A dramaturgia
portuguesa da
era de Cabral,
no texto teatral
do “Auto da
Barca do
Inferno” de Gil
Vicente, já
indicava ao
Sapateiro que
pergunta ao
diabo no momento
pós-morte: “Quantas
missas eu ouvi,
não non hão elas
de prestar?”,
eis que recebe
como resposta: “Ouvir
missa, então
roubar, é
caminho
per'aqui”.
Sempre perturbou
a humanidade, em
seus conceitos
mais
naturalistas de
justiça, a ideia
de que apenas
algum povo nesse
“mundão de meu
Deus” possuísse
a chave da
salvação e que o
bem proceder não
lhe adiantasse
de nada. Porém,
a religião
sempre
extrapolou os
papeis de
ligação com a
divindade,
servindo de
instrumento de
poder e de
dominação.
Entre as lutas
pelo poder
terreno e as
disputas
econômicas,
serviu a
religião como
elemento
ideológico que
motivou (e
motiva) guerras,
dissensões,
atentados,
opressões e toda
ordem de ações
contra a
humanidade, pela
promessa da
salvação e pelo
medo da
perdição.
Discursos e
jogos de
palavras,
doutrinas e
hábitos que
formam a
identidade de
grupos,
prometendo a
seus membros o
paraíso diante
das agruras da
vida terrestre,
tornando a todos
obedientes e
mantendo a razão
distante,
isolada lá nos
rincões da
Polinésia.
Jesus, nesse
sentido, foi
revolucionário.
Ele colocou a
chave da vida em
amar ao próximo
como a si mesmo.
Kardec,
estudando as
palavras do
Mestre, indicou
de forma ampla
que fora da
caridade não há
salvação.
Fórmulas que se
aplicam a
qualquer tempo,
a qualquer local
e a qualquer
pessoa,
independente de
crenças, de
dogmas, de
rituais ou de
filiação a
grupos. Amar,
simplesmente,
como se isso
fosse de alguma
forma simples. E
a religião, esta
tem nesse
contexto um
relevante papel
de agregar valor
à nossa
capacidade de
amar, para que
sejamos
reconhecidos
como discípulos
do mestre por
essa
característica.
O que fugir
disso é
acessório, longe
do essencial que
é invisível aos
olhos.
Como assevera
também Kardec n’
O Evangelho
segundo o
Espiritismo, a
ideia do “Fora
da caridade” se
assenta num
princípio
universal e abre
a todos os
filhos de Deus
acesso à suprema
felicidade.
Reflete assim a
visão de um Deus
justo, bom, pai
de todos, sem
predileções ou
povos eleitos.
Podemos
acrescentar que
a visão de
evolução e de
vida após a
morte é uma
decorrência da
nossa visão de
Deus, e o
Espiritismo, de
forma coerente,
assim se
posiciona.
Deuses
vingativos, com
preferências,
defensores de
determinados
grupos, em um
arremedo de
antropomorfismo,
decantam em
teologias
salvacionistas e
segregacionistas,
enxergando
irmãos e
não-irmãos.
Assim, como
espíritas temos
nessa singela
peça de humor
disposta na
internet uma
oportunidade
ímpar de
reflexão, sobre
o que trazemos
na nossa
consciência em
relação ao que
realmente
importa na vida
ou se
descansamos em
berço esplêndido
na prática
religiosa morna,
que iria nos
garantir o
acesso às
benesses do
paraíso.
Esquecemos, por
vezes, que o
Espiritismo nos
coloca que a
vida é trabalho
em ambos os
planos da vida e
que a criatura
constrói seu
processo de
evolução, no
tempo e ritmo
definidos pelo
seu esforço e
pela sua
vontade. No
Espiritismo, há
céu para todos,
mas há também
inferno, quando
alojamos em nós
os caminhos para
esses estados de
espírito.
A filiação à
casa espírita, a
prática das
atividades
doutrinárias,
tudo isso não
nos faz
diferentes ou
melhores que
ninguém; nos faz
melhores que nós
éramos, se
interiorizarmos
aqueles
ensinamentos.
Não temos
privilégios e
temos amparo,
como tem apoio
da
espiritualidade
nossos irmãos da
Europa, da
África e,
também, da
Polinésia.
Assim, nossa
religião não nos
garante a
salvação, mas se
apresenta como
uma das
ferramentas de
apoio à nossa
evolução como
encarnados,
assim como são
as outras
religiões ou,
ainda, a
família, a
escola e tantas
outras
oportunidades
que surgem.
Difícil pensar
assim... Afinal,
nos esforçamos,
vamos à casa
espírita toda
semana, tomamos
o passe, bebemos
a água fluída. E
ainda assim,
nada nos
garante.
Garante-nos,
ainda tomando
emprestado o
pensamento
kardequiano, o
esforço por uma
conduta reta e
se tudo isso
–
água, passe,
reunião
–
não contribuir
para o projeto
maior do “Homem
de bem”,
voltaremos às
antigas fórmulas
de sepulcros
caiados, das
quais já fomos
advertidos há
mais de dois
milênios pelo
meigo nazareno.
O Espiritismo
traz um novo
paradigma
religioso, e não
apenas uma
transposição de
práticas de
outras
religiões, com
outros nomes.
Por isso tudo,
achamos graça do
Deus da
Polinésia, de
suas exigências
ridículas para
garantir o
acesso ao
paraíso. Achamos
graça da forma
que nós vemos
Deus, que não é
muito distante
da divindade
pintada pela
genialidade
dessa peça
humorística, mas
que, se
observada com os
“olhos de ver”,
pode nos trazer
uma reflexão,
que, de cômica,
passa a ser
perturbadora, de
que a senda da
evolução é
complexa e que
demanda de nós
muito mais que
fórmulas
exteriores, em
um compromisso
nosso com a
divindade,
forjado no
momento de nossa
criação. |