Um dileto amigo, leitor e
também colaborador de nossa
revista, pergunta-nos se não
haveria redundância na
famosa frase de Kardec: “Fé
inabalável só o é a que pode
encarar de frente a razão,
em todas as épocas da
Humanidade”.
O trecho citado foi extraído
da tradução do texto abaixo,
que integra o original
francês:
La foi raisonnée, celle qui
s'appuie sur les faits et la
logique, ne laisse après
elle aucune obscurité; on
croit, parce qu'on est
certain, et l'on n'est
certain que lorsqu'on a
compris; voilà pourquoi elle
ne fléchit pas ; car il n'y
a de foi inébranlable que
celle qui peut
regarder la raison face à
face à tous lês âges de
l'humanité. (L’Evangile
selon le spiritisme, chap.
XIX, n. 7.)
Eis como Guillon Ribeiro o
traduziu:
A fé raciocinada, por se
apoiar nos fatos e na
lógica, nenhuma obscuridade
deixa. A criatura então crê,
porque tem certeza, e
ninguém tem certeza senão
porque compreendeu. Eis por
que não se dobra. Fé
inabalável só o é a que
pode encarar de
frente a razão, em todas
as épocas da Humanidade.
(O Evangelho segundo o
Espiritismo, cap. XIX, item
7, tradução de Guillon
Ribeiro.) (Grifamos.)
A competência de Guillon
Ribeiro no tocante ao
domínio da língua portuguesa
é conhecida no meio
espírita. Quanto a Allan
Kardec, professor e autor de
uma Gramática Francesa
clássica, nem há o que
comentar.
A expressão encarar de
frente, que já
comentamos nesta mesma
seção, é um vício de
linguagem que alguns chamam
de tautologia.
Exemplos de tautologia muito
conhecidos são as frases
“subir para cima”, “descer
para baixo”, “elos de
ligação”, “há anos atrás”,
“metades iguais”, “superávit
positivo”, “conviver junto”,
entre outros.
A locução de frente
significa “de face”. O verbo
encarar significa
olhar de frente, de cara,
achar-se frente a frente, e
dispensa, portanto, o
complemento de frente.
Basta-nos, pois, dizer: O
torcedor encarou o agressor
(e não: ... encarou de
frente o agressor).
*
A expressão utilizada por
Kardec – face a face
– significa em nosso idioma:
em frente, sem nada ou
ninguém de permeio; em
presença; um diante do
outro, em situações opostas,
defrontando-se. Tem ela por
sinônimos: barba a barba,
frente a frente, fronte por
fronte, cara a cara, rosto a
rosto, de rosto.
Respondendo, então,
diretamente à pergunta feita
pelo leitor, entendemos que
no caso mencionado não se
verifica nenhum vício de
linguagem.
Dois são os motivos por que
pensamos assim:
1º)
A locução “face a face”,
usada por Kardec, tem por
finalidade enfatizar,
realçar, dar força ao verbo
“encarar”. A fé deve
enfrentar a razão sem medo
algum, sem se valer de
subterfúgio nenhum, sem nada
de permeio.
2º)
Ao escrevê-la, Kardec não se
referiu a nenhuma pessoa,
mas sim à “fé”, no seu
sentido de crença religiosa.
Como “fé” e “razão” não têm
rosto, cara ou face, não
existe redundância na frase,
que nos transmite a ideia de
que a fé verdadeira,
apregoada pelo Espiritismo,
não pode temer jamais o
exame, a crítica, a razão,
aos quais os dogmas
religiosos têm verdadeiro
horror.