EUGÊNIA PICKINA
eugeniapickina@gmail.com
Campinas, SP
(Brasil) |
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Transposição
Supostamente aos
noventa e três
anos, Sófocles
retomou o tema
de Édipo, a
trágica trama da
história ferida
que, guiando-se
de forma
inconsciente,
fere gerações
subsequentes.
Quando tudo se
torna uma
catástrofe,
Édipo é lançado
no exílio, vaga
sozinho,
penitente,
durante muitos e
muitos anos.
Através do seu
sofrimento, ele
atinge um
relacionamento
humilde com os
deuses e, quando
vem a falecer em
Colono, ele
recebe uma
apoteose e é
abençoado por
eles. E assim o
cego, mas
redimido Édipo,
aquele que
alcançou um
nível sublime de
sabedoria, está
apto a
confessar: "O
sofrimento e o
tempo, o vasto
tempo, foram
instrutores em
contentamento"
(Sófocles, in:
Édipo em
Colono).
Ninguém que não
sofreu, ou não
foi testado em
lugares
sombrios,
poderia escrever
essas linhas. Ou
talvez somente
alguém bastante
integrado ao Eu
Superior (Self),
porque, amiúde,
precisamos
aguardar décadas
e arriscar
nossos medos e
temores secretos
para agregar
nossas virtudes
mais preciosas.
Precisamos ser
provados,
esmagados e
ainda sobreviver
para contatar o
mistério
resguardado em
nosso íntimo e
que, devagar,
desestrutura o
"falso eu", a
personalidade
provisória.
No testemunho
final de Édipo
não há traços de
um otimismo
superficial, mas
apenas a
sabedoria de
alguém que
forjou sua
passagem também
no contexto do
Hades – os
lugares sombrios
aos quais, de
tempos em
tempos, todos
nós, no
transcurso da
existência,
estamos
sujeitos.
Penso em Édipo
como abismo e
ponte. Pois
apenas a pessoa
que tenha feito
projeções sobre
o mundo exterior
–
relacionamentos,
papéis sociais,
trabalho – e
sofrido sua
incompletude,
experimentado
sua própria
escuridão e
isolamento, que
cometeu erros e
se percebeu
impotente diante
das raras
certezas, pode
ousar olhar para
dentro de si
mesma em busca
da origem das
próprias
escolhas a fim
de
classificá-las.
E, com coragem,
perceber,
contidos nessas
escolhas, os
fatores causais
inconscientes
para, desse
modo, iniciar a
tarefa do
ampliar (para
iluminar) da
consciência.
Decidir-se,
então, por uma
nova vida – e
talvez, agora,
"uma vida
escolhida" – uma
vida "em
contentamento".
João estava indo
visitar o pai,
que estava
morrendo em São
Paulo. Ele
entrou no avião
temendo o
encontro, pois
seu pai o
abandonara ainda
pequeno e sempre
o ferira de
forma profunda,
negando-lhe,
durante o seu
crescimento,
afeto e apoio.
"Apenas me
despedir e
partir", ele
disse para si
mesmo, na
entrada do
hospital. Ele
procurou ser
disponível com
relação ao pai
e, ao mesmo
tempo, conter-se
para não ser
atacado e não
ferir por
atitude reativa.
Frente a frente
com o pai, João
pôde fazer mais
do que conter
sua desconfiança
e raiva,
deixando-o, pela
última vez, com
uma estranha
sensação de ter
conseguido
perdoar a
história ferida
que enlaçava a
ambos. Meses
depois, ele foi
invadido por
sonhos daquele
encontro final.
E ele se sentiu
bem por não ter
ficado na
defensiva e por
ter aprendido a
lidar com seu
distanciamento
emocional, por
ter compreendido
o que parecia
injusto e
doloroso, ainda
que não tenha
conseguido
chorar com o pai
e lhe dizer que
o amava.
Assim sendo, nós
nunca achamos
que fazemos a
coisa certa e
simplesmente
porque
esquecemos que
apenas de vez em
quando existe
clareza,
significado e
vitória.
Ainda assim,
estamos sempre
no caminho da
transformação e
temos, dia após
dia, a
oportunidade de
nos lançarmos de
novo ao trabalho
interior e para
nos melhorarmos,
por simples amor
à nossa jornada.
E sem
desconsiderar,
contudo, que a
sabedoria, quase
sempre, advém
dos locais
áridos da
alma... Nestes
locais podemos,
humildes e
despojados,
contemplar
nossos
pensamentos e
sentimentos,
pois "neles se
ergue um
poderoso
governante, um
sábio
desconhecido -
cujo nome é Eu"
(Nietzsche).