Estudando o
Evangelho
(The
Bible Says)
Nos áureos
tempos do ensino
médio, nas aulas
de história
militar,
estudávamos
preocupados com
a prova que
cobrava as
batalhas do
Brasil Império,
seus detalhes e
seus
comandantes, com
nomes, dados e
números. Muita
decoreba, pouca
reflexão e um
aprendizado que
ficou dos
momentos cômicos
de sala de aula,
mas pouco do que
podemos
aproveitar no
presente com a
história e o com
o sacrifício dos
que nos
antecederam.
Essa visão da
história, dos
dados,
predominou no
Brasil no
segundo
quinquênio do
século passado,
demorando a
surgir uma visão
da história que
priorizasse o
entendimento das
relações, das
forças sociais e
de que forma
isso tudo nos
ajuda a explicar
o mundo como ele
é hoje.
Penamos, nos
bancos
escolares, com a
memorização de
dados e fatos
estranhos a
nossa realidade,
achando que isso
seria aprender
história. E nos
gabávamos desse
saber! No
máximo, nos
preparávamos
para um programa
televisivo de
perguntas e
respostas.
Em uma época que
exaltamos o
estudo da
“Bíblia” in
natura,
relançado o Novo
Testamento pela
Federação
Espírita
Brasileira;
tempos no qual
pensamos em
fazer um filme
espírita com a
história de
Jesus; em que se
tem a descoberta
recente do
Evangelho de
Barnabé, mais um
texto que com
suas polêmicas
recebe alcunhas
de apócrifo e
abala as
estruturas
calcadas em
textos
evangélicos; ou
seja, momentos
em que os
acontecimentos
da passagem de
Jesus pela Terra
(encarnado)
voltam com força
pela sua verdade
histórica às
prateleiras e
discussões,
penso que merece
uma singela
reflexão a nossa
postura diante
do estudo do
evangelho, sob
pena de cair na
armadilha dos
números e
detalhes, do
saber por saber.
O que queremos
nós, espíritas,
do estudo do
texto
evangélico?
Vemos ali um
livro sagrado,
imutável,
valorizado pela
letra que mata e
que deve ser
estudado e
repetido, como o
terço e o
rosário de
outros tempos?
Vemos neste uma
fonte de estudos
dos hábitos e a
cultura de uma
época, estranha
a nós em um
mundo moderno,
esquecendo-nos
da “parte boa”
contida nas
lições da moral?
Ouço as pessoas
dizerem que é
importante
estudar a
Bíblia... Mas,
por quê? Somente
ela, com essa
abordagem, dará
conta de nossas
questões como
Espírito
encarnado no
planetinha azul?
Completamos este
ano, 2013, os
150 anos de “O
Evangelho
segundo o
Espiritismo”,
obra magistral
na qual Kardec
trata da questão
religiosa do
Espiritismo, da
sua relação com
o Cristianismo,
tendo em suas
páginas iniciais
estampado que a
referida obra
trata da “explicação
das máximas
morais do Cristo
em concordância
com o
Espiritismo e
suas aplicações
às diversas
circunstâncias
da vida”,
apontando que o
foco é o
Espiritismo e
como ele nos
ajuda a entender
as máximas
morais de Jesus,
de forma a nos
tornar o
ambicionado
Homem de Bem,
propósito maior.
Nesse sentido, a
porta estreita
de nos determos
em tertúlias
sobre detalhes
ocorridos da
vida de Jesus e
dos discípulos
que os seguiram,
em que pese seu
valor histórico,
pode ter um
baixo potencial
de nos auxiliar
na transposição
do Reino de Deus
para os dias
atuais. E ainda,
necessitamos,
como já
advertido pelo
próprio Kardec,
filtrar a
Bíblia, em suas
múltiplas
traduções,
permeadas de
guerras e lutas
políticas,
oriunda de uma
história oral e
carregada, em
especial no
velho
testamento, de
passagens
sexistas e
contrárias à
ciência, que
podem e nos
levam a adotar
uma visão
restrita disso
tudo. Filtrar a
Bíblia não é
interpretá-la a
nossa maneira,
mas sim entender
que o texto,
como base de
nossas
reflexões,
padece de
interferências
históricas e
culturais. No
Espiritismo, não
existe livro
sagrado...
No estudo do
evangelho, do
livro que
fundamenta o
Cristianismo no
mundo todo, é
preciso
mergulhar no
espírito
daquelas
passagens,
entender a
mensagem em cada
situação, na
qual o Cristo se
usa de parábolas
ou de situações
reais para
exemplificar o
que nos servirá
para a
eternidade.
