CHRISTINA NUNES
meridius@superig.com.br
Rio de Janeiro,
RJ (Brasil)
Cordel da
eternidade
De volta de uma
semana de viagem
de férias na
cidade de
Fortaleza, quero
escrever logo
sobre a
experiência
comovedora, pois
a passagem dos
dias se
encarrega rápido
demais de nos
acordar do
encanto mágico
daquelas
paisagens
paradisíacas
para o roldão
arrebatador das
obrigações e
correrias da
cidade grande.
Praia de
Cumbuco, um dos
cartões postais
mais lindos do
Ceará.
Conversávamos
com a simpática
família de
Osasco, marido,
esposa e dois
meninos, quando
vem o
senhorzinho
empunhando seus
livros de cordel
nas mãos.
Incertas,
interrompemos,
eu e a paulista
bem humorada,
nossa conversa
sobre alguma
coisa de que não
consigo me
lembrar agora,
desviando
irresistivelmente
a atenção para
o personagem
pitoresco,
típico de nossa
cultura
nordestina.
Considero-os,
desde sempre,
carismáticos –
quase
hipnóticos. E
sempre e sempre
as minhas
visitas
periódicas às
terras do
nordeste
justificaram
este meu
fascínio. Assim,
observando o
homenzinho
franzino, mas de
presença
marcante logo à
primeira vista,
analisei com
discrição,
enquanto
nos dispúnhamos
a ouvir os
versos que, sem
cerimônia, já ia
improvisando a
respeito do
grupo de
turistas do
sudeste que
tinha à sua
frente.
Aparentava, no
rosto vincado e
marcado pelos
anos incontáveis
de rudeza,
talvez que mais
de setenta anos.
Não tinha isso
tudo – pouco
depois soube,
tomando
conhecimento de
uma fatia
modesta de sua
rica vida de
andante. Aceitei
de suas mãos
vincadas os
livrinhos que
nos exibia,
enquanto se
dividia entre
conversar
conosco e
improvisar sua
poesia cheia de
inspiração e
sabedoria. E,
conforme fui
folheando, a
sensação de
encanto ainda
desta vez se
avantajou.
Françuar G. Cruz
é o seu nome,
grafado na
autoria de capa.
Os dois
livrinhos
intitulavam-se
Cumbuco em
Poesia
e
O Encontro de
Patativa com
Luiz Gonzaga no
Céu.
Deus do céu! –
eu me
assombrava,
mergulhando na
leitura ainda
que ligeira
daquele momento,
enquanto o
senhorzinho
Françuar
prosseguia na
sua reza poética
agora dirigida
ao menininho
paulista que o
escutava, entre
absorto e
curioso. Quanta
sabedoria em
palavras
organizadas de
forma a um só
tempo tão
simples e tão
bem construída!
Muitos erros de
português.
Natural que
assim fosse. O
trabalho de
Françuar tem o
apoio da
Universidade
Federal do Ceará
e da
Universidade
Estadual do
Ceará – talvez
na editoração.
Mas percebe-se
que o corpo de
texto é
intocado,
preservado na
sua
originalidade,
muito
provavelmente
para conservar a
sua beleza
arrebatadora e
inculta, quanto
o são as
paisagens
virgens de
muitas das
praias
celestiais
daquele estado
fértil em
artistas de
valor!
Enquanto, meus
amigos, sobejam
hoje em dia
representantes
de uma
arte traquejada
em vestir em
fogos de
artifício
embriagadores um
produto
comercial oco,
mas de fácil
digestão,
embora fútil de
conteúdo, o que
se observa
nestes
representantes
genuínos de
nossa cultura é
justo o
contrário! E é
por isso que
encanta! É por
esta razão que,
lendo os
versos de
Françuar,
nutrimos à
saciedade a
nossa alma
sedenta deste
tipo de cordel
da eternidade,
onde, de
entremeio às
rimas
caprichosas,
encontramos a
descrição
tocante e fiel
das vidas
cotidianas das
gentes do nosso
povo nordestino
– as
dificuldades do
pai desempregado
com os filhos
para criar; a fé
robusta,
intuitiva e mais
valiosa, bem a
que sustenta
esta gente na
luta áspera do
dia-a-dia sem
esmorecimentos!
Eles sabem que
Deus supre! E
também que o
Criador de todas
aquelas
belezas estonteantes
das praias do
nordeste não
erra jamais –
ainda que no
meio do
mais acre sofrimento!
Embevecia-me,
lendo aquelas
linhas,
compreendendo,
enternecida, que
tudo o que a
população
enervada das
grandes cidades
esquece e só
consegue
recordar ao
custo de uma
busca espiritual
e material
intensa, aquele
povo aprende de
maneira natural
e precoce, nas
agruras romanceadas
de suas longas
histórias de
vida!
E Françuar é bem
um exemplar
típico desta
afirmação!
Enquanto me
dispus a apanhar
o dinheiro em
minha bolsa para
comprar os dois
livrinhos, ele
resumiu a sua
história para a
amiga paulista
com quem eu
conversava.
Perdeu a mãe
no seu
parto. Foi
criado pelo pai,
mas, ano e meio
depois, ele
também se foi!
Responsabilizou-se,
então, por
Françuar, um
padre francês -
desconfio que
seu nome se
origina bem daí;
talvez fosse
François, que
no decorrer de
sua vida desde
então ele não
tenha sabido
grafar direito.
Pois, passados
alguns anos,
morreu também
esse padre, o
seu esteio!
E ficou o menino
ao léu neste
mundo! Deve,
então, somente
Deus saber o
tanto de
dificuldades e
episódios
inacreditáveis
que o
poeta atravessou
nos mares
revoltosos da
vida para chegar
até aqui, até
hoje – vivo,
apesar de
tudo! –
sobrevivendo,
não sei se só
disso, de sua
literatura de
cordel vendida
nas praias belas
do Ceará!
Transcrevo
abaixo algumas
de suas estrofes
aos amigos
leitores.
Elas são a prova
viva de que a
essência
do Cordel, muito
acima de uma
representação
cultural a mais
dentre a
variegada
riqueza regional
de nosso povo, é
também componente indispensável
à nossa
sobrevivência
pela eternidade
afora, nas
muitas vidas que
ainda virão!
É nutrição para
a alma, meus
caros! E, num
mundo onde tudo
o mais, por
melhor que seja,
mostra-se
passageiro, não
duvidem de que é
exclusivamente
deste alimento
que necessitamos
para que hoje,
quanto também no
futuro e após as
nossas
transições,
possamos facear
com dignidade as
hostes inefáveis
de Deus!
Quanto menos tu
espera
Vem tudo pras
tuas mãos
Você pensando em
Deus
O autor da
Criação
Se tu não se
desespera
Tem recursos na
mansão
Mas eu sou
Françuar
Que sonho com a
poesia
Eu trouxe do
nascimento
A santa
sabedoria
As coisas
melhores não há
Do que a
diplomacia
O homem com
esperança
Sofre mas é
vencedor
Vai na casa
do patrão
Vim ocupar o
senhor
Que os recursos
das crianças
Lá em casa já
acabou
Mas o homem
preguiçoso
Tem uma cabeça
fria
Mesmo em casa
sem nada
Os filhos em
agonia
Assim nosso
Poderoso
Lhe castiga todo
dia
Aqui eu termino
o verso
Agradeço
verdadeiro
Como é lindo o
universo
Falando nos
cubuqueiros
Que reconhece o
poeta
Que rima dentro
da meta
Pra não fugir do
roteiro.
Que Deus o
proteja e
recompense,
Mestre Françuar!