856. De 1893 a 1901
tínhamos, no Grupo de
Estudos Psíquicos de
Tours, três senhoras,
médiuns de transe, todas
pertencentes à
burguesia, e cujo
concurso era
absolutamente
desinteressado.
Relatórios
estenográficos, que
formam diversos volumes,
permitem comparar os
discursos pronunciados,
as comunicações obtidas
com o auxilio de suas
faculdades, e comprovar,
a muitos anos de
distância, uma perfeita
identidade de caráter e
de opiniões em relação a
cada um dos Espíritos
que se comunicavam.
857. Logo que se produz
a obscuridade, os
médiuns sentem a
influência magnética dos
invisíveis. No primeiro
grau do transe, estando
ainda acordados, eles
veem um grupo completo
de Espíritos formar-se
atrás dos
experimentadores e
descrevem as aparições;
ouvem e transmitem as
indicações, os pedidos
desses Espíritos, e por
sua linguagem, por
certas particularidades
da fisionomia ou da
atitude, os assistentes
facilmente reconhecem
parentes e amigos
falecidos. Dentro em
pouco se acentua o
transe, o médium
adormece, a incorporação
se verifica. Em nosso
grupo o poder fluídico
dos Espíritos-guia era
suficiente para anular
por completo a
personalidade do
sensitivo e evitar
qualquer intervenção da
subconsciência. Quando
muito, pôde-se observar
algumas vezes num dos
sensitivos, a Sra. D.,
uma interferência de
personalidades, quando o
transe não era profundo.
858. Quase sempre as
incorporações se
sucedem. Desde que a
possessão é completa,
faz-se a luz, e depois,
quando o Espírito se
retira, torna-se a
diminuí-la para
facilitar a ação
fluídica dos invisíveis
e o ingresso de um novo
manifestante. Cada
médium serve
habitualmente de órgão a
três Espíritos
diferentes, numa mesma
sessão. Enquanto a
incorporação se produz
num dos médiuns, os
outros descansam;
algumas vezes as
incorporações são
simultâneas. Diálogos,
discussões se travam
então entre diversos
Espíritos e o presidente
do grupo. Essas
conversações entre
quatro pessoas, três das
quais pertencem ao mundo
dos Espíritos, são das
que mais vivamente
impressionam.
859. Em geral, são os
Espíritos-guia que
primeiro se manifestam,
dando conselhos,
instruções, repassadas
de lógica e de grandeza,
sobre os problemas da
vida e do destino.
Sucedem-se depois
conversas com Espíritos
menos elevados, alguns
dos quais viveram entre
nós e participaram dos
nossos trabalhos. Cenas
patéticas se produzem. É
um pai, uma mãe, que vêm
exortar seus filhos,
presentes à reunião. São
amigos de além-túmulo,
que nos despertam
recordações de infância,
relembram serviços
prestados, faltas
cometidas. Descrevem
suas condições de vida
no Espaço, falam das
alegrias e dos
sofrimentos morais,
experimentados depois da
morte, consequências
inevitáveis de sua
conduta na Terra. Como
lições vivas de coisas,
palpitantes de colorido
e movimento, essas
expansões, essas
confissões nos deixavam
profundamente comovidos.
860. Muitas vezes se
travaram discussões um
tanto veementes entre
Espíritos. Dois
políticos célebres,
adversários declarados
na Terra, continuavam a
hostilizar-se pela boca
dos nossos médiuns, com
arroubos oratórios, uma
dialética cerrada,
argumentos de tribuna e
de pretório, um conjunto
de ditos característicos
e acerados que
constituíam outras
tantas provas de
identidade. Um duelo de
vontade, entre um de
nossos Guias e um
Espírito obsessor, ambos
incorporados, atingia
culminâncias
verdadeiramente épicas.
Essas cenas, de uma
intensidade de vida e de
expressão como se não
pode ver em teatro
algum, deixaram em nossa
memória indeléveis
recordações.
861. Dois Espíritos
assumem mais
particularmente a
direção do grupo e se
manifestam em todas as
sessões: o Espírito Azul
e Jerônimo. O Espírito
Azul é uma entidade
feminina de ordem assaz
elevada. Quando anima o
organismo da médium,
pessoa tímida e de
modesta instrução, as
linhas do semblante
adquirem uma expressão
seráfica, a voz se torna
extremamente doce e
melodiosa, a linguagem
reveste forma poética e
irrepreensível. A cada
um dos assistentes, por
sua vez, dirige ela
advertências, conselhos,
relativos à sua conduta
privada, os quais
atestam, mesmo ao
primeiro encontro,
perfeito conhecimento do
caráter e da vida íntima
daqueles a quem são
dirigidos.
