JOSÉ ESTÊNIO
GOMES NEGREIROS
estenionegreiros@hotmail.com
Fortaleza, CE
(Brasil)
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O
caso do homem
que
dormiu no
cemitério
Num entardecer
morno de um dia
de sábado de
verão do mês de
agosto de 1962,
já
boquinha-da-noite,
um homem tangia
o seu pequeno
comboio,
composto de
cerca de dez
jumentos,
arreados com
cangalhas,
acondicionadas
em surrões
feitos de palha
de carnaúba, uma
variada carga de
mercadorias
destinada aos
pequenos
comerciantes do
povoado de
Betânia, um
pequeno lugarejo
que, naquele
tempo, não
abrigava mais do
que duzentas
almas, situado
no Município de
Hidrolândia,
aqui no Estado
do Ceará.
Atrás da tropa e
um pouco
distante dela,
vinha o seu
condutor,
Gonçalo Rosa,
primo legítimo
de meu pai,
montado no seu
burrinho que
trotava ansioso,
pois já
pressentia os
ares da casa do
seu dono que
ficava a pouco
menos de um
quilômetro de
distância.
Provinham eles,
homem e animais,
da cidade de
Nova Russas, CE,
que distava
cerca de sete
léguas, aonde
tinham ido dois
dias antes
participar da
feira pública
semanal daquela
comuna, o que
aquele almocreve
fazia
habitualmente a
cada quinze
dias. Na ida,
haviam
transportado
dezenas de meios
de sola curtida
para serem
vendidos no
comércio local.
A sola é o couro
curtido de
bovino, caprino
ou ovino,
próprio para a
confecção de
alpargatas,
arreios,
correias etc. O
curtume desses
couros era a
principal
atividade de
alguns
habitantes
daquele pequeno
Distrito, dentre
eles, o tangedor
do comboio.
Os jumentos
seguiam
apressados,
parecendo querer
chegar logo ao
seu destino para
verem-se livres
do peso que
carregavam e
matar a fome e a
sede no pasto de
um cercado. O
badalar dos seus
chocalhos
quebrava o
silêncio que
naquela hora se
impunha naquele
sertão seco e
quente.
Antes de se
chegar ao
povoado,
vindo-se dos
lados da Fazenda
Pereiros, onde
nasci, tinha-se,
inevitavelmente,
de passar bem ao
lado do pequeno
cemitério da
localidade,
pouco habitado,
diga-se de
passagem, que
era protegido
por uma cerca
alta de
pau-a-pique.
Poucas coisas
costumam fazer
medo ao
sertanejo e uma
delas são as
“almas do outro
mundo”. Para
ele, um
cemitério está
povoado delas. É
por isso que ele
costuma dizer
que homem nenhum
passa perto de
“um campo santo”
sem sentir um
pouco de medo,
aquele arrepio
que sobe dos pés
à cabeça,
engrossando o
corpo e causando
uma vontade
maluca de sair
correndo. Uns
correm
desabaladamente,
outros não
correm porque
temem ser
perseguidos por
uma alma numa
corrida
desigual. Não
adianta correr,
pois o medo
aumenta mais
ainda! E tanto
faz ser de dia
como de noite. A
sensação é
sempre a mesma.
Digo isso por
experiência
própria, pois
tive de passar
muitas vezes por
aquele mesmo
lugar, tanto à
luz do dia
quanto na
escuridão, a
cavalo ou a pé.
Que pavor! Nessa
situação, o
melhor a se
fazer é não
espiar para
dentro do
cemitério e não
olhar para trás
depois de passar
por ele, no
estilo “não te
vi, não te
conheço” e
assobiar pra
disfarçar o
medo.
Gonçalo Rosa
estava tão
habituado a
fazer aquele
trajeto que já
nem deveria
sentir tanto
receio de passar
por ali, onde
todos os
sepultados eram
da nossa
família, amigos
e conhecidos.