Kardec propôs
isso...
Interessa-nos
essa história
vista do alto,
no contexto da
época e trazido
para a nossa
realidade. É
preciso superar
os 500 anos de
Catolicismo
arraigados em
nossa alma e
entender que o
paradigma é
diferente, é o
da fé
raciocinada, do
livro que fala
mais do que seu
texto e de uma
religião que
rompa mitos e
formalismo, como
nos deixou o
legado
Kardequiano.
Na nossa jornada
reencarnatória,
necessitamos da
mensagem do
evangelho a
iluminar nossa
rota, como um
farol a nos
guiar. Mas
precisamos ter
“olhos de ver”
para enxergar
essa luz,
relembrando as
guerras que a
história da
humanidade viveu
com base em
interpretações
desses mesmos
livros e de que
a religião, como
forma de relação
com a nossa
espiritualidade,
pode redundar em
absurdos, onde a
razão precisa
nos orientar.
Quem não lembra
o clássico filme
da década de 80,
“Footloose”,
onde o texto
evangélico
serviu como
proibição da
dança, mas
também
argumentou para
a sua liberação
naquela pequena
comunidade.
Jogos de
palavras no qual
a fé cega pode
se servir...
Interpretações
literais sobre o
que não temos
certeza.
Estudos
históricos,
detalhes da
época, nomes de
personagens, com
todo respeito a
essas figuras
históricas e
seus
sacrifícios,
devem nos servir
para algo mais
do que decorar a
nossa cultura
sobre o povo
judeu de 2000
anos atrás e o
modo de vida no
Oriente Médio,
como se
falássemos de
seres
supra-humanos.
Kardec, ao falar
do objetivo de
“O Evangelho
segundo o
Espiritismo”,
reforça que ele
trata da questão
moral, daquela
que se afasta da
controvérsia e
dos sectarismos
e permanece para
além dos
séculos, e,
apesar dessa
supremacia,
demanda estudo e
reflexão.
Quando vejo os
textos do novo e
velho testamento
carregados de
pronomes
pessoais em
desuso na língua
coloquial, como
o “Vós”, fica
claro que isso
se deve a uma
fossilização do
texto, que não
pôde ser mudado
pelo seu caráter
sagrado.
Resquícios de
uma cultura do
texto sagrado,
na qual o
próprio livro,
fisicamente, é
cultuado em um
altar. Mas e a
ideia... Esse é
o cerne dessa
discussão,
abandonar o
formalismo do
texto, do fato e
avançar sobre a
essência, ainda
que o primeiro
caminho seja
mais fácil.
Lembremos que a
queima dos
livros em
Barcelona, na
época de Kardec,
foi visto como
uma questão
benéfica para a
difusão das
ideias
espíritas.
Leonardo Da
Vinci dizia que
“(...) a
simplicidade é o
último degrau da
sofisticação”.
Gandhi, em sua
sabedoria, nos
asseverou no
século passado
que “(...) se
toda a
literatura
ocidental se
perdesse e
restasse apenas
o Sermão da
Montanha, nada
se teria perdido",
apontando que as
coisas simples
do evangelho são
as mais
necessárias a
nossa evolução.
Lembremo-nos de
André Luiz no
livro “Agenda
Cristã”, quando
diz “(...)
não viva pedindo
orientação
espiritual,
indefinidamente.
Se você já
possui duas
semanas de
conhecimento
cristão, sabe, à
saciedade, o que
fazer”. Isso
não é um
abandono do
estudo e sim uma
orientação da
abordagem que
ele deve adotar.
Nessa época de
valorização da
informação nua e
crua, do grande
acúmulo de dados
pelas pessoas em
seus
equipamentos
portáteis,
ficamos
extasiados com
minúcias
históricas e
suas nuanças e
esquecemo-nos da
vida real, da
aplicação
daquele
conhecimento em
um contexto mais
amplo. Hoje,
posto que com a
internet
tenhamos uma
infinidade de
dados ao alcance
de nossas mãos,
nos detemos em
saber muito,
sobre coisas e
suas
superficialidades,
e estamos
perdendo a
competência de
discutir e
refletir.
Navegamos na
superfície, nos
seus detalhes
exteriores e
esquecemos a
essência.