862. Acontece
frequentemente que
pessoas vindas pela
primeira vez às nossas
reuniões, e
desconhecidas da médium,
recebiam conselhos,
palavras de animação ou
de censura, apropriadas
a seu estado moral e a
seus mais secretos
pensamentos. Essas
advertências, obscuras
para os outros ouvintes,
eram sempre claras e
positivas para os
interessados. E não era
um dos menores atrativos
de tais manifestações
essa arte que empregava
o Espírito Azul em
falar, diante de todos,
as coisas íntimas e
ocultas, de modo a
evitar qualquer
indiscrição, tornando-se
perfeitamente claro para
a pessoa alvejada.
863. A solicitude e a
proteção do Espírito
Azul se estendiam a
todos os membros do
grupo e se patentearam
muitas vezes no domínio
dos fatos. Vários dentre
nós, premidos por sérias
dificuldades,
conseguimos vencê-las,
graças à ação
providencial desse
Espírito, que, nos casos
mais melindrosos e no
momento oportuno, sabia
fazer surgir um socorro,
provocar uma intervenção
inesperada. Suas
instruções se referem
geralmente à família e à
educação das crianças.
“La Tribune Psychique”,
de março de 1900,
reproduziu uma dessas
comunicações, que resume
em termos elevados o
método do nosso guia. O
Espírito Azul vê, numa
profunda reforma da
educação da infância e
da mocidade, o
verdadeiro remédio aos
males do presente e aos
perigos que ameaçam a
sociedade moderna.
864. Jerônimo se
comunica pela mesma
médium; mas o contraste
entre os dois Espíritos
é flagrante. Jerônimo,
que foi um apóstolo e um
mártir, conservou-se
orador e combatente; sua
palavra é vibrante, seu
gesto amplo e dominador.
Exprime-se por períodos
incisivos, em termos
escolhidos. Sua energia
é tal que esgota
rapidamente o sensitivo,
de sorte que nem sempre
pode terminar os seus
discursos, por falta de
força fluídica. Ele
dirige mais
especialmente os estudos
filosóficos do grupo.
Numerosas existências,
passadas no silêncio dos
claustros e entre a
poeira das bibliotecas,
lhe permitiram acumular
tesouros de
conhecimentos e
imprimiram-lhe maior
vigor ao pensamento.
865. Os séculos o viram
imerso na investigação,
no estudo, na meditação.
As percepções mais
nítidas e as impressões
da vida do Espaço vieram
completar sua ciência,
já de si tão extensa.
Por isso, que amplitude
em suas apreciações, que
habilidade em dissipar
as contradições e
resumir em linhas
sóbrias e claras as mais
transcendentes leis da
vida e do Universo! E
tudo isso pela boca de
uma pobre senhora, de
gestos tímidos e
instrução elementar!
866. Deveremos examinar,
a propósito desses
fenômenos, a objeção
habitual que lhes é
feita, isto é, de serem
produtos da
subconsciência do
médium, das
personalidades
secundárias criadas por
uma divisão temporária
da consciência normal,
como o pretendem os Srs.
Pierre Janet e Flournoy?
867. Essa teoria não
poderia resistir a um
exame atento dos fatos.
É precisamente nos
fenômenos de
incorporação que mais
positiva se revela a
identidade dos
Espíritos, quando o
transe é profundo e
completa a posse
daqueles sobre o
sensitivo. Por suas
atitudes, seus gestos,
suas alocuções, o
Espírito se mostra tal
qual era aqui na Terra.
Os que o conheceram
durante sua existência
humana o reconhecem em
locuções familiares, em
mil detalhes
psicológicos que escapam
à análise.
868. O mesmo acontece
com as individualidades
que viveram em épocas
remotas. Em nosso grupo,
os Espíritos-guia se
comunicavam pelo órgão
do médium mais modesto.
Uma outra senhora, de
maneiras elegantes, era
preferida, para a
incorporação, por
Espíritos de ordem
inferior. Ouvia-se uma
vendedora de legumes
falar, por sua boca, o
calão de um país em que
essa senhora jamais
estivera. Uma velhota
leviana discorria numa
verbiagem(1)
ociosa, ou punha-se a
contar-nos anedotas
engraçadas. Depois
disso, era um sacristão
de voz arrastada que se
apresentava ou ainda um
antigo procurador que,
pelo órgão da própria
médium, dizia ao marido
dela, em tom veemente,
duras verdades.
