JOSÉ CARLOS MONTEIRO DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo Horizonte, MG (Brasil)
Kardec, Maomé, o Islã e
a Reencarnação
1.
A Revista Espírita dos
meses de agosto e
novembro de 1866 contém
um estudo de Kardec
sobre Maomé e o
Islamismo, que, entre
outras coisas, revela o
quanto ele se achava,
intelectual e
espiritualmente, à
frente de sua geração e
de sua época, porquanto
a ocasião, tanto quanto
hoje, não era propícia a
qualquer postura a
respeito do Islã, que
não fosse envolta em
fantasia, mistério, medo
e rancor. O momento
histórico da Europa
favorecia tal estado de
coisas, tendo em vista
as constantes
conturbações políticas,
sociais, filosóficas e
religiosas que a
atingiam. O fantasma do
Islamismo ainda pairava
sobre o Velho
Continente, fato que se
agravava periodicamente
com as frustradas
tentativas de
independência das
colônias europeias do
norte da África,
território de forte
predominância muçulmana.
Além disso, a Inglaterra
mantinha com mão de
ferro o controle sobre a
Índia e a Palestina,
também tidas como focos
do Islamismo.
A Igreja, por sua vez,
vivia um de seus
momentos mais difíceis
em face da ruína dos
Estados Pontifícios,
decorrência direta da
unificação da Itália.
Isso acirrou ao extremo
os pouco amistosos
ânimos do Vaticano, que,
não acostumado a perder,
lançou mão de todos os
recursos disponíveis
(infelizmente, para ele,
a fogueira humana já
havia sido suprimida), a
fim de manter os
privilégios temporais de
que desfrutara ao longo
dos séculos. Em
consequência, a
intolerância religiosa
de Roma, alimentada por
sua pretensão de
exclusiva detentora da
verdade, cresceu de
forma superlativa. A sua
luta sem tréguas pela
manutenção do domínio
que, tiranicamente,
exercera sobre quase
todas as nações da
Europa implicou,
inclusive, a modificação
de sua conduta diante de
determinados fatos que
tentara ocultar ou
mascarar durante os
últimos séculos, a
exemplo do que aconteceu
com o seu cruel
antissemitismo, que se
viu desnudado aos olhos
estarrecidos do Mundo.
Ao mesmo tempo,
investiu, com todas as
suas armas, contra o seu
mais novo e temível
inimigo, o liberalismo.
Em 1864, dois anos antes
da publicação do
referido estudo do
Codificador, o Papa Pio
IX se insurgiu
oficialmente contra o “terrível
mal”, e editou a
encíclica Quanta Cura,
em que “condenava, com a
maior energia, as
liberdades modernas,
cujos erros, já todos
condenados, foram
catalogados nas oitenta
proposições do
Syllabus”
.
E, não satisfeito,
fez-se proclamar
infalível em julho de
1870, quando da
realização do inacabado
Concílio do Vaticano I.
2.
As monarquias da Europa,
em plena agonia
terminal, ainda
alimentavam esperanças
de sobreviver ao
verdadeiro vendaval de
liberalismo que varria o
continente, e, para
tanto, esperavam contar
com o apoio da Igreja,
que se revelava cada vez
mais intransigente,
exclusivista e
prepotente, na defesa de
seus interesses. Os
tempos, portanto, não se
mostravam favoráveis às
tentativas de
convivência pacífica com
credos religiosos
divorciados da ortodoxia
romana, principalmente
com aquele que ela mais
temia e odiava, o
Islamismo. O simples
fato de ver a religião
criada por Maomé como o
mais terrível inimigo da
fé cristã já era
bastante e suficiente
para incluir o autor de
tamanha ofensa no rol
dos anatematizados.
Kardec, todavia, não se
deixou intimidar por
esse estado de coisas. O
seu trabalho não ignora
nem omite a dura
realidade das
atrocidades cometidas
pelos cristãos durante
as Cruzadas, nas quais
se revelaram
inigualáveis. A terrível
carnificina que
promoveram na tomada de
Jerusalém em 1099 selou,
até os dias atuais, o
estado de permanente
beligerância entre as
duas religiões, agravada
pelo vertiginoso
crescimento do império
otomano que, após a
tomada de Constantinopla
em 1453, ameaçou
seriamente a Europa,
tendo Suleyman ocupado
Buda, na Hungria (1528),
e promovido um malogrado
cerco de Viena, no ano
seguinte.
Não viu o Islamismo
envolto nas negras
nuvens do maniqueísmo
fomentado no Ocidente, e
foi dos poucos que teve
a serenidade de
examiná-lo com a devida
imparcialidade. Até
então, somente alguns
vultos do Iluminismo,
entre os quais Voltaire,
e alguns raros
historiadores
trataram a questão sem
espírito preconcebido e
sem as conhecidas
fantasias que perduram
até hoje. Embora
reconhecendo que nele
residia, como ainda
reside, a maior
dificuldade para a tão
desejada convivência
fraterna entre as
religiões, empenhou-se,
antes de tudo, em
derrubar os falsos
conceitos e preconceitos
que sempre o
acompanharam, afirmando:
“Há, por vezes, sobre
homens e coisas opiniões
em que se acreditam e
passam ao estado de
coisas aceitas, por mais
errôneas que sejam,
porque se acha mais
cômodo aceitá-las como
acabadas. Assim é com
Maomé e sua religião, da
qual quase que só se
conhece o lado
legendário”. E, mais
adiante: “Disso resultou
que sobre o fundador do
Islamismo se fizeram
ideias muitas vezes
falsas ou ridículas,
baseadas em
preconceitos, que não
encontravam nenhum
corretivo na discussão”.
