O sofrimento
alheio
Hilário Silva
O bonde
deslizava em
marcha regular,
mas Belarmino
Cintra, sentado
no quinto banco,
extravasava
desespero.
Parecia não ver
os carros que
buzinavam, nem o
casario em
torno, nem
circunstantes,
nem a chuva
garoenta.
Ele só e a
excitação. Ele
só e a mágoa.
Aguardava a
promoção por
onze anos de
trabalho correto
na repartição e
era funcionário
há mais de
vinte.
Esforçara-se,
renunciando a
facilidades
diversas,
pensando na
melhoria.
No momento
exato, porém, a
melhoria
alcançara outro
que, a seu ver,
não
correspondera.
Indignado,
escrevera uma
carta ao chefe,
ameaçando-o com
um inquérito
escandaloso, e o
chefe chamara-o
a gabinete para
entendimento
pessoal.
Sentia-se
desanimado,
infeliz. Era pai
de família.
Esposa e quatro
filhos. Não
tinha débitos a
solver, mas
nenhum vintém no
pé-de-meia.
No fim do mês,
era sempre a
mesma situação.
Contas pagas e
bolso vazio.
Achava-se, por
isso,
inconformado,
revoltado... Não
suportaria
qualquer
advertência.
Armara-se. Se o
chefe lhe
desconsiderasse
a atitude,
reagiria...
O veículo para
por dois longos
minutos,
esperando por
outro no
entroncamento. E
Belarmino,
relanceando os
olhos, é quase
obrigado a ler
uma frase no
volume que a
senhora míope
ergue muito
alto, no banco,
em frente.
É um livro
espírita, em
cujo texto ele
anota um aviso,
letra por letra:
— “Tenha
paciência.
Fitando o
sofrimento
alheio,
aprendemos a
encontrar a
felicidade que é
nossa.”
Belarmino
sente-se como
sob ducha fria.
Nisso, no
instante exato
em que o bonde
larga de novo,
um homem pesado
toma o veículo,
a esbofar-se,
enxugando o
suor, apesar do
tempo frio.
Senta-se rente
ao escriturário
preterido, e,
porque um senhor
vizinho lhe
mostre semblante
mais ameno,
fala-lhe à
queima roupa:
— Vida penosa!
Não aguento
mais!...
— É, meu caro
amigo! — disse o
companheiro
anônimo — cada
qual neste mundo
tem sua quota de
aflição...
Porque o bonde
passasse à
frente de um
consultório
médico em que se
via grande
número de
consulentes
esperando vez, o
recém-chegado
observou:
— Vida boa é de
médico! Parece
que os clientes
lhe trazem a
sopa à boca.
O outro, no
entanto,
discordou:
— O senhor está
enganado. Eu sou
médico. Estamos
presos ao
sofrimento
humano. Cada
enfermo é um
problema. E os
cabelos
embranquecem ou
caem cedo como
se tivéssemos um
vulcão na
cabeça. De minha
parte, estou
fatigado. Ainda
ontem vi minha
mãe morrer nos
meus braços,
devorada pelo
câncer, sem que
eu lhe pudesse
dar outra coisa
senão
anestésicos.
E num desabafo:
— Vida boa deve
ser a de quem
possa andar ou
viajar
livremente,
assim como o
caixeiro
viajante...
O outro, porém,
revidou:
— Caixeiro
viajante? Não
diga isso. Sou
viajante
comercial há
quinze anos...
Encontro
humilhações por
toda parte,
separado da
família na maior
parte do
tempo... E, para
cúmulo do azar,
fui
responsabilizado
inocentemente
por um desfalque
de quatrocentos
mil cruzeiros...
Devedores
astuciosos
conseguiram
envolver-me
nisso, sem que
eu tenha
culpa...
Belarmino queria
continuar
ouvido, mas uma
senhora triste
entrou na parada
próxima,
carregando um
pequenino
doente. Faixa
sanguinolenta
envolvia-lhe os
olhos.
— Que foi? —
dessa vez foi o
próprio Cintra
quem perguntou,
lembrando os
filhos.
E a senhora:
— Meu filhinho
perdeu os olhos
com a explosão
de uma bomba.
Belarmino
procura
consolá-la.
Daí a instantes,
o funcionário,
transformado,
desce e entra no
gabinete da
chefia.
O diretor
recebe-o,
evidentemente
irritado. Mas
Belarmino fala,
humilde:
— Doutor, antes
de tudo, quero
pedir-lhe
desculpas por
minha carta
violenta e
ofensiva... Eu
não tinha razão!
O chefe sorriu,
como quem se
livrara de um
desastre
iminente, e
falou, alegre:
— Oh! Graças a
Deus, você
entendeu por
fim... As
injunções
políticas são
pedras no
caminho... Somos
companheiros,
Belarmino. Não
perca a
esperança. A
promoção virá
breve...
Mas Belarmino
sorri também, e
roga:
— Doutor,
peço-lhe! Não se
preocupe comigo!
Eu estava
perturbado.
E despediu-se
tranquilo, para
voltar ao
trabalho. Mas,
no dia seguinte,
o chefe
procurou-o, com
excelentes
informes, e
Belarmino
contou-lhe a
história viva da
frase que lera
de escantilhão.
Do cap. 15 do
livro Almas
em Desfile,
de Hilário
Silva,
psicografado
pelos médiuns
Waldo Vieira e
Francisco
Cândido Xavier.