869. O caráter de cada
um desses Espíritos e de
outros muitos se manteve
e afirmou em sua
originalidade, sem a
mínima alteração,
através de um período de
sete anos. Disso dão
testemunho as nossas
atas. Ao mesmo tempo nos
foi dado acompanhar os
progressos graduais de
um deles.
870. Sofia, a vendedora
de legumes, que graças à
sua boa vontade e à
proteção de nossos Guias
conseguiu emendar-se e
instruir-se, até que
para ela soou a hora da
reencarnação. Sua volta
à vida terrestre foi
antecipadamente
anunciada e nós pudemos
observar-lhe as fases
dolorosas. Consumado
esse ato, Sofia nunca
mais reapareceu em
nossas sessões.
871. Se aí estão
personalidades
secundárias do médium,
como explicar que sejam
em tão grande número e
revistam aspectos e
nomes tão diferentes? Em
nosso grupo contavam-se
por dezenas os Espíritos
que se comunicavam. Em
cada sessão, tínhamos de
seis a oito, dos quais
dois ou três para cada
médium. À medida que
cada um deles se
apresentava, mudava a
fisionomia do sensitivo,
a expressão das feições
se modificava. Pela
inflexão da voz, pela
linguagem e atitude, a
personalidade invisível
se revelava, antes de
ter dado o nome. Esses
Espíritos não se
manifestavam todos
seguidamente. Alguns só
reapareciam depois de
longas ausências, mas
sempre com a mesma
originalidade de
caráter, com a mesma
intensa realidade de
vida e de ação.
872. Como explicar pela
subconsciência, ou dupla
personalidade, essa
variedade de personagens
que, do sacristão ao
Espírito Azul,
representam todos os
tipos da gradação
hierárquica do mundo
invisível, desde o bruto
até o anjo, todas as
formas do aviltamento,
da mediocridade ou da
elevação; de um lado,
poder, bondade, saber,
penetração das coisas;
de outro, fraqueza,
ignorância, grosseria,
miséria moral?
873. Esses Espíritos
observam, uns para com
os outros, a atitude que
convém à sua posição.
Todos, por exemplo,
mostram pronunciada
deferência aos
Espíritos-guia. Deles
não falam senão com
respeito; e é sempre num
tom comovido e
suplicante que Sofia se
recomenda à proteção da
“dama azul”.
874. Não se trata de
personagens ilusórias,
de vagos fantasmas
subconscientes. Esses
Espíritos vivem e agem
como homens. Suas
opiniões, suas
percepções são
diferentes. As
divergências são às
vezes categóricas;
discussões veementes e
apaixonadas se travam
entre eles; surgem
incidentes dramáticos e
a isso se vêm intercalar
mil provas de identidade
que dissipam as dúvidas
mais tenazes e obrigam à
convicção.
875. Se a personalidade
secundária pode
engendrar semelhantes
contrastes, animar tão
variadas criações, força
é reconhecer que ela
ultrapassa em talento,
em gênio, as mais
prodigiosas concepções
do pensamento normal.
Produz obras-primas à
vontade e sem esforço; é
a mais portentosa das
explicações que se possa
dar do fenômeno; orça
pelo sobrenatural. E é
preciso que os nossos
contraditores se sintam
verdadeiramente em
extremos apuros, para
lançar mão de teoria tão
contrária às exigências
de uma crítica sensata e
de uma rigorosa ciência,
e recorrer a uma
hipótese tão fantástica
quão inverossímil, ao
passo que a teoria
espírita explica os
fatos mediante leis
naturais, simples e
claras.
876. Estudemos mais de
perto essa teoria da
subconsciência, de que
incidentemente acabamos
de falar, e com a qual
acreditam certos
psicólogos poder
explicar os fenômenos do
transe e da
incorporação. Os Srs.
Pierre Janet, A. Binet,
Taine, Ribot e Flournoy
acreditam que uma cisão
se produz na consciência
dos sensitivos
adormecidos e que daí
resulta uma segunda
personalidade,
desconhecida da pessoa
normal, e com a qual se
relacionam todos os
fenômenos. Deram-lhe
eles os mais diversos
nomes: inconsciente,
subconsciência,
consciência subliminal,
personalidade secundária
etc.
