ANSELMO FERREIRA
VASCONCELOS
afv@uol.com.br
São Paulo, SP (Brasil)
A pessoa
voltada ao bem:
dissecando o pensamento
de Kardec
Inserido na obra O
Evangelho segundo o
Espiritismo,
capítulo XVII, item 3,
que trata do desafio de
sermos perfeitos, um dos
mais importantes legados
do Codificador da
Doutrina Espírita à
humanidade,
especialmente nesses
tempos de grande
conturbação e caos, que
pretendemos examinar
neste artigo. Trata-se
do texto O Homem de
Bem, pois se Jesus
nos recomendou a busca
da perfeição, Allan Kardec, por sua vez, nos
mostrou o caminho para
chegarmos lá.
Ademais, o referido
texto pode ser
considerado - dada a sua
abrangência e
multidimensionalidade -
como um tratado completo
de ética, moral e
progresso espiritual
adequado a qualquer
pessoa interessada em
ser melhor,
independentemente da
religião que professe.
Assim sendo, logo em seu
introito o Codificador
afirmou que “O
verdadeiro homem de bem
é aquele que pratica a
lei da justiça, de amor
e caridade, na sua maior
pureza”. Tal
afirmação nos remete às
seguintes indagações:
estamos em dia com tais
imperativos? Podemos
relacionar com
facilidade o que temos
praticado nessas áreas?
O ato benigno mais
saliente é a caridade.
Às vezes, mesmo quando
fazemos doações,
estabelecemos
pré-condições. Ou seja,
não nos desligamos do
bem doado, pois queremos
saber o que vai ser
feito, a quem será dado,
se for o caso, por
quanto vai ser vendido
etc. Em outras situações
doamos coisas como se
estivéssemos nos
desfazendo de
objetos inúteis. Assim,
não raro, doamos roupas
rasgadas e/ou cheirando
a bolor, calçados e
objetos absolutamente
imprestáveis e assim por
diante. Não vislumbramos
a doação como um
presente que
gostaríamos de receber
se nos encontrássemos na
condição de
necessitados.
Assevera Kardec que se a
pessoa de bem “...
interroga a sua
consciência sobre os
próprios atos
(convenhamos tratar-se
de ação humana quase
sempre deliberadamente
esquecida), pergunta
se não violou essa lei,
se não cometeu o mal, se
fez todo o bem que
podia...”.
Nesse sentido, cabe
destacar que omissão no
bem é oportunidade
desperdiçada. Como tal,
eventualmente pode
acontecer de não surgir
outra chance tão cedo.
Aliás, relata o Espírito
Inácio Ferreira,
conforme consta na obra
Espíritos e Deuses,
uma embaraçosa situação
por ele vivida – à qual
todos nós estamos
igualmente sujeitos –,
quando encarnado e
vivendo em Uberaba,
envolvendo um pedinte
alcoolizado – como sói
acontecer em qualquer
cidade – em que ele não
o tratou com a devida
atenção. Arrependido
tentou reparar o
deslize, mas não viu
mais o infeliz. Como uma
autêntica lição de vida,
a oportunidade de
auxílio àquela criatura
– que ainda continuava
dominada pelo vício - só
lhe foi concedida quando
ambos já estavam do lado
de lá.
Como a pessoa de bem
vive alinhada à
indefectível regra de
ouro, faz aos outros
tudo aquilo que gostaria
que lhe fizessem.
Geralmente, esperamos e
desejamos o melhor para
nós, mas retribuímos o
mesmo aos outros? Além
disso, é preciso atentar
para o fato de que o
mundo não vai mudar para
melhor por decreto. Essa
questão, aliás, remete
aos princípios da
alteridade e da empatia
que devem
necessariamente nortear
a vida em sociedade
doravante.
Consoante a visão
kardequiana
(absolutamente calcada
nos ensinamentos de
Jesus), a pessoa de bem
“Tem fé em Deus, na sua
bondade, na sua justiça
e na sua sabedoria”.
Por isso, “... sabe
que nada acontece sem a
sua permissão, e
submete-se em todas as
coisas à sua vontade”.
Pode-se inferir
ainda que as criaturas
de bem não se revoltam
contra Deus. Ou seja,
entenderam
definitivamente que Deus
é sempre a nosso favor,
que as tempestades
passam e que o brilho do
Sol sempre sucede à
escuridão da noite...
