Caridade e beneficência
“(...) Mas quando
fizerdes um festim,
convidai para ele os
pobres, os estropiados,
os coxos e os cegos; e
estareis felizes porque
não terão meios para
vo-lo retribuir; porque
isso vos será retribuído
na ressurreição dos
justos.” (Lucas-XIV,
12-15)
Charles-François
“Bem-Vindo” Myriel,
Bispo de Digne, pequena
localidade da antiga
França, é um dos
personagens do majestoso
livro Os Miseráveis,
de Victor Hugo. Em 1815
era ele um venerável
ancião de setenta e
cinco anos. Havia sido
nomeado bispo por
interferência direta de
Napoleão – antes fora
pároco da igreja de
Brignolles. A curiosa
circunstância da sua
nomeação deveu-se a um
encontro casual de
Myriel com o Imperador,
em Paris, em 1804,
quando aguardava uma
audiência com o Cardeal
Fesch, tio de Napoleão.
Na antessala, vendo que
o Bispo o olhava
curiosamente, perguntou
Napoleão a um de seus
oficiais:
–
Quem é aquele pobre
velho que tanto olha
para mim?
Ouvindo a interrogação,
o velho padre respondeu
diretamente ao
Imperador:
–
Senhor, Vossa Majestade
olha para um pobre
velho; eu olho para um
grande homem. Ambos
podemos aproveitar.
Decorridos poucos dias
desse rápido diálogo,
Myriel foi nomeado Bispo
de Digne, onde, tempos
depois, passou a ser
conhecido simplesmente
por Monsenhor Bem-Vindo,
em razão das suas
atitudes de
desprendimento das
coisas materiais e da
dedicação ao amparo dos
mais pobres e desvalidos
naqueles tempos de
graves dificuldades
políticas e econômicas
que a França
atravessava.
Por aquela época havia
em Digne um acanhado e
miserável hospital de um
único andar, enquanto o
paço episcopal era uma
bela construção de pedra
de cantaria em que tudo
respirava grandeza. Três
dias depois de sua posse
Monsenhor Bem-Vindo
visitava o hospital que,
naquele momento,
abrigava vinte e seis
doentes. Em conversa com
o diretor, que o pôs a
par das grandes
dificuldades daquele
nosocômio, assim lhe
falou:
–
Aqui há engano. Os
senhores são vinte e
seis pessoas, em cinco
ou seis quartos,
enquanto nós na casa
paroquial somos três
ocupando um lugar que
chega para sessenta.
No dia seguinte mudou-se
com sua irmã e uma
criada que com ele
moravam, para o
hospital,
transformando-o na casa
paroquial, e transferiu
o hospital para o
palácio do Bispo.
Deva-se dizer que aquele
Bispo nada recebia de
sua família que fora
arruinada pela
revolução. Sua irmã,
Baptistine, recebia uma
pensão vitalícia de
quinhentos francos. Era
desse salário que
basicamente viviam os
três habitantes da casa
paroquial.
Como bispo, Myriel
recebia do Estado uma
dotação de quinze mil
francos. No mesmo dia em
que passou a residir na
casa que antes fora o
hospital, fez uma lista
que denominou <Rol de
despesas da minha casa>,
na qual distribuía toda
a verba a que tinha
direito, entre o
seminário, as
congregações
missionárias, os
lazaristas, os
estabelecimentos
religiosos, a associação
para socorro dos presos
e da melhora das
condições das prisões,
entre outras
instituições, reservando
apenas mil libras para o
que chamou de "minhas
despesas pessoais".
Estas disposições
prevaleceram inalteradas
até o fim do seu
episcopado.
A Câmara de Digne
assinalou a Monsenhor
Bem-Vindo um subsídio
anual de três mil
francos destinado a
"despesas de carruagem e
gastos de jornada nas
suas visitas pastorais".
Logo que recebeu tal
determinação, escreveu
uma relação que entregou
a sua irmã e
administradora da casa,
com a seguinte
determinação:
–
Dinheiro para carruagem
e visitas ao bispado
–
Para dar caldo de carne
aos doentes do
hospital... 1.500 libras
Para a Sociedade de
Caridade Maternal de Aix...
250 libras
Para a Sociedade de
Caridade Maternal de
Draguignan... 250 libras
Para os enjeitados...
500 libras
Para os órfãos... 500
libras
Total... 3.000 libras.
Os serviços prestados
por ele aos mais
abastados, tais como
dispensa de proclamas,
casamentos, benzeduras
de igrejas etc., o Bispo
cobrava-lhes severamente
para facilmente
distribuir tais
rendimentos com os
pobres. Como dava tudo o
que recebia aos
necessitados e
indigentes, estava
sempre desprovido de
dinheiro. No dizer de
Victor Hugo “era como um
pouco de orvalho em
terra seca”. Bondoso e
afável, nos seus
sermões, tal qual Jesus
Cristo, ia sempre buscar
os exemplos que
aconselhava serem
seguidos pelo seu
rebanho, nos bons
procedimentos dos
próprios habitantes da
sua diocese.
Conversava alegremente
com todos. Sua criada,
Magloire, chamava-o de
"Vossa Grandeza". Certa
vez, quando não
alcançava um livro que
buscava em sua
biblioteca, a ela
dirigiu-se nestes
termos:
–
Sra. Magloire, traga-me
uma cadeira que “a minha
grandeza” não chega
àquela prateleira!
Como não se achava no
direito de julgar ou
condenar quem quer que
fosse, limitava-se a
dizer a quem o
consultava sobre os
procedimentos ou ações
infelizes cometidas por
alguém:
–
Examinemos o caminho que
seguiu a culpa.