877. Essa hipótese
serviria para explicar a
maior parte das
anomalias observadas em
histéricas, nos casos de
sugestão, assim como os
diferentes aspectos do
sonambulismo e todas as
variações da
personalidade. A unidade
do “eu-consciente” não
passaria de uma ilusão.
Este seria suscetível de
desagregação em certos
casos patológicos, e
personalidades
distintas, inconscientes
ou dotadas de
subconsciência,
ignorando-se
reciprocamente, poderiam
surgir no estado de sono
e manifestar-se à
revelia uma da outra.
Assim se explicariam os
fatos espíritas.
878. Os médiuns seriam
apenas histéricos,
neuróticos,
particularmente
predispostos, por seu
estado fisiológico, a
tais cisões da
personalidade.
Observemos antes de
tudo, com o Dr. Geley,
que a histeria e a
neurose nada explicam.
Por outro lado, os
médiuns não são
histéricos. O Dr.
Hodgson e Myers atestam
que as Sras. Piper e
Thompson gozam perfeita
saúde. O professor
Flournoy, que é médico,
diz a mesma coisa de
Helena Smith. Nenhum
sinal de histeria se
manifesta nessas três
célebres médiuns. À
menor indisposição
nelas, ao contrário, os
fenômenos diminuem de
intensidade, cessam de
se produzir.
879. A mesma declaração
posso eu fazer em
relação aos sensitivos
de transe que por muito
tempo fizeram parte do
nosso grupo. Sobre esse
ponto as comparações que
os nossos adversários
procuram estabelecer são
errôneas e sua
argumentação é
completamente falha. As
personalidades fictícias
que eles provocam, por
meio de sugestões
pós-hipnóticas, nas
histéricas, têm apenas
uma vaga semelhança com
as manifestações de
personalidades no
transe. Em relação a
estas, não passam de
imperfeitas cópias, de
esmaecidas e longínquas
imitações.
880. No transe, a
entidade psíquica, a
alma, se revela por
distinta atividade do
funcionamento orgânico,
por particular acuidade
das faculdades. Quando é
completa a
exteriorização, o
Espírito do médium pode
agir sobre o corpo
adormecido com mais
eficácia que no estado
de vigília e do mesmo
modo que um Espírito
estranho. O cérebro não
é então, como no estado
normal, um instrumento
movido diretamente pela
alma, mas um receptor
que ela aciona de fora.
É o que resulta de
numerosas observações.
881. O Sr. Cromwell
Varley, engenheiro-chefe
dos Telégrafos da
Grã-Bretanha, em seu
depoimento perante a
comissão de inquérito da
Sociedade Dialética, a
respeito de sua esposa
que é médium de transe,
refere o seguinte fato:
“A Sra. Varley,
adormecida, me diz:
Agora não são os
Espíritos que vos falam;
sou eu mesma, e sirvo-me
de meu corpo do mesmo
modo que o fazem os
Espíritos quando falam
por minha boca.”
882. Myers, em seu
relatório ao Congresso
de Psicologia, 1900, faz
a seguinte declaração a
propósito dos transes da
Sra. Thompson: “Os
ditados são, em sua
maioria, transmitidos
mediante o organismo do
médium, por Espíritos
que nesse momento o
influenciam ou se
apossam desse organismo.
Alguns são diretamente
colhidos no mundo
invisível por seu
próprio Espírito e por
ele transmitidos.”
883. Uma coisa evidente
para o psicólogo
refletido é que muito
pouco nos conhecemos
ainda. Há em nós
profundezas cheias de
mistério, que às vezes
se entreabrem e cuja
visão nos perturba. Um
mundo inteiro aí reside,
mundo de intuições, de
aspirações, de
sensações, cuja origem
nos é desconhecida, e
que parece provirem de
um passado distante;
mescla de aquisições
pessoais, de
hereditariedades
psíquicas e atavismos
étnicos, vestígios das
existências percorridas
na sucessão dos tempos,
tudo isso está gravado
nos refolhos abscônditos(2)
do “eu”.
884. A consciência, no
estado normal, é
acanhada; no de
desprendimento é vasta e
profunda. Não há, porém,
duas consciências, do
mesmo modo que não há em
nós duas entidades. É
sempre o mesmo ser, a
mesma personalidade
vista sob dois aspectos
diferentes.