O café do João
João é um
pedinte
conhecido de
todos no
quarteirão da
Tijuca onde
moro. De há
anos, moradores
recentes ou
antigos, no seu
vaivém do
cotidiano,
observam os seus
movimentos
aparentemente
sem nexo. Vai
lá, vem cá... De
repente, quando
a caminho do
trabalho, lá vem
ele, apressado,
pela calçada da
rua, em sentido
contrário, como
se atento a
algum urgente
compromisso...
Noutra ocasião,
lá vai ele, na
mesma pressa, em
outra rua. Ou
então damos com
ele sentado,
encolhido nalgum
nicho de
calçada, tão
sujo e
maltratado
fisicamente
quanto os
buracos dos
calçamentos do
Rio de Janeiro,
vestindo
molambos ou
roupas surradas.
Estes dias
reparei que
usava roupas
velhas de frio.
Tão certo quanto
o nascer do sol,
tem quem o
auxilie desta ou
daquela forma.
Ou de há muito
já teria nos
deixado. O fato
é que a presença
do João já é
familiar neste
trecho do
bairro, e,
quando por uma
eventualidade
qualquer, ele
desaparece
durante um
tempo, há sempre
quem pergunte
qual o seu
paradeiro. De um
jeito esquisito,
o João faz
falta. Então –
muitas vezes me
pergunto – por
qual triste
motivo impera a
impotência – ou
a negligência –
de quem poderia
fazer a
diferença para a
indigência
daquele senhor?
Já teria sido
recolhido em
abrigos da
prefeitura, como
acontece a
tantos outros
que depois
preferem a
liberdade cheia
de privações das
ruas povoadas da
cidade? Qual
teria sido a sua
história? Como
aconteceu de ter
chegado a tal
estado de
carência de
tudo?!
Como acontece a
outros, quando
aparece a
oportunidade,
contribuo de
maneira diminuta
e, para mim,
frustrante, em
favor de algum
aconchego ao
João. Aconteceu
semana passada.
Ia apressada
para o serviço
diário quando,
cruzando a
padaria da
esquina, um
sussurro, quase
um cochicho,
chamou-me a
atenção. Era o
João, para a
minha surpresa –
o que me fez
estacar logo a
passada rápida.
Pedia um café.
Deveria ser por
volta de nove e
meia da manhã.
Logicamente,
indaguei dele a
pergunta sem
nexo, se queria
também o pão com
manteiga,
completando o
que se chama de
"média".
E obviamente ele
disse sim, que
queria. Então,
entrei decidida
na padaria e
deixei pago o
lanche com o
pessoal para
quem também o
João já é velho
conhecido,
sempre
experimentando o
bem-estar
insuficiente de
saber que o
reconforto
oferecido
naquele instante
era muito pouco
para o restante
das suas
necessidades.
Não obstante,
ocorre-me que a
soma dos
auxílios
insuficientes de
cada um talvez
componha uma
colcha de
retalhos que
supra, pelo
menos, as suas
mais rudes
carências. O
casaco e calça
para o frio, o
cobertor de um,
a média da manhã
de outro; o
almoço, quem
sabe, de um
terceiro! Por
que será, porém,
que esta certeza
não contribua
para que, na
situação, eu me
sinta melhor?!
É porque todos
temos alguma
coisa do João!
Talvez que,
quase
diariamente,
precisamos de
algum tipo de
média matutina,
de agasalho,
senão para o
nosso corpo,
muito mais para
os nossos
espíritos! E
sabemos o tanto
que é comum não
obtê-los!
Ocasionalmente,
a necessidade do
nosso "café com
pão" surge na
forma da
carência de um
consolo em
instantes de
aborrecimentos.
Ontem mesmo me
aconteceu. E,
graças a Deus,
recebi minha
média, em
princípio dos
mentores do
invisível que me
assistem sempre,
e, com o correr
das horas,
daquelas
mensagens
aparentemente
inocentes de
amigos e
parentes, que
fazem o papel de
agentes da
Providência na
hora certa,
mesmo sem ter
disso a mínima
noção! Uma
mensagem de
e-mail, um
telefonema...
