JOSÉ CARLOS MONTEIRO DE MOURA
jcarlosmoura@terra.com.br
Belo Horizonte, MG (Brasil)
“Espírita não
condena”
1. Sempre
existiu, na
tradição
forense, a ideia
segundo a qual
os espíritas são
os jurados que
melhor atendem
aos interesses
da defesa, uma
vez que, de
acordo com a voz
corrente,
“espírita não
condena
ninguém”.
Durante mais de
trinta anos de
atuação na
tribuna do júri,
não conseguimos
comprovar o
acerto dessa
afirmativa.
Constatamos,
isto sim, uma
grande tendência
condenatória
entre os
seguidores das
religiões
reformadas, e
uma acentuada
indefinição
entre os
católicos, que
ora pendem para
um lado, ora
para o outro.
Como constituem
a grande maioria
do universo
religioso
brasileiro, são,
por conseguinte,
os mais visados
e os que mais
sofrem as
influências de
toda sorte a que
se acham
sujeitos os
jurados de um
modo geral. Por
isso, torna-se
difícil uma
conclusão mais
concreta a
respeito de suas
tendências. O
certo é que as
mais absurdas
decisões do
Tribunal do
Júri, tanto
absolutórias
como
condenatórias,
partem, na
grande maioria
das vezes, de
conselhos de
sentença dos
quais não
participam
seguidores de
outros credos
religiosos,
mesmo porque,
principalmente
em cidades de
menor porte, a
intolerância
religiosa ainda
predomina, e os
que não rezam
pelo credo
romano sofrem as
conhecidas e
notórias
restrições.
Atualmente, com
crescimento da
Igreja
Universal, e de
outras que
guardam
semelhança com
ela, o fenômeno
vem perdendo sua
força, sobretudo
no que tange à
aceitação pela
sociedade dos
chamados
“crentes”. O
Espiritismo, não
obstante,
continua sendo
visto com
desconfiança e
temor, e o
espírita, como
“alguém que mexe
com estas
coisas”, o que
lhe confere uma
postura até
certo ponto
misteriosa e
inusitada!
2. Nenhum
argumento sério
autoriza a
existência dessa
autêntica lenda,
a não ser o
preconceito e o
radicalismo
religioso.
Durante algum
tempo, quando
ainda não
conhecíamos nada
de Espiritismo,
aceitamos tal
entendimento sem
maiores
indagações e sem
a menor
preocupação de
sondar a sua
veracidade.
Agimos, neste
caso, com a
tranquilidade
própria dos
ignorantes. Mais
tarde, já
devidamente
esclarecidos a
seu respeito,
constatamos que
tudo não passava
de mais um dos
enormes
equívocos que a
maioria das
pessoas alimenta
quanto a ele,
Espiritismo.
Verificamos, por
outro lado, que
os jurados
espíritas
condenavam ou
absolviam, tanto
quanto os
demais.
3. É de
lamentar, no
entanto, que
essa falsa visão
não se acha
restrita apenas
aos
não-espíritas,
porquanto é
perfilhada por
muitos que se
dizem adeptos da
Doutrina.
Trata-se de um
dos muitos
problemas que a
perspicácia de
Allan Kardec
detectou,
conforme se pode
ver no Capítulo
XXIX, nº. 334,
de O LIVRO
DOS MÉDIUNS.
O termo espírita
carrega, no
entendimento
vulgar, uma
série de
conotações
eivada de erros
e de
preconceitos.
Abrange um
universo enorme,
que vai desde os
integrantes do
sincretismo
religioso, sob
as suas variadas
denominações,
até aos
seguidores dos
cultos e das
seitas em que o
exotismo ocupa o
lugar de maior
destaque,
passando, ainda,
pelas inúmeras
veredas de
quantos se
definem
espiritualistas.
