Guimarães Rosa e
a
Doutrina
Espírita
Grandes vultos
da Humanidade,
em todos os
tempos, têm
manifestado sua
crença na
reencarnação das
almas, na vida
após a morte e
na lei de causa
e efeito.
Muitos séculos
antes de Allan
Kardec cunhar as
expressões
espírita e
espiritista,
portanto, em
recuadas eras
antes do advento
do Espiritismo,
profetas,
governantes,
filósofos,
homens do povo,
sábios e néscios
professavam a
crença na
transmigração
das almas, na
comunicação e na
manifestação dos
mortos com e aos
que se mantêm
jungidos ao
corpo carnal.
Principalmente
artistas,
cientistas,
poetas,
escritores,
pintores e
compositores
formam um grande
bloco daqueles
que foram
inspirados por
entidades do
mundo invisível
na produção de
suas obras e/ou
invenções. Seria
maçante se nos
abalançássemos a
referi-los aqui,
até porque a
lista seria
longa demais
para este espaço
tão curto.
Nesta
oportunidade
fazemos
referência a um
dos expoentes da
Literatura
Brasileira e
universal que
afirmaram terem
sido inspirados
pelo mundo
invisível em
suas produções
literárias.
Referimo-nos ao
escritor
mineiro, João
Guimarães Rosa,
nascido em
Cordisburgo,
pequena cidade
do norte de
Minas Gerais, em
27 de junho de
1908, e falecido
no Rio de
Janeiro a 19 de
novembro de
1967.
Formando-se em
Medicina, na
cidade de Belo
Horizonte, no
ano de 1930,
clinicou no
Interior mineiro
até 1932, quando
entrou na Força
Pública como
oficial-médico
do 9º Batalhão
de Infantaria de
Barbacena (MG).
Em 1934, por
concurso,
ingressou na
carreira
diplomática,
tendo, nessa
função, ocupado
postos em
diversas
representações
brasileiras
internacionais.
Em 1958, foi
nomeado Ministro
de Primeira
Classe, cargo
correspondente
ao de
Embaixador.
Posteriormente
foi designado
Chefe de Serviço
de Demarcação de
Fronteiras,
função que lhe
deu a
oportunidade de
viajar pelo
Brasil e
certamente de
conhecer os
tipos diversos
de personagens
que figuram em
suas produções
literárias.
Somente em 1946
entrou
definitivamente
para o círculo
de literatos,
com a publicação
de Sagarana,
seu primeiro
livro. Em 1963,
foi eleito para
a Academia
Brasileira de
Letras. Fato
curioso: temendo
que a emoção da
posse causasse
danos à sua
saúde, adiou-a
para 1967. A
morte, porém, o
espreitava.
Morreu de uma
parada cardíaca,
três dias depois
da sua
investidura como
acadêmico. Terá
ele tido a
premonição do
que viria lhe
acontecer, ao
temer os efeitos
emocionais da
solenidade que o
consagraria? Sua
obra é vasta, e
a maior
expressão dela,
reconhecida pela
crítica
especializada,
é, sem dúvida,
Grande
Sertão: Veredas
(1964/1965).
Em 26 de
novembro de
1967, através de
sua coluna
publicada no
jornal “O Estado
de Minas”,
Guimarães Rosa
declarou que
suas histórias
lhe eram
inspiradas “por
vias
supranormais”, e
que uma de suas
novelas foi
escrita baseada
num mesmo sonho
que teve em duas
noites
subsequentes.
Referindo-se ele
ao conto
Carro de Bois,
de sua autoria,
ele afirma:
“Aqui, houve
fenômeno
interessante, o
único caso,
neste livro, de
mediunismo puro.
Eu planejara
escrever um
conto de
carro-de-bois
com o carro, os
bois, o guia e o
carreiro.
Penosamente,
urdi o enredo,
e, um sábado,
fui dormir
contente,
disposto a pôr
em caderno, no
domingo, a
história (nº.
1). Mas, no
domingo, caiu-me
do ou no crânio,
prontinha,
espécie de
Minerva, outra
história (nº. 2)
– também com
carro, bois,
carreiro e guia
– totalmente
diferente da da
véspera. Não
hesitei:
escrevi-a, logo,
e me esqueci da
outra, da
anterior”.
A respeito do
seu romance
inacabado, que
teria como
título A
Fazendeira de
Velas, cuja
trama se passava
no final do
século XIX, num
sobrado de uma
antiga cidade
mineira e no
qual a solitária
personagem era
vivida pelo
próprio
romancista, ele
assim se
expressa:
“Mas foi
acontecendo que
a exposição se
aprofundasse,
triste, contra
meu entusiasmo.
A personagem,
ainda enferma,
falava de sua
doença grave.
