que se acreditam e passam ao estado de coisas aceitas, por mais errôneas que sejam, porque se acha mais cômodo aceitá-las como acabadas. Assim é com Maomé e sua religião, da qual quase que só se conhece o lado legendário”. E, mais adiante: “Disso resultou que sobre o fundador do Islamismo se fizeram ideias muitas vezes falsas ou ridículas, baseadas em preconceitos, que não encontravam nenhum corretivo na discussão”. Ao contrário das lendas e fantasias a respeito, Kardec fez questão de mostrar, por exemplo, que o casamento de Maomé com Khadidja não foi motivado por interesses materiais, e que os desvios de ordem moral que lhe são imputados somente surgiram a partir do instante em que se tornou viúvo. Não compactuou com a tese de sua agressividade natural, dizendo que “tinha o espírito meditativo e sonhador; seu caráter, de uma solidez e de uma maturidade precoces, junto a uma extrema direitura, a um perfeito desinteresse e a costumes irrepreensíveis, lhe adquiriram uma tal confiança da parte de seus companheiros que o designavam pelo sobrenome de El-Amin, “o homem seguro, o homem fiel”. Entendeu o Maomé guerreiro como alguém que fora levado a tanto “pela força de circunstâncias, muito mais que por seu caráter”, uma vez que, decorridos apenas dois anos de sua residência em Medina, os Coraychitas[4] de Meca, coligados com outras tribos hostis, vieram sitiar a cidade, e ele teve que se defender, empenhando-se numa guerra defensiva que durou dez anos, e na qual revelou uma grande habilidade tática.

3. Colocou, lado a lado, as condutas de cristãos e muçulmanos, deixando em aberto, propositadamente, a conclusão sobre quem foi mais cruel, mais sanguinolento e mais fanático, dizendo: “Se os muçulmanos seguissem em espírito o Alcorão que o Profeta lhes deu por guia, seriam, sob muitos aspectos, muito diferentes do que são”. Mas, ao mesmo tempo, lembra que “os cristãos também têm o Evangelho explícito diversamente do Alcorão, como código de moral, o que não impede, que em nome desse mesmo Evangelho que manda amar até os inimigos, tenham torturado e queimado milhares de vítimas e que, de uma lei toda de caridade tenham feito uma arma de intolerância e de perseguição. Pode exigir-se que povos ainda meio bárbaros façam uma interpretação mais sã de suas Escrituras do que o fazem os cristãos civilizados?” Evocou o último discurso pronunciado por Maomé em Meca, quando da peregrinação do adeus, pouco antes de sua morte, que se identifica, em quase sua totalidade, com a moral evangélica, como se pode ver do seguinte trecho: “Ó povos! Escutai minhas palavras, pois não sei se, em outro ano, poderei encontrar-me ainda convosco neste legar. Sede humanos e justos entre vós. Que a vida e a propriedade de cada um sejam invioláveis e sagradas para os outros; que aquele que recebeu um depósito o devolva fielmente àquele que o confiou. Aparecereis diante do Senhor e ele vos pedirá contas de vossas ações. Tratai bem as mulheres; elas são vossas auxiliares e nada podem por si sós. Vós as tomastes como um bem que Deus vos confiou e delas tomastes posse por palavras divinas”.

4. Na verdade, a importância, o alcance e a atualidade do pronunciamento de Kardec não cabem nos estreitos limites deste trabalho, porquanto ele extravasa em muito as nossas notórias limitações. Todavia, ele contém um detalhe que não pode deixar de ser destacado, sob pena de grave omissão. Trata-se da “descoberta” que Kardec fez, em meio às palavras de Maomé, do reconhecimento da reencarnação. Evidencia-se, nesse fato, a sua notável perspicácia, senso de observação e espírito de pesquisa. Da transcrição e comentários de trechos do Alcorão, concluiu que, embora de maneira não tão explícita como no Novo Testamento, a doutrina da pluralidade de existências é também admitida pelo Profeta, a saber: “Os Ministros do Senhor nos pregavam a verdade. Onde encontraremos agora intercessores? Que esperança temos de voltar à Terra para nos corrigirmos? Eles perderam a alma e suas ilusões se desvaneceram (Surata VII, v. 50,51)”. “O vocábulo voltar implica a ideia de já ter aparecido, isto é, de ter vivido antes da existência atual. Aliás, Maomé o expressa muito bem quando diz: ‘Reaparecereis diante dele e ele vos mostrará as vossas obras’. ‘Voltareis ante o Deus de Verdade’. É o fundo da doutrina da preexistência da alma, ao passo que, segundo a Igreja, a alma é criada ao nascer de cada corpo. A pluralidade das existências terrenas não está indicada no Alcorão de maneira tão explícita quanto no Evangelho; entretanto, a ideia de reviver na Terra entrou no pensamento de Maomé, pois tal seria, segundo ele, o desejo dos culpados de se corrigir. Assim ele compreendeu que seria útil poder recomeçar uma nova existência.”     

 


[1]A respeito, David I Kertzer, in O VATICANO E OS JUDEUS, Editora Rocco, Rio, 2003 e O SEQUESTRO DE EDGARDO MORTARA, mesma Editora, 1998.

[2] Pe. Álvaro Negromonte, HISTÓRIA DA IGREJA PARA O CURSO COLEGIAL, Livraria José Olympio Editora, 1954, p 134.

[3] Caussin de Perceval, na França; Dr. W Muir, na Inglaterra e Spreenger, na Alemanha, consultados e citados por Kardec.

[4] Os Coraychitas eram guardas da Caaba e do culto nacional, de natureza idólatra, que eles exploravam. Maomé combateu a idolatria e implantou o monoteísmo. Por isso, foi chamado de louco, acusado de sacrilégio e perseguido.




 


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 Revista Semanal de Divulgação Espírita