Essas formas de
religiosidade,
embora
merecedoras de
respeito, não
guardam nenhuma
afinidade com a
Doutrina dos
Espíritos e a
confusão,
consciente ou
inconsciente,
que se
estabeleceu
entre elas e o
Espiritismo
enseja
raciocínios e
ilações
inteiramente
distantes da
verdade, como a
de se imputar
aos espíritas
uma conduta de
total alienação
em face das
questões
sociais. Essa
atitude,
reveladora de
uma cômoda e
condenável
omissão, os
acompanharia
também, quando
convocados a
julgar seus
irmãos pelo
cometimento de
um ilícito
penal, cujo
julgamento se
inscreve no rol
dos que são da
competência do
Júri Popular.
4. O raciocínio
peca, contudo,
pela total
ausência de
razão. Ao
espírita não é
vedado julgar,
ainda que desse
encargo advenha
a inevitável
aplicação de uma
pena. Ele, como
qualquer outro
cidadão, não
pode fugir da
responsabilidade
que o Estado lhe
delegou, ao
convocá-lo para
o serviço do
júri. Seria
ótimo se a
sociedade
moderna já não
mais convivesse
com a
criminalidade e
que, no lugar
das
penitenciárias e
das cadeias,
estivesse
edificada uma
escola. Todavia,
esse grau de
desenvolvimento
e evolução ainda
se acha muito
distante de ser
alcançado. A
pena, por isso
mesmo, no
estágio atual da
humanidade,
permanece,
teoricamente,
como o
instrumento mais
eficaz de que a
sociedade dispõe
– pelo menos
teoricamente –
para
restabelecer o
equilíbrio
social abalado
pela ação do
delinquente. A
concepção de que
o espírita, por
uma questão de
princípios, não
condena ninguém
não se harmoniza
com o sentimento
de
responsabilidade
que a ele cabe
assumir diante
de si, de Deus e
da sociedade,
sob pena de ser
considerado, nos
termos do
magistério de
Kardec, mais um
“espírita de
nome” (a
respeito,
REVISTA ESPÍRITA,
novembro de
1861).
5. O que Jesus
proscreveu foi o
julgamento
apressado,
afoito,
impregnado de
má-fé, no qual,
muitas vezes, a
verdadeira
intenção do
julgador
permanece
oculta, a
exemplo do que
ocorreu no
episódio
envolvendo a
mulher
adúltera.
No Sermão do
Monte (Mateus,
7: 1 e 2), Ele
nos adverte
quanto a essa
maneira de
julgar. Ela é
típica do
chamado juízo
temerário,
caracterizado
pela impiedade
ou ditado pelas
aparências que,
costumeiramente,
enganam. Uma
interpretação
exclusivamente
literal e
isolada desses
dois versículos
poderia levar à
absurda
conclusão de que
toda e qualquer
forma de
julgamento é
defesa aos
cristãos. Os
juízes de
direito seriam,
pois, vítimas de
uma autêntica
“injustiça
divina”,
porquanto
nenhuma
esperança teriam
quanto à sua
vida futura, em
face de sua
própria
atividade
profissional.
Não obstante,
todos sabemos da
sua importância
dentro da
sociedade, em
virtude dos
constantes e
cada vez mais
numerosos
conflitos que
afloram a todo
instante em seu
seio, e do
elevado índice
de criminalidade
dos dias atuais.
6. O
sentido da
proibição se
completa e se
integra no
contexto
evangélico
através dos
versículos 3, 4
e 5 da mesma
narrativa de
Mateus: – “E
por que reparas
tu o argueiro
que está no olho
do teu irmão, e
não vês a trave
que está no teu
olho? Ou como
dirás a teu
irmão: Deixa-me
tirar o argueiro
do teu olho,
estando uma
trave no teu?
Hipócrita, tira
primeiro a trave
do teu olho, e
então cuidarás
de tirar o
argueiro do olho
do teu irmão”.
