EUGÊNIA PICKINA
eugeniapickina@gmail.com
Campinas, SP
(Brasil)
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Morte de uma
criança:
à
escuta dos pais
“Os contos de
fada são assim.
Uma manhã, a
gente acorda e
diz: ‘era só um
conto de
fadas...’ E a
gente sorri de
si mesmo. Mas,
no fundo, não
estamos
sorrindo.
Sabemos muito
bem que os
contos de fada
são a única
verdade da vida”
– Saint-Exupéry
(O amor do
Pequeno Príncipe
– Cartas a uma
desconhecida).
Quando eu tinha
pouco mais de
três anos, fui
com meus pais,
agricultores, a
um velório de um
menino de um
ano, filho de um
funcionário,
cuja família
residia na
fazenda.
Assustada,
atravessei dias
e alguns meses a
partilhar com
eles sobre os
(obscuros)
motivos daquela
morte precoce.
Eu dizia de
forma
repetitiva,
porém
demasiadamente
melancólica: “o
menininho
morreu, o
menininho
morreu...”
Já aos seis anos
participei da
doença súbita e
dolorosa,
seguida de morte
prematura, de um
outro menino,
chamado Jacinto,
que na época
contava quatro
anos. Ele era o
caçula de uma
afável família
de um
funcionário da
fazenda do meu
pai, cujos
filhos brincavam
conosco quando
passávamos
férias naquele
lugar povoado de
natureza,
histórias
misteriosas e
pessoas
acolhedoras.
Lembro-me da mãe
e do pai dele em
pranto
inconsolável,
feridos no
coração por
similar espada
ligada à
biografia da Mãe
de Jesus, quando
crucificaram o
Mestre inocente.
Não seria esse o
legado de fundo
de cada criança
que é conduzida
pela “irmã
morte” no seu
retorno ao mundo
espiritual?
Claro que a
morte de uma
criança provoca
comoção, gera
lágrimas que
salgam dias que
parecem
arrastados e
intermináveis,
pois ela, a
criança
em si
mesma,
simboliza
inocência, além
de irradiar a
pura alegria que
fecunda o
presente e
implica,
potencialmente,
as boas e
bonitas
promessas do
futuro.
Ademais, uma
criança é algo
também da
própria carne
dos pais, sem
negligenciar
todavia as
propriedades que
lhe pertencem
como (seu)
patrimônio
individual e
que não estão,
em consequência,
sujeitas ao
arbítrio da
hereditariedade:
inteligência,
conhecimentos e
qualidades
morais.
Por isso, em
nome do desafio
da morte de uma
criança, a
necessidade da
compreensão
dirigida àquele
ser humano, mãe
e/ou pai, que,
momentaneamente
devastado,
exemplifica o
acervo de
(nossas)
fraquezas quando
é convocado a
restituir aos
braços da
Misericórdia o
filho – ou a
filha – que
nunca nos
pertence.
A duração de
nossa existência
aqui tem
critérios e
objetivos que
nos escapam. E
estamos sempre a
experimentar um
estágio corpóreo
para “mais um
dia de colégio”
e isso
continuamente
destinado para
nosso
aprendizado e
crescimento.
Logo,
respeitadas as
idiossincrasias
e necessidades
de cada
individualidade,
a linha de tempo
que define o
existir de uma
pessoa pode, por
exemplo,
ajustar-se às
vezes a um
indispensável
complemento de
algo que fora
interrompido no
passado e que
exige, para a
evolução desse
Ser, uma
existência
imediata
correspondente a
apenas alguns
breves
instantes, dias,
ou poucos anos.
E, ainda, para
que esse “algo”
alcance seu
devido
cumprimento.
E se, de um
lado, a morte
prematura
reivindica até
mesmo o
entendimento de
quem está
convicto do
princípio da
pluralidade das
existências, de
outro, sentir a
dor da separação
é algo
perfeitamente
humano, pois as
partidas
provocam o
sentimento que
dói ardido
segundo a
nostalgia da
falta. Quem ama
sabe o que
significa o que
conta o poeta
gaúcho Quintana:
Via você no
ontem, no hoje,
no amanhã... Mas
não via você no
momento. Que
saudade...
Além do mais, a
morte prematura
de um filho/a é
descrita (1), e
por pessoas em
situações e
geografia
diversas, como
uma espécie de
“extração
violenta de
parte do ser”.
E, como os
filhos são
insubstituíveis,
aparecem,
interligados ao
ciclo do luto,
tristeza, culpa,
raiva,
ansiedade, medo,
sempre exigentes
de atenção
amorosa e,
muitas vezes,
apoio
especializado
(2).
E se a morte de
um filho/a é uma
ferida
para a vida
inteira, a meu
ver se faz muito
adequado o que
um dia um amigo
professor me
afirmou, e até
de uma maneira
ríspida e
despejada após
um comentário
nostálgico sobre
o aniversário do
próprio filho,
falecido de um
infarto no
miocárdio dias
depois de
completar vinte
anos: “no
todo el tiempo
puede curar”...