Da mesma forma,
a nossa
sociedade
valoriza o
espetáculo, o
bom produto a
ser consumido e
buscamos
mergulhar nas
histórias e nos
tornamos
aficionados
pelos nossos
personagens, com
bonecos nas
mesas do
trabalho e
posts nas
redes sociais.
Fazemos assim
com nossos
heróis
evangélicos,
endeusados pelos
seus
superpoderes, na
releitura dos
fenômenos de
canonização,
distantes em um
mundo
inatingível de
fantasia a
divertir nossas
tardes de
domingo.
Não se trata de
uma redução do
papel de Jesus,
para o qual
endereçamos,
contritos,
nossas preces
antes de dormir.
Citado na
pergunta n°
625 de “O Livro
dos Espíritos”
como o tipo mais
perfeito que
Deus tem
oferecido ao
homem, para lhe
servir de guia e
modelo;
entendido pelas
obras
psicografadas
por Chico Xavier
como governador
espiritual do
planeta, Ele
merece ser
resgatado desse
míope papel de
Deus encarnado e
salvador
propagado pelas
religiões, para
uma visão na
qual seja forte
pelo seu legado,
pela sua
mensagem a se
perpetuar na
orientação de
nossas questões
mais intimas.
Trata-se de
fugir do
atavismo, de uma
divinização de
Jesus na busca
de cada detalhe
de sua vida,
como um fã
incondicional
que coleciona
palhetas de
guitarras, em
posturas que
redundam em
outros conceitos
no plano
teórico, como o
corpo fluídico e
a evolução em
linha reta do
Cristo, como
negações da
grandeza do
universo e da
nossa pequenez
nesse contexto.
A adoração, como
dito no mesmo “O
Livro dos
Espíritos”,
agrada a Deus
quando do fundo
do coração, com
sinceridade,
fazendo o bem e
evitando o mal.
E isso se dá com
estudo e
reflexão, com
pensamento e
ação, no
diferencial
teológico do
Espiritismo, uma
herança
grandiosa do
nosso
codificador.
A discussão do
evangelho deve
ser libertadora,
como deve ser o
ensino de
história nos
bancos
escolares. Para
além de fatos,
hábitos e nomes,
importa extrair
dali o conteúdo
para a nossa
vivência. Na
história, em
suas discussões
modernas, nos
interessa a
investigação
complexa, atenta
à estrutura
profunda dos
diversos
fenômenos
sociais, se
debruçando sobre
os conflitos, as
hegemonias e as
contradições, em
uma visão de
totalidade do
evento
histórico.
Assim,
enriquece-se o
estudo do
evangelho quando
transcende a
questão
narrativo-explicativa
do fato e seus
detalhes e se
prende aos
valores, a
postura das
pessoas e aos
seus desafios,
tudo isso como
fonte de
educação ao
Espírito. Para
isso, não
importa-nos
manusear o texto
original
simplesmente, e
sim buscar em
cada obra no
manancial
espírita essa
sabedoria, em
discussões e
reflexões.
Por fim,
recordo-me dos
mercadores da
Idade Média, que
comercializavam
falsas relíquias
sagradas, lascas
do madeiro de
Jesus, e as
pessoas, que sem
ter a certeza da
origem daquele
artefato, se
apegavam a ele
na sua fé cega.
Kardec nos
oferta, em um
mundo novo, a fé
raciocinada, não
no sentido de
amplitude da
superfície,
conhecendo de
forma extensa
apenas a
aparência, mas
no mergulho da
essência que
relaciona o
posto, o
contexto e as
outras
realidades,
passadas e
presentes. Nas
palavras de
Kardec: “(...)
A criatura então
crê, porque tem
certeza, e
ninguém tem
certeza senão
porque
compreendeu. Eis
por que não se
dobra. Fé
inabalável só o
é a que pode
encarar de
frente a razão,
em todas as
épocas da
Humanidade”.
Queremos ao fim
da vida,
retornando ao
Plano
Espiritual,
trazer algo mais
do que eu trouxe
das aulas de
história e seus
detalhes
exaltadores de
personalidades.
Queremos trazer
aquele evangelho
vivo, refletido
em conduta e
pensamento. O
“amai-vos” e o
“Instruí-vos”
não figuram
isolados e sim
como elementos
integrados, no
qual estudamos
para amar com
mais qualidade e
amamos
impulsionados
pelo
entendimento da
vida e de seus
objetivos. Para
isso,
incumbe-nos
saber amar, mas
também saber a
melhor forma de
estudar...