A própria
passagem das
horas, em muitos
casos, é o
reconforto
necessário que
nunca nos falta,
porque
invariavelmente
nos prova que o
tempo sana tudo,
e que somos
pessoas
diferentes entre
a hora da
contrariedade e
o momento no
qual já
recuperamos a
serenidade para
agir com maior
sabedoria diante
dos impasses da
rotina.
O que acontece,
enfim, é que
todos somos uma
versão do João!
E, importante
enfatizar,
nenhum de nós
apreciaria,
durante as
nossas
necessidades
maiores ou
menores de corpo
ou de espírito,
que não nos
estendessem a
mão amiga
alegando-se que
isto é "entregar
o peixe de
graça, e não se
ensinar a
pescar"!
Não se padroniza
assim um tal
contexto, porque
viver em
sociedade é a
prática
inquestionável
da máxima que
diz "ninguém é
uma ilha"! Cada
caso pede a
consideração das
condições do
indivíduo: ou
para
oferecer-lhe as
ferramentas da
obtenção da
própria
dignidade,
"ensinando-o a
pescar", ou, as
que o estado de
carência de tudo
se faz tão
brutal que o
exigível é o
auxílio direto e
estrito! Já
dizia o
personagem de um
filme famoso: "quem
morre de fome
não pede –
toma"!
Nos momentos de
frustração e
desilusões, em
horas de extrema
fragilidade e
vulnerabilidade
física ou
emocional,
somos, todos,
uma versão do
João, dentro ou
fora das nossas
casas! Quando
adoentados,
incapacitados de
mobilizar
cuidados a nós
mesmos, há a
necessidade do
parente abnegado
e carinhoso, do
médico, dos
serviços do
farmacêutico.
Quando
deprimidos pelos
efeitos de uma
injustiça
sofrida, a média
que se requer é
a do reconforto
da palavra
amiga,
inspiradora da
necessidade de
esquecimento e
da manutenção da
dignidade, para
entregar o
ofensor ao
ajuste divino
que a todos
orienta no rumo
do acerto. Se
injustiçamos, de
outro modo nossa
carência é a do
perdão do alvo
de nossas
precipitações, e
de uma medida de
coragem que nos
mobilize a
reparar o mal
feito junto a
quem foi
prejudicado!
Nessa
conjuntura,
comum que não
nos
conscientizemos
desta
necessidade
senão sob o
aconselhamento
isento de um
amigo de fato,
que nos ame
desinteressadamente.
Também na
solidão
desalentada,
pede-se a
média da
companhia
amigável. No
problema
insolúvel, a
sugestão
inspirada do
familiar
oportuno. Na
tristeza, a
inspiração
amorosa dos
amigos da
invisibilidade.
E em todo o
conjunto das
nossas
carências, o
socorro
incessante e
providencial de
Deus, renovando,
incansável, o
tempo e os
nossos dias!
Na nossa parcela
de indigência
espiritual,
assim, não
obtemos a
solução integral
para tudo, mas,
com a
contribuição
preciosa da "média"
oferecida por
cada um, surgem
pequenos
lenitivos que
nos encorajam a
seguir adiante!
Que a média
paga ao João
naquela manhã o
tenha ajudado a
ir ainda mais
adiante. Porque,
com certeza, um
dia, ele
alcançará o
porto seguro do
fim de todas as
suas agruras,
diante da
indiferença
ainda cruel de
um mundo que,
sem se
reconhecer
também indigente
da boa vontade
da misericórdia
de Deus, ignora
o seu próximo,
crendo-se
detentor de
tudo, quando, em
verdade, não é
senão usuário de
um empréstimo
temporário de
dons
pertencentes, em
verdade, ao
patrimônio comum
da eternidade!