Síndrome de
“Chinelização”
A chinelização é
uma síndrome
(conjunto de
sinais e
sintomas) que
vem afetando a
população
brasileira há
décadas, mas que
se agravou a
partir de 2003,
e hoje aflige
todo o
território
nacional. Os
primeiros casos
em Porto Alegre
ocorreram em
1988. O paciente
“chinelizado”
não tem sexo nem
idade
específicos.
Também já foi
estabelecido que
a doença afeta
todas as classes
sociais. Por
algum tipo de
lesão
neurológica
ainda
desconhecida, a
pessoa afirma
que Ivete
Sangalo tem o
mesmo valor que
Mozart, declara
sem
constrangimento
que Paulo Coelho
é tão bom quanto
Machado de
Assis, pensa que
o jazz é “uma
música”
inventada para
as comédias do
Woody Allen, e
não vê a
diferença entre
um filme de
Glauber Rocha e
um capítulo de
“Avenida
Brasil”.
Os chinelizados
podem ser vistos
com frequência
no verão vagando
pelas praias do
Leblon, do
Guarujá, ou aqui
em Atlântida no
Rio Grande do
Sul. Eles são
capazes de
comprar uma
Mercedes 380, ou
um BMW, e mandar
rebaixar o carro
no qual instalam
sempre luz neon
e rodas tala
larga. A próxima
etapa é colocar
um CD do Michel
Teló ou da
Valesca Popozuda
tocando num
volume tão alto
que, quando o
carro está em
Torres (RS),
pode-se escutar
o som em
Florianópolis
(SC).
Muitas vezes o
paciente
chinelizado não
é uma má pessoa
e se define como
alguém
preocupado com
aquecimento
global, com as
focas do Alaska
e os ciclistas,
além de fazer
uma defesa
radical do
aborto e do
casamento gay.
Em outros
momentos ele
apresenta
opiniões
altamente
elaboradas que
costuma proferir
depois de
almoçar e sempre
com um palito no
canto da boca.
As afirmações
mais complexas
são: “brigar por
causa de mulher
é besteira”,
“religião cada
um tem a sua”, e
“política não se
discute”. Na
frente de um
aparelho de
televisão, o
doente consegue
passar horas
assistindo a um
treino de
fórmula 1 ou à
transmissão de
um baile de
carnaval de
salão, após
comer quatro
pratos de
estrogonofe de
galinha com
batata palha e
tomar meio
garrafão de
vinho tinto
suave fabricado
no Brasil.
Quando junta
algum dinheiro,
o chinelizado
viaja
invariavelmente
para Miami ou
Nova York (coisa
que eu também
gostaria de
fazer... rss...
rss), mas se
enfurece ao
extremo quando
lhe perguntam
por que não
visitou Londres,
Roma ou Paris.
Nos casos em que
a pessoa é na
verdade mau
caráter, o
diagnóstico fica
mais complexo
porque neste
estágio ela
elabora
doutrinas
próprias sobre
as grandes
questões
brasileiras. Em
relação à saúde,
por exemplo, ela
sustenta que o
SUS é um grande
avanço, já que
“qualquer tipo
de atendimento é
melhor que
nenhum” (mas
finge esquecer
que para si
mesma ela não
quer qualquer
atendimento, e
sim o melhor de
todos).
A etapa mais
grave da doença
começa quando o
chinelizado
decide falar
sobre Filosofia
e História. Aí é
que o quadro
piora, porque
afirma que
Foucault e
Derrida têm o
mesmo valor que
Sócrates e
Platão, ou que a
Escola de
Frankfurt é tão
importante
quanto a de
Atenas.
Questionado
sobre a
existência ou
não de Deus, a
pessoa afetada
(com vergonha de
ser considerada
uma fanática)
adora dizer que
acredita em
“alguma coisa
superior” ou em
certo tipo de
“energia além da
vida”.
Muitas vezes os
chinelizados se
reúnem em grupos
e fazem questão
de se apresentar
como “minorias”.
De uma maneira
geral acreditam
que “todo Estado
brasileiro bem
como a
sociedade” têm
uma “dívida
histórica” com
eles. No período
de carnaval, os
pacientes
portadores da
doença afirmam
que o carnaval
“é uma festa que
faz parte da
riqueza cultural
do Brasil” e que
é uma
“oportunidade
para as pessoas
assumirem a sua
sexualidade sem
medo de SER (o
erro de
concordância é
deles; não meu)
FELIZ”.
Até hoje não se
descobriu nenhum
tratamento para
a doença.
Recomenda-se, de
forma
preventiva,
procurar um bom
fonoaudiólogo
para não falar
com a língua
presa, evitar
beber coca cola
com cachaça, e
frequentar
churrascarias
com espeto
corrido a 25
reais. Fazer
assinatura de
qualquer empresa
de TV a cabo
também pode
ajudar, e
aconselha-se
assistir a
documentários
até mesmo sobre
monstros, com o
objetivo de
evitar contato
com a Rede Globo
aos domingos.
De uma maneira
geral, a
Síndrome da
Chinelização tem
um prognóstico
muito ruim e nos
casos mais
graves os
pacientes
terminam
entrando para a
política ou
tornando-se
professores da
Universidade
Pública
Brasileira.
O único caso do
qual tenho
notícia de cura
parcial foi o
meu. Consegui
melhorar um
pouco através do
recolhimento, da
oração, do
estudo
constante, e da
lembrança
deixada por um
certo cidadão
que morreu cerca
de 2.000 anos
atrás, o qual
dizia para “não
fazer para o
outro aquilo que
não quero para
mim mesmo” –
advertência
severa para todo
aquele que
esquece que fora
da caridade não
há salvação.
O autor é médico
em Porto Alegre,
RS.