Mesmo se apelidando, com
o seu constante bom
humor, de um
“ex-pecador”, não era
rigoroso no que diz
respeito às virtudes que
os homens devem
cultivar. Eis em que se
constituía a sua
doutrina:
“O homem tem sobre si a
carne, que é a eterna
carga que arrasta, a
constante tentação a que
cede”.
“O seu dever é vigiá-la,
contê-la, reprimi-la e
só lhe obedecer em caso
de extrema necessidade.
Essa obediência pode ser
um pecado, mas o pecado
assim cometido é venial.
É cair, mas cair de
joelhos, sendo por isso
queda que pode acabar em
prece.”
“Ser santo é exceção; a
regra é ser justo.
Errem, caiam em
tentação, pequem, mas
sejam justos.”
“Pecar o menos possível
é obrigação de todo
homem; não pecar
absolutamente é aspirar
a anjo. Tudo o que é
terrestre está sujeito
ao pecado. O pecado é
uma gravitação.”
Tolerava indulgentemente
as mulheres e as pessoas
pobres, sobre quem
naqueles recuados tempos
sempre recaíam as
condenações e as culpas
de todos os males que
afligiam a sociedade de
então, contaminada pelo
orgulho e pelo
preconceito. Sobre isso,
assim dizia: “As
culpas das mulheres, dos
filhos, dos criados, dos
fracos, dos indigentes e
dos ignorantes são
culpas dos maridos, dos
pais, dos patrões, dos
fortes, dos ricos e dos
sábios!”.
Perdoava
incondicionalmente as
ofensas, como por
exemplo, no caso do
roubo de uma cesta cheia
de prataria, subtraída
da casa paroquial por
Jean Valjean, personagem
central de Os
Miseráveis, e a quem
havia acolhido em sua
casa quando aquele pobre
homem vagava pelas ruas
de Digne, desamparado,
sem destino, com fome e
com frio, após amargar
longos dezenove anos
numa prisão de Toulon,
como sentenciado das
galés, e da qual fora
libertado poucos dias
antes. Sua condenação
inicial se dera por
haver quebrado uma
vidraça e furtado um pão
de uma padaria para
mitigar a fome da
família. As outras
sentenças posteriores
lhe foram impostas por
seguidas tentativas de
fuga.
Na noite em que foi
acolhido pelo Bispo,
Jean Valjean contou-lhe
a sua triste trajetória,
dizendo-lhe ao final da
narração:
–
Senhor abade, o senhor é
muito bom e por isso não
me despreza. Recolhe-me
em sua casa. Manda
acender os seus
castiçais ricos por meu
respeito. Porém eu já
lhe disse de onde venho
e lhe contei a minha
desgraça.
O Bispo respondeu-lhe:
–
Podia ter deixado de me
dizer quem era. Esta
casa não é minha, é de
Jesus Cristo. Aquela
porta não pergunta a
quem entra se tem nome,
mas se tem alguma
amargura. O senhor
sofre; tem fome e sede;
bem-vindo seja! Não me
agradeça por isso, não
diga que o recebo em
minha casa. O dono desta
casa não sou eu, é todo
aquele que carece de
asilo. Tudo quando há
nesta casa lhe pertence.
Que precisão tenho eu de
saber o seu nome? Quanto
mais, antes de me dizer,
eu já sabia o nome que
lhe havia de dar.
–
O senhor já sabia como
eu me chamo?
– Indagou Valjean.
–
Sabia – respondeu
Bem-Vindo. – chama-se
meu irmão!
Naquela mesma noite Jean
Valjean sairia
furtivamente levando
toda a prataria da casa
do sacerdote. Descoberto
e preso confessou o
roubo. A prisão
significava para ele uma
nova condenação e o
retorno às galés, haja
vista que se achava sob
liberdade condicional. A
polícia o trouxe à
presença do Bispo.
Quando viu a cena, o
preso amarrado e
escoltado, Bem-Vindo –
que já sabia do que se
tratava, pois o roubo
havia sido descoberto
logo cedo pela criada
Magloire – dirigiu-se
assim a Jean Valjean:
–
Ah! Então voltou? Estimo
muito vê-lo. Mas agora
me lembro: eu também lhe
dei os castiçais, que
são de prata, como o
resto, e com que pode
obter duzentos francos
ou mais. Por que não o
levou juntamente com os
talheres?
Entregou os castiçais a
Valjean, que nada
entendera, dispensou os
policiais e em seguida
segredou-lhe:
–
Não se esqueça, não se
esqueça nunca de que me
prometeu empregar este
dinheiro em se tornar um
homem honesto.
Valjean ficou sem saber
o que dizer, mesmo
porque não prometera
nada.
E o Bispo arrematou:
–
Jean Valjean, meu irmão,
lembre-se de que já não
pertence ao Mal, mas sim
ao Bem. É a sua alma que
acabo de comprar-lhe;
furto-a aos maus
pensamentos e ao
espírito de perdição
para a dar a Deus.
Jean Valjean nunca mais
se desfaria dos
castiçais nem esqueceria
aqueles conselhos. O
resto da história, o
leitor que ainda não a
conhece saberá lendo
Os Miseráveis.
Charles-François
“Bem-Vindo” Myriel foi
sem dúvida o modelo de
um santo. Seus exemplos
de bondade e suas lições
espelhadas nos
ensinamentos de Jesus
não se resumem nestes
trechos acima citados.
Existem muitos outros no
capítulo que Victor Hugo
lhe dedica. Praticou a
Caridade e a
Beneficência puras na
sua plenitude, conforme
nos é ensinado através
das comunicações
mediúnicas feitas pelos
Benfeitores Espirituais
e constantes no capítulo
XIII de O
Evangelho segundo o
Espiritismo.
Bibliografia
Os Miseráveis, de Victor
Hugo.
O Evangelho segundo o
Espiritismo, de Allan
Kardec.