Mas, e
independente
dessa ferida
incurável
(3), é
importante que
os pais
consigam, após o
decurso do
período mais
severo do luto,
retomar suas
rotinas e ação
no mundo da
vida.
Por fim, os
amigos,
parentes,
colegas podem
cooperar para
que sejam
consolados,
ajudados a
transcender o
tempo mais
devastador do
luto, e para
incorporar,
gradativamente e
segundo o modo
de ser de cada
um, a lição que
nos obriga a
“deixar ir” o
filho, a filha,
a criatura que
amamos,
abastecendo-nos,
para realizar
essa complexa
tarefa do
desapego, na Luz
do Redentor, no
apoio solidário
do Invisível,
porém sem
esquecer que
a morte não
mata a vida,
pois ela
continua.
Notas:
(1) Os filhos
são
insubstituíveis.
Para o pai e a
mãe a morte de
uma filha, um
filho, é sofrida
com a mesma
intensidade e a
independer da
idade:
recém-nascido,
criança,
adolescente,
adulto, idoso...
Contudo, como as
crianças
representam “os
mais inocentes
entre os
inocentes”, o
luto, para os
pais, nesse
caso, pode se
tornar muito
mais complexo.
Evitemos, pois,
aqueles
comentários
tolos,
inadequados ou
até mesmo
cruéis. Na falta
de boa palavra,
melhor o
silêncio e uma
boa vibração.
Quando meus pais
perderam o
filho, muitos,
em sua
indiscrição,
mais feriam do
que ajudavam
quando diziam
“vocês têm
outros filhos”,
entre outras
inadequações. Ou
pais que
experimentam a
perda de um bebê
e as pessoas
dizem: “quando
vocês tiverem
outro bebê será
mais fácil”.
Nada disso, por
favor. Prece e
jejum de (más)
palavras são
ótima ajuda
sempre!
(2) A morte de
um ente querido
pode exigir ou
não ajuda
especializada,
pois isso é
sempre muito
subjetivo/particular.
No geral a
elaboração do
luto se dá
segundo um
processo lento e
doloroso, e isso
envolve, é
claro, todos os
membros da
família – os
pais e os
irmãos, se
houver, que
também são
duramente
afetados,
especialmente se
também ainda
crianças.
(3) Essa ferida
faz alusão à
ferida de
Amfortas.
E respeitados os
limites da
analogia, em sua
versão de
Parsifal,
Wagner apresenta
o rei Amfortas,
filho de Titurel,
e sua ferida
incurável, à
espera do
(bálsamo) do
Redentor. Desse
modo, a meu ver,
a única maneira
dos pais viverem
dignamente,
apesar da
ferida incurável
da falta do
filho/a, é
se abastecerem
na fonte amorosa
da Clara Luz,
valendo-se do
amparo de Jesus,
sublime
Terapeuta, e da
Misericórdia
Divina – ou
apoiado na sua
forma peculiar
de conexão com
Deus, seja ela
qual for, pois o
Amor de Deus se
derrama em todos
os lugares
comprometidos
com o Bem.
E, por isso, faz
ressonância,
para quem vive a
experiência da
morte prematura
de alguém amado,
o encadeamento,
no próprio solo
da jornada, dos
temas
ferida-incurável-prova,
vividos,
portanto, “na
carne” e de
forma cotidiana.
Mas não ouso
dizer que perder
um filho diz
respeito a uma
“expiação”, pois
o que sabemos da
vida alheia?
Tenho pavor
desses
achismos
infelizes e que
nada
acrescentam...
Sei de histórias
(reais) de pais
que aceitaram
acolher sujeitos
muito
comprometidos e
devastados
psiquicamente e,
igualmente,
filhos que
sofrem por
tolerar pais que
ainda apresentam
inteligência
tosca e quadros
emocionais
dificílimos para
a convivência.
Afinal, não sei
de ninguém que
“aceitou”
adentrar de novo
o campo da
carne, e para
melhorar-se, a
depender, por
exemplo, de um
pai violento,
que espanca ou
maltrata. Escuto
também o
sofrimento de
indivíduos que
estão a estagiar
em campos
familiares
ásperos, movidos
apenas por
bondade e
vínculo de afeto
com algum dos
genitores. O que
importa? Todos,
aqui e por
enquanto,
somos aprendizes
e, em
consequência,
pessoas
“inacabadas”,
mas abertos a
sublimes
virtudes,
movidos pela
centelha da
Bondade
essencial,
fadados
apenas à
perfeição.
* Há um livro
muito
interessante e
que pode apoiar
e esclarecer os
pais que estão a
viver a
elaboração do
luto em razão da
morte precoce de
um filho/a:
André
Luiz/Francisco
Cândido Xavier.
Entre o Céu e
a Terra. 13.
ed., RJ: FEB,
1990.