Calúnia
A. Ferreira
De todas as
potências do
corpo humano, a
língua será
talvez aquela
que mais nos
reclama a
vigilância.
Por ela, começa
a glória da
cultura nos
cinco
continentes,
mas, através
dela, igualmente
principiam todas
as guerras que
atormentam o
mundo.
Por ela,
irradia-se o mel
de nossa
ternura, mas
também, através
dela,
derrama-nos o
fel da cólera.
Muitas vezes é
fonte que
refresca e
muitas outras é
fogo que
consome.
Em muitas
ocasiões, é
ferramenta que
educa e, em
muitas
circunstâncias,
é lâmina
portadora da
destruição ou da
morte.
Sou uma das
vítimas da
língua, não
conforme
acontece na
existência
humana, em que
os caluniados
caem na Terra
para se erguerem
no Céu, em
sublime triunfo,
mas, segundo os
padrões da vida
real, em que os
caluniadores que
triunfaram entre
os homens
experimentam,
além do
sepulcro, a
extrema derrota
do espírito.
Determinam
nossos amigos
espirituais vos
ofereça minha
história.
Contá-la-ei,
sintetizando
tanto quanto
possível, para
não fatigar-vos
a atenção.
Há quase trinta
anos, nossa
família,
chefiada por
pequeno
comerciante, no
varejo do Rio,
era serena e
feliz.
Em casa, éramos
quatro pessoas.
Nossos pais,
Afrânio e o
servidor que vos
fala.
Entre meu irmão
e eu, contudo,
surgiam
antagonismos
irreconciliáveis.
Afrânio era a
bondade. Eu era
a maldade
oculta.
Meu irmão era a
brandura, eu era
a crueldade...
Nele aparecia a
luz da franqueza
aberta.
Escondia-se em
mim a mentira
torpe.
Afrânio era a
virtude, eu era
o vício
contumaz.
Na época em que
figuro o
princípio do meu
relato, meu
irmão desposara
Celina, uma
jovem reta e
generosa que lhe
aguardava o
primeiro
filhinho. Quanto
a mim, entregue
às libações da
irresponsabilidade,
encontrara na
jovem Marcela,
tão leviana
quanto eu mesmo,
uma companheira
ideal para o meu
clima de
aventura.
Entretanto, tão
logo a vi,
aguardando uma
criança, sob
minha
responsabilidade
direta,
abandonei-a,
desapiedado,
embora lhe
vigiasse os
menores
movimentos.
Foi assim que,
em nublada manhã
de junho,
observei um
automóvel a
procurar-lhe o
refúgio.
Coloquei-me de
atalaia,
reparando o
homem de fronte
descoberta que
lhe buscava a
moradia e
reconheci meu
próprio mano.
Surpreso e
estarrecido, dei
curso aos maus
sentimentos que
geraram, em
minhas ideias, a
infâmia que
passou a
dominar-me a
cabeça.
Encontrara,
enfim - concluí
malicioso -, a
brecha por onde
solapar-lhe a
reputação, e
afastei-me
apressado.
Joguei e
beberiquei,
voltando à noite
para o santuário
doméstico, onde
encontrei
aflitiva
ocorrência.
Afrânio, em se
ausentando de
nossa pequena
loja para
depositar num
banco a
expressiva
importância de
cinquenta contos
de réis - fruto
de nossas
economias de
dois anos, para
a realização do
nosso velho
plano de casa
própria -,
perdera a soma
aludida, sem
conseguir
justificar-se.
Ouvi-lhe as
alegações
inquietantes,
simulando
preocupação,
mas, dando
largas aos meus
projetos
delituosos,
arquitetei a
mentira que
deveria
arruiná-lo.
Chamei meu pai a
íntimo
entendimento e
envenenei-o
pelos ouvidos.
Com a minha
palavra fácil,
teci a calúnia
que serviu para
impor ao meu
irmão
irremediável
infortúnio,
contando a meu
pai que o vira,
em companhia de
mulher menos
respeitável,
perdendo toda a
nossa fortuna
numa casa de
jogo, e
acrescentei que
observara o
quadro
lamentável com
os meus próprios
olhos.
