– Uma ação popular,
baseada na existência de
conteúdo racista no
livro Obras Póstumas,
de Allan Kardec,
solicitou à justiça o
recolhimento do citado
livro. O magistrado que
julgou a ação não acatou
o pedido. Como se pode
analisar essa e outras
acusações de mesmo teor
em textos kardequianos?
Raul Teixeira:
É uma consequência muito
clara da deformação de
muitas mentalidades, que
saem das nossas escolas,
das nossas
universidades, e que
passam a reger a vida
coletiva, a vida social,
ficando todos nós à
mercê das suas
incoerências e, às
vezes, das suas
inconsequências.
Na década de 1980, o
notabilíssimo Paulo
Freire, em seu livro
Ação cultural para a
liberdade e outros
escritos, teve
ocasião de apresentar um
texto de grandíssima
importância para a
formação de qualquer
intelectual:
Considerações em torno
do ato de estudar.
No referido texto,
ensina Freire:
Estudar é, realmente, um
trabalho difícil. Exige
de quem o faz uma
postura crítica,
sistemática. Exige uma
disciplina intelectual
que não se ganha a não
ser praticando-a.
E, mais adiante,
explicita Paulo Freire:
O ato de estudar é o de
assumir uma relação de
diálogo com o autor do
texto, cuja mediação se
encontra nos temas de
que ele trata. Esta
relação dialógica
implica na percepção do
condicionamento
histórico-sociológico
(é meu o destaque) e
ideológico do autor, nem
sempre o mesmo do
leitor.
Quando se sabe, pois,
estudar, não se pode ler
um texto de outra época,
de outro contexto
cultural e pessoas que
também tinham liberdade
de pensar –
condicionamento
histórico, sociológico e
ideológico – como nosso
gosto, nossa cultura ou
ideologia atuais. Será
necessário, a fim de
entendê-lo em sua
magnitude, identificar
em que contexto foi
elaborado, o que se
passava em termos
sociais, políticos,
religiosos e econômicos,
enfim, em sua
contextualização
histórica. É como quem
estuda um osso, numa
escavação arqueológica.
Há que se encontrar tudo
o que esteve em torno
daquele fenômeno, a fim
de que se lhe possa
atribuir o valor a ou b.
Sem esses cuidados tudo
não passaria de uma
aberração.
Para que alguma ação
popular ou individual
solicitasse à Justiça o
recolhimento de qualquer
texto espírita, teria
que solicitar antes à
mesma Justiça o
recolhimento de todos os
exemplares da Bíblia
(nela o Senhor manda até
que se exterminem povos
os inimigos, os de
outras etnias ou
crenças... e tudo parece
normal, aceitável e...
divino); teriam que ser
recolhidos as reedições
de A República,
do notável Platão, uma
vez que para ele, à
época, a escravidão era
um direito do
escravista, por isso
normal, e assim por
diante.
Bom é quando se encontra
um magistrado que tenha
tido boa escolaridade,
que se preparou para a
sua missão e por isso é
dotado de bom-senso, sem
o espírito seitista, sem
parti pris, e que,
assim, consegue dar bons
desfechos a questões
balofas, quanto é a de
se desejar cassar
qualquer literatura de
outras épocas, de outras
culturas e de autores
que não são obrigados a
pensar como nós.
Quanto aos espíritas,
sinceros e honestos para
com a Causa professada,
cabe-nos cada vez mais e
melhor estudar o
Espiritismo, a fim de
compreender o seu
caráter univérsico, onde
não se admite
preconceito de nenhum
modo, nem de credo, de
etnia, de orientação
sexual, de nível
socioeconômico, menos
ainda da cor da pele.
Vale considerar, por
fim, que, sendo o livro
Obras Póstumas,
como o nome indica,
publicado após a
desencarnação de Allan
Kardec, em 1890, tendo
seus amigos reunido
muitos textos que
encontraram e os havendo
publicado em nome do
insigne falecido, quem
pode garantir que tenha
sido ele escrito pelo
Codificador? Quem pode
entender os motivos que
levaram Kardec a não
tê-lo publicado nem
jamais haver tangido
essa questão nas obras
da Codificação Espírita?
De qualquer modo, propor
o recolhimento de uma
obra literária do séc.
XIX, alegando algum
conteúdo racista, como
se pretendeu fazer com
textos de Monteiro
Lobato e do referido
livro kardequiano, é,
para dizer o mínimo, uma
maldosa ingenuidade, num
país com tantas e graves
arbitrariedades sociais
contra minorias, contra
o que vemos muito poucas
vozes se levantando para
propor reformas ou
cassações dos decretos
ou das leis que lhes dão
respaldo.
Quanto aos verdadeiros e
valorosos espíritas, que
avancem caminho afora,
por meio de uma vida de
dignidade e de alegria,
certos de que, como
asseverou o Espírito de
Verdade a Allan Kardec,
em O Livro dos
Espíritos, perg.
798, sobre se o
Espiritismo se tornaria
crença comum:
Certamente que se
tornará crença geral e
marcará nova era na
história da humanidade,
porque está na natureza
e chegou o tempo em que
ocupará lugar entre os
conhecimentos humanos.
Terá, no entanto, que
sustentar grandes lutas,
mais contra o interesse
do que contra a
convicção, porquanto não
há como dissimular a
existência de pessoas
interessadas em
combatê-lo, umas por
amor-próprio, outras por
causas inteiramente
materiais.
Entrevista concedida
especialmente a esta
revista em 29 de junho
de 2011.
|