Ao contrário das lendas
e fantasias a respeito,
Kardec fez questão de
mostrar, por exemplo,
que o casamento de Maomé
com Khadidja não foi
motivado por interesses
materiais, e que os
desvios de ordem moral
que lhe são imputados
somente surgiram a
partir do instante em
que se tornou viúvo. Não
compactuou com a tese de
sua agressividade
natural, dizendo que
“tinha o espírito
meditativo e sonhador;
seu caráter, de uma
solidez e de uma
maturidade precoces,
junto a uma extrema
direitura, a um perfeito
desinteresse e a
costumes
irrepreensíveis, lhe
adquiriram uma tal
confiança da parte de
seus companheiros que o
designavam pelo
sobrenome de El-Amin,
“o homem seguro, o homem
fiel”. Entendeu o Maomé
guerreiro como alguém
que fora levado a tanto
“pela força de
circunstâncias, muito
mais que por seu
caráter”, uma vez que,
decorridos apenas dois
anos de sua residência
em Medina, os
Coraychitas
de Meca, coligados com
outras tribos hostis,
vieram sitiar a cidade,
e ele teve que se
defender, empenhando-se
numa guerra defensiva
que durou dez anos, e na
qual revelou uma grande
habilidade tática.
3.
Colocou, lado a lado, as
condutas de cristãos e
muçulmanos, deixando em
aberto,
propositadamente, a
conclusão sobre quem foi
mais cruel, mais
sanguinolento e mais
fanático, dizendo: “Se
os muçulmanos seguissem
em espírito o Alcorão
que o Profeta lhes deu
por guia, seriam, sob
muitos aspectos, muito
diferentes do que são”.
Mas, ao mesmo tempo,
lembra que “os cristãos
também têm o Evangelho
explícito diversamente
do Alcorão, como código
de moral, o que não
impede, que em nome
desse mesmo Evangelho
que manda amar até os
inimigos, tenham
torturado e queimado
milhares de vítimas e
que, de uma lei toda de
caridade tenham feito
uma arma de intolerância
e de perseguição. Pode
exigir-se que povos
ainda meio bárbaros
façam uma interpretação
mais sã de suas
Escrituras do que o
fazem os cristãos
civilizados?” Evocou o
último discurso
pronunciado por Maomé em
Meca, quando da
peregrinação do adeus,
pouco antes de sua
morte, que se
identifica, em quase sua
totalidade, com a moral
evangélica, como se pode
ver do seguinte trecho:
“Ó povos! Escutai minhas
palavras, pois não sei
se, em outro ano,
poderei encontrar-me
ainda convosco neste
legar. Sede humanos e
justos entre vós. Que a
vida e a propriedade de
cada um sejam
invioláveis e sagradas
para os outros; que
aquele que recebeu um
depósito o devolva
fielmente àquele que o
confiou. Aparecereis
diante do Senhor e ele
vos pedirá contas de
vossas ações. Tratai bem
as mulheres; elas são
vossas auxiliares e nada
podem por si sós. Vós as
tomastes como um bem que
Deus vos confiou e delas
tomastes posse por
palavras divinas”.
4.
Na verdade, a
importância, o alcance e
a atualidade do
pronunciamento de Kardec
não cabem nos estreitos
limites deste trabalho,
porquanto ele extravasa
em muito as nossas
notórias limitações.
Todavia, ele contém um
detalhe que não pode
deixar de ser destacado,
sob pena de grave
omissão. Trata-se da
“descoberta” que Kardec
fez, em meio às palavras
de Maomé, do
reconhecimento da
reencarnação.
Evidencia-se, nesse
fato, a sua notável
perspicácia, senso de
observação e espírito de
pesquisa. Da transcrição
e comentários de trechos
do Alcorão, concluiu
que, embora de maneira
não tão explícita como
no Novo Testamento, a
doutrina da pluralidade
de existências é também
admitida pelo Profeta, a
saber: “Os Ministros do
Senhor nos pregavam a
verdade. Onde
encontraremos agora
intercessores? Que
esperança temos de
voltar à Terra para
nos corrigirmos? Eles
perderam a alma e suas
ilusões se desvaneceram
(Surata VII, v. 50,51)”.
“O vocábulo voltar
implica a ideia de já
ter aparecido, isto é,
de ter vivido antes da
existência atual. Aliás,
Maomé o expressa muito
bem quando diz: ‘Reaparecereis
diante dele e ele vos
mostrará as vossas
obras’. ‘Voltareis
ante o Deus de
Verdade’. É o fundo da
doutrina da
preexistência da alma,
ao passo que, segundo a
Igreja, a alma é criada
ao nascer de cada corpo.
A pluralidade das
existências terrenas não
está indicada no Alcorão
de maneira tão explícita
quanto no Evangelho;
entretanto, a ideia de
reviver na Terra entrou
no pensamento de Maomé,
pois tal seria, segundo
ele, o desejo dos
culpados de se corrigir.
Assim ele compreendeu
que seria útil poder
recomeçar uma nova
existência.”