Aquele dia,
porém, ia ser
muito diferente
para ele, em
vista das
circunstâncias
que narraremos
adiante.
Por volta das
duas horas da
tarde daquele
mesmo sábado,
Eduardo Lino, em
sua casa na
localidade de
Juá, após lavar
os pés e o rosto
com a água
contida numa
cuia grande,
vestiu sua roupa
de mescla
azul-marinho,
calçou as
alpergatas de
sola grossa e
disse pra sua
mulher que ia
comprar os
mantimentos e
víveres para a
semana seguinte:
rapadura,
farinha,
querosene, fumo
etc. E lá se foi
ele. Pulou o
passador que
dava para um
cercado próximo
e ganhou as
capoeiras em
demanda do
povoado de
Betânia, que
ficava a mais de
meia légua de
distância e que
ele percorria em
mais ou menos
uma hora.
Eduardo, que
Deus o tenha,
era o que
costumamos
chamar no sertão
de “um
pau-d’água”. Era
um homenzarrão
de mais ou menos
um metro e
oitenta de
altura, fala
grossa embora
mansa, riso
fácil, mas
arengueiro
quando se
embebedava.
Gostava de tomar
cachaça. Tanto
em casa, onde
mantinha sempre
um litro de
aguardente de
reserva, quanto
nas bodegas da
redondeza.
Ao chegar ao seu
destino,
dirigiu-se à
bodega do
Mousinho, filho
de Gonçalo Rosa,
e tomou logo um
trago generoso
num copo de
fundo falso, da
cachaça
avermelhada,
destilada na
Serra da
Ibiapaba.
Forneceu-se,
fiado, dos
mantimentos de
que necessitava,
colocou-os num
saco grande de
pano e passou a
perambular pelas
poucas
mercearias,
conversando com
os conhecidos e
tomando os seus
goles. Decorrido
cerca de uma
hora depois de
sua chegada, já
andava meio
grogue,
pendendo, a voz
empastada,
falando alto.
Beber com a
barriga vazia é
embriaguez na
certa e aquele
pobre homem
havia comido
pela última vez
no almoço frugal
que havia
engolido por
volta das dez e
meia da manhã
daquele dia,
constituído de
feijão
escoteiro,
farinha e
rapadura.
Lá pelas quatro
e meia da tarde,
já muito
troviscado,
decidiu ir-se
embora. Bebeu a
derradeira
“bicada” e tomou
o caminho de
casa. Quando
chegou ao
cemitério, as
pernas bambas,
já não
suportando o
peso do corpo,
não titubeou.
Como o portão
estava
destrancado, não
teve dúvida:
entrou,
cambaleante,
sentou-se
encostado à
cerca e ali
ficou, meio
adormecido,
esperando a
bebedeira
passar.
O comboio de
jumentos já
havia passado
pelo cemitério,
enquanto Gonçalo
Rosa, pensativo,
na sela do seu
burro, olhos
fixos no chão da
estrada, chegou
ao primeiro
canto da cerca,
à esquerda do
viajante. O Sol
já se pusera há
algum tempo e
fazia aquele
lusco-fusco que
impede de ver
nitidamente.
Quando alcançou
o meio do lance
do cercado,
ouviu uma voz
grave e
profunda, vinda
de dentro do
cemitério,
dizer: “Já vem,
né cumpade
Gonçal”?
Surpreso e
assombrado com o
que ouviu,
Gonçalo ergueu a
cabeça
subitamente,
olhou pra trás,
olhou pra
mataria à
direita e depois
pra dentro do
cemitério. Como
não viu o dono
da voz que
falara o seu
nome, não pensou
duas vezes:
esporeou o
burrinho com
toda a força dos
calcanhares e o
animal arrancou,
numa carreira
desembestada, em
demanda do
povoado. Passou
pelo seu comboio
de jumentos e só
foi parar na
calçada da
bodega do seu
filho Mousinho
que àquela hora
se achava
apinhada de
fregueses.
