Saudade do
futuro
O futuro de um
destino
comum
luminoso, e
portanto fundado
no bem e no belo
(consequentemente
adequado à
Regeneração),
depende tanto de
iniciativas
coletivas como
do
reconhecimento
dos pais como
“agentes” da
sociedade
durante os
primeiros anos
de vida da
criança (de um
Espírito que
retorna à
experiência
corpórea).
Explico melhor à
medida que me
valho de um
trecho de uma
carta de um
paciente que
procura
descrever o peso
do passado para
clarificar o
(seu) presente
e, quiçá,
transformar de
maneira
harmoniosa o seu
futuro:
“Se eu
tivesse de
extrair de todas
situações
dolorosas uma
coisa única e
ainda dar-lhe um
nome só poderia
eleger medo.
Era medo, medo e
vergonha, o que
eu sentia em
todas as
situações de
minha infância
detestável: medo
da punição e
medo do que
fervilhava
dentro de mim e
que eu sempre
entendia como
proibido. Pois,
conforme me
diziam meus
pais, eu era um
menino feio, mau
e desatento; não
sabia fazer nada
certo”.
Aqui, e com
parcimônia, este
paciente
descreve os
sentimentos de
uma criança de
sete anos
oprimida pelo
medo e pela
culpa. E culpa
que carrega
desde a
infância, e que
revela quão
intensamente a
crueldade e o
descrédito dos
pais aplicados a
ele ameaçaram (e
ameaçam) a busca
deste indivíduo
por sua
verdadeira
identidade (ou
por seu
verdadeiro Self),
porquanto sua
riqueza interior
foi deformada no
prelúdio da sua
existência e por
aqueles que
tinham a tarefa
de zelar por
ela...
Antes de
qualquer coisa,
até porque sei
que estamos
filha (ou filho)
de pessoas
imperfeitas e
igualmente
estamos
imperfeitos, o
que procuro aqui
é sensibilizar o
leitor para o
sofrimento da
infância
(primeiro
setênio,
sobretudo) e, ao
mesmo tempo,
frisar a
importância da
mãe e do pai*
para a saúde
biopsicossocial
do adulto de
amanhã...
O mundo mudou?
Sim, sociedades
desenvolvidas
não admitem mais
os recursos da
“pedagogia
negra” como
método de
educação com os
quais nossos
pais e avós
cresceram. E
muitos de nós
(geração x,
geração y e
geração z)
também
fomos/somos
“adestrados”
pelos padrões
dessa pedagogia
e seguidos de
perto por uma
pessoa (mãe e/ou
pai) dominadora.
Felizmente, já
há alguns anos
tem-se atestado
que as
consequências
devastadoras da
traumatização da
infância
fatalmente
voltam para a
sociedade,
porque os
sentimentos de
raiva,
impotência, medo
e dor,
reprimidos pela
criança, mais
tarde podem ser
expressos por
meio de atos
destrutivos
contra outras
pessoas (uso de
violência/criminalidade,
atos terroristas
etc.) ou contra
si próprio
(dependência de
drogas,
alcoolismo,
doenças
psíquicas leves
ou graves,
suicídio etc.).
Embora muitos
ainda não se
sensibilizem com
a crueldade
sofrida na
infância e que
ficará
armazenada desde
o prelúdio da
vida como um
conhecimento
deformado,
mas que será
consciente ou
inconscientemente
retransmitido
(para a próxima
geração), testes
eletrônicos
efetuados em
mulheres
grávidas
revelaram que a
criança sente e
aprende desde o
início da vida
intrauterina
tanto o afeto
quanto a
crueldade.
Assim, ao
contrário da
família
patriarcal,
fundada nos
princípios do
temor e da
obediência,
estamos agora
numa fase de
experimentação
da família que
procura se
conduzir por uma
democracia
emocional, logo
exigente da
ideia de que
toda criança
necessita do
acompanhamento
de uma pessoa
empática e
não...
dominadora!
