O Estado em vez
do Indivíduo –
Sob o Domínio do
Medo
Publicada pela
primeira vez em
1923, A História
do Medo no
Ocidente, de
Jean Delumeau,
deteve-se na
análise de um
período que se
estendia
basicamente
entre 1348 a
1800.
Pestes,
demônios,
heresias, os
padres, as
mulheres... O
livro é uma
espécie de
crônica daquilo
que habitava o
inconsciente do
mundo ocidental
no sentido de
provocar pavor.
Não se pode
afirmar dele que
seja um livro
político. Tão
pouco é possível
dizer que seja
uma obra capaz
de identificar
em algum regime
de poder
específico a
fonte original
do medo numa
determinada
época.
Do ponto de
vista médico, o
medo é uma
experiência que
se define física
e
psicologicamente.
Corresponde a um
estado em que,
antecipando-se a
um perigo real
ou imaginário, o
corpo prepara-se
para uma
resposta
conhecida como
“luta ou fuga”.
Emocionalmente,
esta sensação é
denominada
ansiedade e,
atendendo ao
princípio da
evolução,
representa uma
resposta
fundamental no
sentido da
preservação da
vida e da
espécie.
Muito pouco, até
onde eu sei, se
escreveu sob a
capacidade do
Estado ser, por
si mesmo, a
fonte do medo da
sociedade. É
claro que
existem obras a
respeito dos
crimes e
atrocidades
cometidos
durante guerras
e conflitos
sociais.
Períodos como o
do Terror, na
Revolução
Francesa, ou dos
regimes
totalitários
também foram
abordados, mas a
chamada sensação
de insegurança
existente nas
supostas
situações de
“estabilidade”
não costuma ser
tema de debate
frequente.
Neste pequeno
artigo vamos
falar sobre o
medo, lembrando
em primeiro
lugar que,
segundo
Rousseau, uma
sociedade se
organiza através
de um contrato
em que os
indivíduos abrem
mão de um
determinado tipo
de liberdade – a
natural – para
através do
consenso e da
cooperação
alcançarem
aquilo que se
chama liberdade
civil.
A liberdade
civil nos
permitiu,
através da vida
em comum, a
organização e o
trabalho
solidários,
capazes de
superar a “soma
de todos os
medos”. A
respeito desta
noção de
contrato, tão
antiga nos dias
de hoje, há um
fato
frequentemente
esquecido: sua
manutenção não é
espontânea. Em
outras palavras,
são necessários
aqueles
“aparelhos de
Estado”
mencionados por
Althusser (num
sentido
diferente
daquele que uso
aqui) para que
as liberdades
civis sejam
garantidas. A
ilusão de um
“Estado pronto”
e sem
“necessidade de
manutenção”, bem
como as
consequências de
acreditarmos
(como hoje em
dia) em tamanho
absurdo, é
abordada
magistralmente
por Ortega y
Gasset em A
Rebelião das
Massas.
Ordem e
segurança foram
há muito tempo
identificadas
por Sigmund
Freud como
produtos de uma
necessidade
básica de
repressão. É
desta repressão
que surge a
possibilidade da
cultura e do
progresso numa
sociedade. Não
há, pois, a
hipótese de uma
vida em
comunidade sem
que os instintos
mais primitivos
sejam contidos
em nome de algo
que se
convenciona
chamar de “bem
comum” (seja lá
o que isso
signifique num
lugar e época
específicos).
Desta noção, que
frequentemente
habita o
inconsciente de
cada um, que é
incapaz de ser
compartilhada,
ou mesmo
descrita,
supõe-se o
nascimento de
uma vontade – a
vontade geral –
que decorre do
reconhecimento
passivo do
sofrimento do
outro, da
identificação do
seu medo com o
dele, e da
possibilidade de
alívio e consolo
no diálogo e no
esforço
coletivos.
Mesmo percebendo
que não escrevi
nada de novo é
necessário
reconhecer que a
sociedade só é
viável quando
neste processo
de sofrimento
que apresentei
existe uma força
chamada
esperança.
Sustento também
(numa teoria
que, aí sim,
considero muito
minha) que a
faculdade de
filosofar não é
uma atividade
exatamente
civil. A
filosofia, a meu
ver, nasce antes
da própria
sociedade. Surge
quando,
abandonado a seu
próprio destino
e sem ninguém
para dividir a
angústia, o
homem percebe
que vai morrer.
A razão no
discurso
filosófico é,
portanto, uma
razão natural
que antecede ao
próprio conceito
de
civilização.
É da angústia
que decorre a
ânsia pela
comunicação, a
possibilidade do
diálogo e da
polêmica. Neste
sentido, o livro
de Delumeau é
pródigo em
mostrar que,
através da
história, para
cada fonte de
medo os homens
buscavam um
determinado
caminho de
salvação.
Reais ou
fictícias,
muitas vezes
mais danosas do
que o problema
enfrentado, as
soluções
variaram muito,
mas, no controle
das forças da
natureza, da ira
de Deus ou da
doença, tinham
em comum uma fé
que, em primeiro
lugar,
direcionava-se
ao seu
semelhante. Foi
esta fé que se
perdeu.
Acreditamos há
muito tempo que
hoje deve ser o
Estado o nosso
grande Irmão.
Achamos
inclusive que
foi da
emergência dele
(o Estado) e da
vida em
sociedade que
surgiu esta
condição de
“grande
família”.
Enganamo-nos
perigosamente,
quanto às
relações de
causa e efeito,
colocando no
chamado “Estado
de Bem-estar
Social” o
fundamento da
compaixão e da
solidariedade
que nos
permitiram
chegar até aqui.
É quando este
mesmo Estado,
seja qual for o
seu regime
político, começa
a mostrar a sua
incapacidade de
se comover, de
chorar, ou de
sofrer; quando
mostra que não
tem sexo nem
cor, ou quando
resta evidente
para um simples
indivíduo que
nascer, viver e
morrer não
se aplica a esta
entidade
invisível, que a
natureza vem
cobrar seu
preço. A
história então
parece mostrar
que um dia
acreditamos em
nossos
semelhantes, que
nos reunimos e
acreditamos em
Deus, que juntos
construímos o
Estado e que,
quando terminada
a obra,
esquecemos
primeiro Deus,
depois, o
próprio
indivíduo.
Se é verdade que
sozinhos vivemos
na angústia, na
sociedade atual
sofremos a
desgraça da
impossibilidade
de um pensamento
filosófico
original. Órfãos
da razão natural
e prisioneiros
das liberdades
civis, não temos
mais nenhuma
capacidade de
recolhimento,
condição a
priori da
verdadeira
filosofia.
Vive-se então
sem esperança ou
futuro numa
rotina atomizada,
num mundo em que
não acreditamos
em mais ninguém
e no qual,
ironicamente,
nunca foi tão
fácil se
comunicar,
enfrentar a
natureza ou as
doenças. A
verdade, que
antes se definia
como a
concordância da
razão com o seu
objeto, passa a
ser prisioneira
do tempo e da
opinião pública.
Nada do que já
passou pode ter
valor. Nada
daquilo que eu
percebo sozinho
pode ser
verdadeiro...
Vive-se isolado
e sob o domínio
da desconfiança
numa comunidade
virtual sem
ontem nem hoje,
na qual os dias
sucedem às
noites, num
pesadelo que é
um eterno
presente, num
limbo em que não
se percebe a
existência do
outro, mas em
que também não
se pode pensar
sozinho...
Vive-se sem a
possibilidade da
filosofia...
Vive-se sob o
domínio do
medo...
O autor é médico
em Porto Alegre,
RS.