Inconjurável,
quase cósmica,
ia-se essa
tristeza
passando para
mim, me
permeava.
Tirei-me de
sério medo.
Larguei essa
ficção de lado.
O que do livro
havia, e o que a
ele se referia,
trouxe-me em
gaveta. Mas as
coisas
impalpáveis
andavam já em
movimento. Daí a
meses, ano e
meio, adoeci, e
a doença
imitava, ponto
por ponto, a do
narrador! Então?
Más
coincidências
destas calam-se
com cuidado, em
claro não se
comentam. Outro
tempo após, tive
de ir, por
acaso, a uma
casa – onde a
sala seria, sem
toque ou
retoque, a do
romanceado
sobrado, que da
imaginação eu
tirara e
decorara,
visualizava
frequentando-a
por ofício. Sei
quais foram,
céus, meu choque
e susto. Tudo
isso é verdade.
Dobremos de
silêncio”.
Neste trecho,
parece
refletir-se um
caso de
premonição.
Quem teve a
oportunidade de
ler Grande
Sertão: Veredas
conhece bem as
diversas alusões
que a personagem
Riobaldo – misto
de vaqueiro e
jagunço e
narrador da
história em
primeira pessoa
– faz do seu
Compadre meu
Quelemém, para
ele, Riobaldo,
uma espécie de
guru espiritual
que tinha sempre
uma sábia
explicação sobre
as ocorrências
da vida humana,
como se
conhecesse a
eterna lei de
causa e efeito.
Tais passagens
revelam
claramente a
influência
espírita ou
espiritualista
exercida sobre
aquele escritor.
Vejamos, abaixo,
tais passagens.
“Compadre meu
Quelemém
descreve que o
que revela
efeito são os
baixos Espíritos
descarnados, de
terceira,
fuzuando nas
piores trevas e
com ânsias de se
travarem com os
viventes – dão
encosto.
Compadre meu
Quelemém é quem
muito me consola
– Quelemém de
Góis. Mas ele
tem de morar
longe daqui, na
Jijujã, Vereda
do Buriti
Pardo... Arres,
me deixe lá, que
– em
endemoninhamento
ou com encosto –
o senhor mesmo
há de ter
conhecido
diversos, homens
e mulheres. Pois
não sim? Por
mim. Tantos vi,
que aprendi.
Rincha-Mãe,
Sangue-d´Outro,
o Muitos-Beiços,
o Rasga-em-Baixo,
Faca-Fria, o
Fancho-Bode, um
Treciziano, o
Azinhavre... o
Hermógenes...
Deles, punhadão.
Se eu pudesse
esquecer tantos
nomes... Não sou
amansador de
cavalos! E,
mesmo, quem de
si de ser
jagunço se
entrete, já é
por alguma
competência
entrante do
demônio. Será
não? Será?”
“Compadre meu
Quelemém
reprovou minhas
incertezas. Que,
por certo,
noutra vida
revirada, os
meninos também
tinham sido os
mais malvados,
da massa e peça
do pai, demônios
do mesmo
caldeirão de
lugar. Senhor o
que acha? E o
velhinho
assassinado? –
eu sei que o
senhor vai
discutir. Pois,
também. Em ordem
que ele tinha um
pecado de crime,
no corpo, por
pagar. Se a
gente – conforme
compadre meu
Quelemém é quem
diz – se a gente
torna a encarnar
renovado, eu
cismo até que o
inimigo de morte
pode vir como
filho do
inimigo. Mire
veja: se me
digo, tem um
sujeito Pedro
Pindó vizinho
daqui mais seis
léguas, homem de
bem por tudo em
tudo, ele e a
mulher dele,
sempre sido
bons, de bem.
Eles têm um
filho duns dez
anos, chamado
Valtêi – nome
moderno, é o que
o povo daqui
agora apreceia,
o senhor sabe.
Pois essezinho,
essezim, desde
que algum
entendimento
alumiou, feito
mostrou o que é:
pedido madrasto,
azedo queimador,
gostoso de ruim
de dentro do
fundo das
espécies de sua
natureza. Em
qual que judia,
ao devagar, de
todo bicho ou
criaçãozinha
pequena que
pega; uma vez
encontrou uma
crioula
benta-bêbada
dormindo,
arranjou um caco
de garrafa,
lanhou em três
pontos a popa da
perna dela. O
que esse menino
bebeja vendo, é
sangrarem
galinha ou
esfaquear porco.