Com efeito, a pessoa de
bem olha e planta para o
futuro. Como já
assimilou a lição que é
dando que se recebe, faz
o bem de todas as formas
ao seu alcance. Afinal
de contas, “Tem fé no
futuro, e por isso
coloca os bens
espirituais acima dos
bens temporais”. Em
decorrência, não tem
dúvidas de que todas as
vicissitudes, dores e
decepções que o(a)
atingem são
provas ou expiações
necessárias e, por ter
fé esclarecida, as
aceita sem se queixar.
Já sabe, enfim, que se
somos escravos do ontem
também somos donos do
nosso amanhã... Por
isso, trabalha
denodadamente no seu
íntimo para se
autoiluminar. Ademais,
tem conhecimento que o
testemunho é um teste
indispensável e a
paciência é uma virtude
basilar.
Aludindo a um outro
aspecto primordial,
Kardec ponderou que a
pessoa de bem encontra
satisfação “nos
benefícios que
distribui, nos serviços
que presta, nas venturas
que promove, nas
lágrimas que faz secar,
nas consolações que leva
aos aflitos”. De
modo geral, entendeu que
a verdadeira alegria
advém da paz de
consciência e de que é
melhor dar do que
receber. Como legítimo
cristão, pensa nos
outros, inclusive antes
dos seus. Aliás, não
pode ter sido por outra
razão que Jesus indagou:
“Quem é a minha mãe?
E quem são os meus
irmãos? (Mateus, 12:
48)”.
Para o indivíduo focado
no bem, o bem-estar do
outro é, de fato, motivo
de autêntica
preocupação. Ao assim
proceder, destrói as
ervas daninhas do
egoísmo e da indiferença
tão presentes no mundo
moderno. Aliás, quanta
dor e sofrimento
poderiam ser eliminados
se pensássemos mais no
impacto que as nossas
decisões e ações têm na
vida alheia.
Vale ressaltar que é
normalmente reconhecido
por ser “... bom,
humano e benevolente
para com todos, sem
distinção de raças nem
de crenças, porque vê
todos os homens como
irmãos”. A
propósito, podemos
afirmar – com
sinceridade – que somos
bons? De modo geral,
todos nós assim nos
achamos; no entanto,
bondade não é uma
característica
predominante da
humanidade – pelo menos
ainda. Cabe, então,
perguntar: somos
compreensivos com os que
são diferentes de nós?
Afinal, é notório o
crescente preconceito
entre nós. Segundo
pesquisas, jovens não
toleram os mais velhos
(tal comportamento,
aliás, é perceptível
dentro dos transportes
coletivos, nas relações
sociais que primam pela
frieza, nas empresas e
assim por diante).
Quantos homens e
mulheres negras, por
exemplo, estão no topo
das empresas e das
universidades?
Recentemente, o programa
dominical Fantástico
noticiava o preconceito
que professoras
concursadas estavam
sofrendo por causa da
obesidade de que eram
portadoras.
Além disso, há criaturas
humanas encarnadas na
atualidade que estão
impregnadas pelo mais
alto grau de
intransigência. Com
frequência quase diária,
grupos terroristas, por
meio de ações cruéis de
autoimolação, massacram
os seus irmãos, bem como
a si próprios num
espetáculo dantesco de
radicalismo em várias
partes do planeta. Em
flagrante contraste, a
pessoa voltada ao bem é
pluralista por
excelência considerando,
entre outras coisas, que
“Respeita nos outros
todas as convicções
sinceras, e não lança o
anátema aos que não
pensam como ela”.
Adota a caridade como
seu guia, pois, como
observou o Codificador
com propriedade,
“Fora da caridade não há
salvação”. Por
conseguinte, não há como
aspirarmos a um amanhã
melhor se não adotarmos
tal prática, de abrirmos
mão da zona de conforto
em que estamos quase
sempre completamente
mergulhados, e de
distribuirmos – pelo
menos de vez em quando –
algumas migalhas do
nosso tempo a algum
doente ou necessitado. A
caridade, nesse
contexto, pode ser
também interpretada como
o nosso esforço em
aceitar com paciência os
que nos aborrecem ou
perturbam a nossa paz,
de endereçarmos uma
prece aos que precisam
de luz e entendimento
mais do que nós.
O Codificador
corretamente identificou
que a pessoa de bem não
acalenta o ódio, o
rancor e tampouco
projetos de vingança em
sua alma. Como acredita
que “a cada um
segundo as suas obras”
(Mateus 16:27), confia
na ação profilática da
justiça divina. Mais
ainda, “sabe que será
perdoado, conforme
houver perdoado”.