E isso, de outro
aspecto,
reivindica o
reconhecimento
(diário) de que
toda criança vem
ao mundo para
crescer,
desenvolver-se,
amar e expressar
suas
necessidades e
seus sentimentos
para sua
proteção. Nunca
para sofrer
abuso, ser
manipulada,
explorada ou
oprimida para
satisfazer as
necessidades dos
adultos. Nunca
para ter sua
vivacidade
perseguida ou
ameaçada.
E como a
tolerância da
criança para com
os pais não
conhece
fronteira, para
protegê-la e
garantir a ela o
direito a se
desenvolver,
brincar,
participar e
crescer,
precisamos
assumir: nem
todo ser humano
está apto ao
exercício da
maternidade/paternidade...
Até porque
“estar mãe”
(“estar pai”)
não é algo
“natural”, mas
algo aprendido,
exercido no
cotidiano, no
espaço da vida
privada e
pública.
Além disso,
amor,
generosidade,
respeito pela
criança e
tolerância,
infelizmente,
não são virtudes
alcançadas
através do mero
conhecimento
intelectual
sobre um
Estatuto que
protege os
direitos da
infância (ECA).
Em razão do
bem-estar da
criança, e para
o equilíbrio
socioemocional
do (futuro)
cidadão, defendo
uma postura
contra a qual
muitos se
insurgem: há
pessoas que não
poderiam ser
pais (não nesta
existência!).
Por razões
diversas –
econômicas,
ideológicas,
sociais etc. –
conheço casais
que se negam a
ter filhos. Por
egoísmo? Sim,
mas assumido.
Não é mais
honesto? Não é
mais sincero do
que o egoísmo
dissimulado,
típico de um
casal que tem
filhos, mas
delega ou
terceiriza o
cuidado e o
afeto? Ou que dá
ao filho um
“amor
equivocado”,
sujeitando a
criança a várias
formas de
negligência?
Sejamos
autênticos...
Ter uma filha
(ou um
filho/filhos) é,
além de amar,
assumir como
pode ser difícil
aceitar o fato
de que a criança
não (re)nasce
para
corresponder a
nossas
expectativas.
Ao reverso...
Quando estamos
“pais” nos cabe
a tarefa
temporária, mas
essencial, de
cuidar para que
o talento no
indivíduo
depositado pela
Providência
possa um dia
florescer...
Somos também
(co)responsáveis
pelo êxito do
programa
reencarnatório
de nossos
filhos. Não
somos?
Falamos nos
meios
religiosos,
especialmente,
sobre a piedade
filial, sobre a
importância de
honrar pai e mãe
(mandamento),
mas esquecemos
de que enquanto
não trabalharmos
de forma
consciente o
desprezo sofrido
em nossa própria
infância vamos
continuar a
transmiti-lo e
um futuro comum
luminoso
continuará em
risco.
Infelizmente, e
de forma muito
constante ainda,
para muitos a
pergunta sobre a
própria infância
pode revelar
traumas e
fracassos e se a
“pergunta não
for um floreado
retórico e se
aquele que a
formula tiver
paciência para
ouvir com
atenção, ele
necessariamente
tomará
conhecimento de
que amamos com
horror e
sentimos ódio
junto com um
amor
inexplicável.
Isso nos reserva
as maiores dores
e dificuldades”.
(Erika Burkart)
Mas, àqueles que
cativam a tarefa
de cuidar de uma
criança, que
sejam eles
fomentadores do
amor à vida e
cientes de que o
afeto
transferido aos
inocentes pode
colaborar com a
construção de um
mundo solidário
e pacífico para
as próximas
gerações...
Saudade do
futuro!
Nota:
Quando digo “mãe
e pai” me ocupo
da pessoa de
referência mais
importante para
a criança em
seus primeiros
anos de vida;
não precisa ser,
portanto, a mãe
biológica,
tampouco ser
mulher.