De mais a mais,
durante o seu
messiado, Jesus,
em diversas
oportunidades,
estabeleceu
juízos de valor,
e, em
consequência,
julgou,
contrariando,
dessarte, os que
sustentam a
proibição
absoluta do
julgamento. Na
sua explicação
sobre a
gravidade e a
dimensão das
ofensas feitas
ao nosso irmão,
foi de meridiana
clareza ao não
excluir do
julgamento
humano os
autores dessas
ofensas:
–
“Ouvistes que
foi dito aos
antigos: Não
matarás; mas
qualquer que
matar será réu
de juízo. Eu,
porém, vos digo
que qualquer
que, sem motivo,
se encolerizar
contra seu
irmão, será réu
de juízo; e
qualquer que
disser a seu
irmão: Raca,
será réu do
sinédrio; e
qualquer que lhe
disser:
louco, será
réu do fogo
do inferno”
- Mt., 5: 21 a
23.
A expressão
réu de juízo
significa os
diversos graus
da Justiça
Humana: a outra,
réu do
sinédrio, se
refere à Justiça
de Deus. A
primeira,
contudo, não
exclui a
segunda, em
virtude de sua
inexorabilidade,
traduzida pela
regra imperativa
do a cada um
será dado de
acordo com
suas obras.
Ninguém, mesmo
quem já foi
compelido a
prestar conta de
suas ações ao
Judiciário
terreno, está
isento de ser
julgado e
sancionado pela
Justiça Divina.
Isso integra o
seu mecanismo
operacional, que
jamais dispensa
a “reparação
pelo dano
causado”,
exigindo que, na
execução de suas
penas, “até o
último jota e o
último ponto”
sejam fielmente
cumpridos.
O episódio da
interpelação do
Cristo acerca da
licitude, ou
não, do
pagamento dos
impostos devidos
a Roma ratifica
inteiramente
esse
entendimento,
uma vez que ele
fez questão de
destacar a
existência de
duas espécies de
jurisdição, a
humana e a
divina,
mandando dar a
Deus o que era
de Deus e ao
homem o que lhe
pertencia.
7. A única
conclusão
razoável diante
da posição
evangélica
quanto ao
julgamento é a
de que ela se
reveste de
caráter
relativo, e não
absoluto. Nem as
ratificações
posteriores de
Paulo e Tiago
(Romanos, 14:13
e Epístola
Universal, 4:12,
respectivamente).
Tomada ao pé da
letra importaria
em um verdadeiro
caos para toda a
humanidade e
nenhuma
organização
política
conseguiria
sobreviver à
falência que
provocaria.
Todo homem de
bem, profitente
de qualquer
religião, não
deve, pois,
julgar pelas
aparências,
movido pela
simpatia ou
antipatia, pelos
interesses
políticos, pelas
rivalidades de
qualquer
espécie, pelas
filiações
religiosas,
enfim, por todos
os fatores que
atuam na
formação da
opinião pública
e que, na
maioria das
vezes, somente
se prestam para
conduzir ao
passionalismo
irracional e a
injustiças
inomináveis.
Qualquer
julgamento,
sobretudo
aqueles da
competência da
Justiça
Criminal, deve
procurar sempre
o amparo da
verdade
histórica,
embora essa nem
sempre se
identifique com
a verdade
processual. Nos
casos duvidosos,
mal esclarecidos
ou tendenciosos,
a consciência
jurídica,
calcada na noção
do justo e do
injusto que cada
um traz dentro
de si, não
autoriza uma
decisão
condenatória.
Não se trata,
porém, de
apanágio
exclusivo de
alguma profissão
religiosa,
porquanto nada
mais é do que a
simples
aplicação de um
brocardo
jurídico de
tradição
milenar. É o
famoso in
dubio pro reu
do Direito
Romano, ainda de
uso corrente na
atualidade, cuja
existência é
anterior ao
Cristianismo e
que, em face
disso, não pode
ser invocado
para justificar
a inverídica
proibição de
julgar e
condenar
imputada aos
espíritas.