– “Eu gosto de
matar...” – uma
ocasião ele
pequenino me
disse. Abriu em
mim um susto;
porque:
passarinho que
se debruça – o
voo já está
pronto! Pois, o
senhor vigie: o
pai, Pedro Pindó,
modo de corrigir
isso, e a mãe,
dão nele, de
miséria e mastro
– botam o menino
sem comer,
amarram em
árvores no
terreiro, ele nu
nuelo, mesmo em
junho frio,
lavram o
corpinho dele na
peia e na taca,
depois limpam a
pele do sangue,
com cuia de
salmoura. A
gente sabe,
espia, fica
gasturado. O
menino já
rebaixou
magreza, os
olhos entrando,
carinha de
ossos,
encaveirada,
entisicou, o
tempo todo
tosse, tossura
da que puxa
secos peitos.
Arre, que agora
visível, o Pindó
e a mulher se
habituaram de
nele bater, de
pouquinho em
pouquim foram
criando nisso um
prazer feio de
diversão – como
regulam as sovas
em horas certas
confortáveis,
até chamam gente
para ver o
exemplo bom.
Acho que esse
menino não dura,
já está no
blimbilim, não
chega para a
quaresma que
vem... Uê-Uê,
então?! Não
sendo como
compadre meu
Quelemém quer,
que explicação é
que o senhor
dava? Aquele
menino tinha
sido homem.
Devia, em
balanço,
terríveis
perversidades.
Alma dele estava
no breu.
Mostrava. E,
agora, pagava.
Ah, mas,
acontece, quando
está chorando e
penado, ele
sofre igual
fosse um menino
bonzinho... Ave,
vi de tudo,
neste mundo! Já
vi até cavalo
com soluço... –
o que é a coisa
mais custosa que
há.”
“Eu gosto muito
de moral.
Raciocinar,
exortar os
outros para o
bom caminho,
aconselhar a
justo. Minha
mulher, que o
senhor sabe,
zela por mim:
muita reza. Ela
é uma abençoável.
Compadre meu
Quelemém sempre
diz que eu posso
aquietar meu
temer de
consciência, que
sendo bem
assistido,
terríveis bons
Espíritos me
protegem. Ipê!
Com gosto...
Como é de são
efeito, ajudo
com meu querer
acreditar. Mas
nem sempre
posso. O senhor
saiba: eu toda a
minha vida
pensei por mim,
forro, sou
nascido
diferente. Eu
sou é eu mesmo.
Diverjo de todo
mundo... Eu
quase que nada
não sei. Mas
desconfio de
muita coisa.”
“Bom, ia
falando:
questão, isso
que me sovaca...
Ah, formei
aquela pergunta,
para compadre
meu Quelemém.
Que me
respondeu: que,
por perto do
Céu, a gente se
alimpou tanto,
que todos os
feios passados
se exalaram de
não ser – feito
sem modez de
tempo de
criança, más
artes. Como a
gente não carece
de ter remorso
do que divulgou
no latejo de
seus pesadelos
de uma noite.
Assim que:
tosou-se,
floreou-se! Ahã.
Por isso dito, é
que a ida para o
Céu é demorada.
Eu confiro com
compadre meu
Quelemém, o
senhor sabe:
razão da crença
mesma que tem –
que, por todo
mal, que se faz,
um dia se
repaga, o exato.
Sujeito assim
madruga três
vezes, em antes
de querer
facilitar em
qualquer
minudência
repreensível...
Compadre meu
Quelemém nunca
fala vazio, não
subtrata. Só que
isto a ele não
vou expor. A
gente nunca deve
de declarar que
aceita inteiro o
alheio – essa é
que é a regra do
rei! O senhor...
Mire, veja: o
mais importante
e bonito, do
mundo, é isto:
que as pessoas
não estão sempre
iguais, ainda
não foram
terminadas – mas
que elas vão
sempre mudando.
Afinam ou
desafinam.”
“Às vezes
penso: seria o
caso de pessoas
de fé e posição
se reunirem, em
algum apropriado
lugar, no meio
dos gerais, para
se viver só em
altas rezas,
fortíssimas,
louvando a Deus
e pedindo glória
do perdão do
mundo. Todos
vinham
comparecendo, lá
se levantava
enorme igreja,
não havia mais
crimes, nem
ambição, e todo
sofrimento se
espraiava em
Deus, dado logo,
até à hora de
cada uma morte
cantar.
Raciocinei isso
com compadre meu
Quelemém, e ele
duvidou com a
cabeça: –
‘Riobaldo, a
colheita é
comum, mas o
capinar é
sozinho...’ –
ciente me
respondeu.”
Na singeleza das
histórias
contadas por
Riobaldo sobre
as peripécias de
sua sofrida e
aventureira
vida,
manifesta-se o
belo vigor
poético de
Guimarães Rosa,
desnudando o
homem e
mostrando suas
fraquezas e
limitações
morais em face
de suas
vicissitudes
durante sua
romagem terrena.
Bibliografia:
Livro Grande
Sertão: Veredas,
de Guimarães
Rosa (Editor
Victor Civita,
1983).