Por essa razão, “É
indulgente para as
fraquezas alheias,
porque sabe que ele
mesmo tem necessidade de
indulgência...” Em
suma, não massacra quem
errou.
Kardec notou igualmente
que a pessoa de bem
“Não se compraz em
procurar os defeitos dos
outros, nem pô-los em
evidência”. Ao
contrário, “Estuda as
suas próprias
imperfeições, e trabalha
sem cessar em
combatê-las”. Em
outras palavras, olha
para dentro de si com
coragem e sinceridade.
Em todas as ocasiões
busca dominar os
impulsos desequilibrados
do ego.
Como já alcançou certa
maturidade espiritual,
“Não tenta fazer nem
o seu espírito, nem os
seus talentos, a
expensas dos outros”.
E coisa raríssima de
se pôr em prática hoje
em dia: “...
aproveita todas as
ocasiões para fazer
ressaltar as vantagens
dos outros”. Em
consequência, a pessoa
de bem tem verdadeiro
espírito de equipe e
desprendimento. Por
conta disso, reconhece e
respeita o valor dos
outros. Infere-se que
ele(a) combate a
ciumeira que não raro
nasce das relações
humanas.
A pessoa de bem “Não
se envaidece em nada com
a sua sorte, nem com os
seus predicados
pessoais, porque sabe
que tudo quanto lhe foi
dado pode ser retirado”.
Em síntese, é uma
criatura com
consciência. Aliás,
especulamos que poucos
estão devidamente
preparados paras as
adversidades nesse
mundo. Poucos conseguem
divisar a fugacidade das
vitórias e realizações
humanas... Por isso,
permitimos que
autênticos Cavalos de
Troia adentrem em nossa
casa interior. De fato,
poucos percebem quão
frágeis são as situações
de poder, status,
riqueza e saúde. Não é
por outro motivo que, às
vezes, precisamos de
remédios amargos para
restaurar o nosso
equilíbrio espiritual,
assim como adquirir a
virtude da humildade.
O Codificador ponderou
que o indivíduo motivado
pela ideia do bem não se
escraviza e nem abusa
dos bens materiais que
lhe foram outorgados
pela providência divina.
Afinal, “... sabe
tratar-se de um
depósito, do qual deverá
prestar contas..”.
Com certeza, muitos
poderosos e influentes
do mundo moderno, por
não terem uma educação
espiritual, se depararão
com terríveis surpresas
do lado de lá. Colherão
os frutos do sofrimento
e do remorso lancinantes
que semearam aqui. Nesse
sentido, recentemente
chamou-nos a atenção a
louvável atitude da
família americana
Salwen.
Incomodados pelas
discrepâncias sociais
existentes em seu país,
e em comum acordo, eles
decidiram doar a metade
do patrimônio familiar
(cerca de US$ 800 mil)
para a organização
humanitária The
Hunger Project. A
doação foi aplicada numa
comunidade carente
situada em Gana no
continente africano. A
família tem acompanhado
a utilização do dinheiro
e relatou a sua
experiência no livro
The Power of Half (O
poder da metade).
Eventualmente, as
pessoas voltadas ao bem
têm outras criaturas a
elas subordinadas.
Quando isso ocorre,
“... trata-os com
bondade e
benevolência...”,
pois os considera
absolutamente iguais,
não humilha, enfim, os
mais simples. Kardec
asseverou que elas usam
a “... sua autoridade
para erguer-lhes a moral
a não para os esmagar
com o seu orgulho, e
evitar tudo quanto
poderia tornar mais
penosa a sua posição
subalterna”. Com
efeito, as posições no
mundo são passageiras e
os poderosos também são
apeados como claramente
revela a história
humana.
Por outro lado, aquele
que se encontra na
condição de subordinado
“compreende os
deveres da sua posição,
e tem o escrúpulo de
procurar cumpri-los
conscienciosamente”.
De fato, a nossa
civilização clama por
pessoas que cumpram a
suas missões com zelo,
eficiência e
responsabilidade. Se
todos fizerem a sua
parte estarão ajudando o
planeta Terra a ser uma
morada mais aprazível.
Kardec concluiu esse
seminal texto observando
que a pessoa de bem “respeita
nos seus semelhantes
todos os direitos que
lhes são assegurados”,
até porque deseja que os
seus sejam igualmente
reconhecidos. Por fim,
vale destacar que Allan
Kardec nos ofereceu há
quase 150 anos atrás
orientações concretas,
precisas e
insofismáveis, além de
embasadas no repto de
Jesus, a fim de podermos
um dia alcançar a
perfeição moral.