Minha mãe e
Celina, a
reduzida
distância, sem
que eu lhes
reparasse a
presença,
anotaram-me a
punhalada
verbal, e todos
os nossos, dando
crédito ao meu
verbo
delinquente,
passaram da
confiança ao
menosprezo,
dispensando ao
acusado o
tratamento cruel
que lhe
desmantelou a
existência.
Por seis dias
Afrânio,
desesperado,
procurou debalde
o dinheiro. E,
ao fim desse
tempo, incapaz
de resistir ao
escárnio de que
era vítima,
preferiu o
suicídio à
vergonha,
ingerindo o
veneno que lhe
roubou a vida
física.
A desgraça
penetrou-nos a
luta diária.
Todos, menos eu,
que me
regozijava com a
escura vingança,
renderam-se à
tensão e ao
desespero.
Inquirida
Marcela por meu
pai, viemos,
porém, a saber,
que Afrânio lhe
visitara o
abrigo por
solicitação dela
mesma, que se
achava em
extrema penúria.
Nosso espanto,
contudo, não
ficou aí,
porque, findos
três dias após
os funerais, um
chofer humilde
procurou-nos,
discreto, para
entregar uma
bolsa que trazia
os documentos de
Afrânio,
acompanhados
pelos cinquenta
contos, bolsa
essa que meu
irmão perdera
inadvertidamente
no carro que o
servira.
Minha cunhada,
num parto
prematuro,
faleceu em nossa
casa.
Minha mãe,
prostrada no
leito, não mais
se levantou e,
findos três
meses, após a
morte dela,
ralado por
infinito
desgosto, meu
pai
acompanhava-lhe
os passos ao
cemitério do
Caju.
Achava-me,
então, sozinho.
Tinha dinheiro e
busquei a vida
fácil, mas o
remorso passara
a residir em
minha
consciência,
atormentando-me
o coração.
Alcoolizava-me
para esquecer,
mas, entontecida
a cabeça,
passava a ver,
junto de mim, a
sombra de meus
pais e a sombra
de Celina,
perguntando-me,
agoniados:
– Caim, que
fizeste de teu
irmão?
A loucura que me
espreitava
dominou-me por
fim...
Conduzido ao
casarão da Praia
Vermelha, ali
gastei quanto
possuía para,
depois de um ano
de suplício
moral e
irremediável
tormento físico,
abandonar os
meus ossos
exaustos na
terra, em cujo
seio, debalde,
imploro
consolação,
porque o
sofrimento e a
vergonha
sitiaram-me a
vida,
destruindo-me a
paz.
Tenho amargado,
através de todos
os processos
imagináveis, as
consequências do
meu crime.
Tenho sido um
fantasma,
desprezado em
toda parte,
sorvendo o fel e
o fogo do
arrependimento
tardio.
Somente agora,
ouvindo as
lições do
Evangelho,
consegui acender
em minh'alma
leves fagulhas
de esperança...
E à maneira do
mendigo que bate
à porta do
reconforto e do
alívio, encontro
presentemente um
novo caminho
para a
reencarnação,
que, muito
breve, me
oferecerá a
bênção sagrada
do esquecimento.
Entretanto, não
sei quando
poderei
encontrar, de
novo, meu pai e
minha mãe, meu
irmão e minha
cunhada,
credores em meu
destino, para
resgatar, diante
deles, o debito
imenso que
contraí.
Por enquanto,
serei apenas
internado na
carne para
considerar os
problemas que eu
mesmo criei, em
prejuízo de
minha alma...
Brevemente,
voltarei ao
campo dos
homens, mas
reaparecerei,
entre eles, sem
a graça da
família a fim de
valorizar o
santuário
doméstico, e
renascerei mudo
para aprender a
falar.
Que Deus nos
abençoe.
Mensagem
transmitida em 8
de março de 1956
em Pedro
Leopoldo-MG, por
intermédio de
Francisco
Cândido Xavier,
e publicada no
livro Vozes
do Grande Além.