MILTON SIMON
PIRES
cardiopires@gmail.com
Porto Alegre, RS
(Brasil)
O silêncio do
abismo
Muito já foi
escrito sobre o
poder e a sua
justificativa.
História,
filosofia,
direito e
sociologia vêm
abordando o tema
há séculos e sou
daqueles que
acreditam que
depois de Hannah
Arendt e
Bertrand de
Jouvenel, muito
pouco resta a
ser dito. O que
poderia um
simples médico
acrescentar
sobre o assunto?
Talvez um médico
de Porto Alegre
devesse escrever
sobre o fim do
poder de sua
classe e
denunciar os
políticos
semianalfabetos
e
administradores
corruptos que
tomam decisões
de vida ou morte
dentro de
hospitais
superlotados,
mas não é este o
meu objetivo
aqui. Não vou
perder tempo
denunciando
gente que pensa
que o “fígado
fica do lado
esquerdo do
abdômen” ou que
a “veia aorta é
a mais
importante do
pescoço”. O
lugar destas
pessoas é em
Brasília... O
objetivo deste
artigo é
sustentar que o
verdadeiro poder
“total” é
resultado, não
daquilo que ele
(poder) faz ou
diz, mas daquilo
que ele não
faz e não
diz.
Entre 1964 e
1985 o Brasil
viveu um período
em que as
pessoas eram
presas,
torturadas,
desapareciam...,
enfim, sofriam
na pele as
consequências de
uma ditadura
militar. Não há
dúvida da força
daquele regime e
do seu controle
sobre a vida
privada do
cidadão, mas,
mesmo assim, eu
sustento que
aquele não era
um poder total.
Tenho, nas
minhas
recordações de
infância, a
lembrança do
Jornal Nacional
entrando no ar
todas as noites,
às 20 horas.
Inúmeras foram
as vezes a que
eu assisti um
general,
brigadeiro, ou
almirante, dando
explicações
sobre a situação
política do país
e justificando
medidas de
força. Isto
mesmo, a
ditadura se
justificava!
Simples ou
complexas,
verdadeiras ou
falsas, com
repercussão ou
sem, sempre
havia
explicações
sobre a
inflação,
prisões, atos
institucionais...
Havia a Revista
Cruzeiro, a
Manchete, gente
como Chico,
Caetano, Gil, e
jornalistas como
Vladimir Herzog,
que cobravam e
estimulavam toda
uma sociedade a
buscar
explicações. Daí
decorre que, por
mais cruel que
fosse, o poder
nunca foi total.
Sua capacidade
de se justificar
se esgotou e ele
chegou ao seu
fim.
Entre 1985 e
hoje decorreram
26 anos. O que
aconteceu neste
meio tempo?
Colégios
particulares
(com mensalidade
cara) em Porto
Alegre têm
cocaína
oferecida para
os estudantes,
quase em suas
portas. Nossas
filhas aprendem
(às vezes com 3
anos de idade) a
“dança da
garrafa”. Nossos
filhos têm que
aceitar a ideia
de que ser
homossexual é
uma opção, que
Deus não existe,
que, de fato,
vagas para
afrodescendentes
são justas, que
a Terra está
aquecendo e que
jamais deverá
ser cobrado
qualquer tipo de
atendimento
médico no
sistema público.
Sem entrar no
mérito destas
questões, faço
apenas uma
observação – não
é mais possível
discordar destas
ideias sem ser
considerado um
reacionário ou
ser acusado de
querer a
ditadura de
volta. Este é,
na minha
opinião, o
verdadeiro poder
total. Um poder
que não precisa
mais
justificativa
porque já não
tem mais
adversários que
possam ser
levados a sério.
O poder aprendeu
com Hannah
Arendt que seu
maior inimigo é
o deboche e sua
maior arma a
risada. Ele
próprio passou a
ridicularizar
seus adversários
como sendo
anacrônicos,
usando
categorias do
pensamento
invariavelmente
ligadas ao
marxismo ou à
psicanálise. O
poder sustenta
que, sendo
democrático,
sempre se
justifica. A
ética parece ter
se tornado, como
diria Jorge Luís
Borges, um ramo
da estatística.
Não contestamos
mais o poder do
Estado, já que
este parece ser
definitivamente
o melhor Estado
possível e, como
eu escrevi em
outro texto,
substituímos
verdade por
consenso. O
sonho, segundo o
poder, não
acabou, ele se
realizou
através da
democracia.
Todas estas
transformações
vêm ocorrendo de
forma lenta,
irreversível e,
acreditem ou
não, planejada.
A sociedade
inteira parece
vítima de uma
paralisia moral
e é impossível
deixar de
lembrar
Maquiavel com
seu aviso:
quando as coisas
mais graves são
percebidas pelas
pessoas mais
simples, já é
tarde demais.
Sobre tudo que
escrevi aqui,
decorre uma
conclusão que me
parece
inevitável: ou
não é verdade e
vai ser
(publicado ou
não) esquecido;
ou é verdade, e,
neste caso,
caminhamos todos
nós rumo ao
abismo..., um
abismo sem
algemas,
torturas,
prisões ou
desaparecimentos.
Um abismo sem
censura, mas
preenchido pelo
mais
angustiante,
absoluto,
covarde, e
devastador
silêncio.
O autor,
radicado em
Porto Alegre-RS,
é médico.