Desceu do burro,
pálido e quase
sem voz, entrou
no
estabelecimento
e foi direto ao
balcão. O filho,
vendo o estado
do pai,
indagou-lhe o
que tinha
havido. Como ele
hesitasse em
responder, o
bodegueiro
deu-lhe um trago
de cachaça que
foi engolido de
uma só vez. Foi
então que pôde
responder, já um
tanto mais
serenado,
dizendo apenas:
“Uma voz, uma
alma, no
cemitério...”
Gonçalo era um
homem direito e
todos
acreditavam
nele, por isso,
a notícia correu
e se espalhou
pelo povoado
inteiro: “O
‘Gonçal’ Rosa
viu uma alma no
cemitério”! Foi
o bastante pra
deixar todo o
mundo com medo.
Ninguém, naquela
noite, se
aventuraria a ir
para os lados do
campo dos
mortos.
Dia seguinte,
domingo pela
manhã, retorna
Eduardo à
povoação e, na
dita bodega do
Mousinho, toma
conhecimento da
novidade da
tarde anterior:
a alma ouvida
pelo Gonçalo
Rosa. Ao saber
do ocorrido, ele
cai na
gargalhada,
gesto que
intriga a todos.
Foi então que
ele narrou a
versão do fato.
Não era alma,
coisíssima
nenhuma, era ele
próprio que
tinha caído,
bêbado, dentro
do cemitério.
Despertara ao
ouvir o
chocalhar da
jumenteira e
chamara o nome
do amigo que
passava. Um
misto de alívio
e decepção tomou
conta dos
moradores.
Alívio, porque
arrefecia o medo
que aquela
“alma” estava
causando à
população, e
decepção pelo
ridículo risível
pelo qual passou
um dos homens
mais acreditados
e probos do
lugar Betânia.
Casos como o
narrado acima
não são
singulares.
Muitos têm
tomado
ocorrências
naturais por
sobrenaturais,
distorcendo,
assim, a
veracidade dos
sucessos.
No início do
Capítulo IX –
Dos Lugares
Assombrados – de
“O Livro dos
Médiuns”, se
expressa Allan
Kardec desta
maneira: “As
manifestações
espontâneas que
se produziram em
todos os tempos,
e a persistência
de alguns
Espíritos em
darem sinais
ostensivos de
sua presença em
determinadas
localidades, são
a origem da
crença em
lugares
assombrados”.
Kardec, no mesmo
capítulo,
formula diversas
questões aos
Espíritos sobre
o assunto. Na
questão ‘5’, por
exemplo, ele
indaga: “As
crenças
populares, em
geral, têm um
fundo de
verdade; qual
pode ser a
origem da crença
nos lugares
assombrados?”
Resposta: “O
fundo de verdade
é a manifestação
dos Espíritos,
na qual o homem
acreditou em
todos os tempos,
instintivamente;
mas, como já
disse, o aspecto
dos lugares
lúgubres toca a
sua imaginação e
ele coloca aí
naturalmente os
seres que
considera como
sobrenaturais.
Essa crença
supersticiosa é
mantida pelas
narrativas dos
poetas e os
contos
fantásticos com
os quais
embalaram sua
infância”. Na
questão ‘8’, ele
pergunta: “Os
Espíritos voltam
de preferência
aos túmulos onde
repousam seus
corpos?”
Replicam os
Espíritos: “O
corpo não é
senão uma veste;
eles não se
ligam mais ao
envoltório que
os fez sofrer do
que os
prisioneiros às
suas cadeias. A
lembrança das
pessoas que lhes
são caras é a
única coisa à
qual dão valor”.
É a nossa
arraigada crença
de que as almas
permanecem
indefinidamente
junto aos seus
despojos carnais
nos cemitérios a
causa da
produção de
fatos como este
que acabamos de
narrar.