EUGÊNIA PICKINA
eugeniapickina@gmail.com
Campinas, SP
(Brasil)
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Uma lição
cultural
Não gosto de
futebol. Quando
adolescente, fiz
um breve esforço
para adequar-me
à paixão
nacional, sem
êxito. Na
verdade, seria,
de fato,
contrapor-me à
minha natureza
essencial,
porquanto não
dou conta de
desperdiçar meu
(precioso) tempo
perante homens e
bola. Não torço,
não me interesso
por este
esporte.
Também não vi
sentido o País
gastar (tanto)
dinheiro e
confete com
estádios e toda
a parafernália
vinculada a uns
poucos dias de
Copa.
Principalmente
diante do
descaso público
renitente com
uma série de
necessidades e
prioridades,
pois continuamos
uma Nação
crivada pela
desigualdade
social. Ou não?
Quando fiz
direito, no
primeiro ano, um
professor
excelente nos
contou que a
democracia é, em
essência, a
ditadura da
maioria. Pois
bem. Quando a
maioria, longe
de massa
crítica,
continua massa
iludida por
panis et
circenses,
o estado geral
das coisas
permanece
maquiado e isso
às vezes é bem
conveniente para
alguns “amigos
do rei”…
Lógico que na
época de
faculdade isso
me fez refletir
bastante… Mas,
agora, diante
dessa corrupção
endêmica, um dos
traços da
cultura do povo
brasileiro, da
escassez de
segurança,
educação e saúde
falidas (que
apenas dão
números para
enganar quem?) e
horizonte tomado
pelo ar
pestilento de
inflação/ganância,
creio que sempre
que o governo
decidisse por
algo tão
“grandioso” a
população
deveria ser
convocada para
expressar sua
vontade através
de plebiscito,
por exemplo. E
prefiro pensar
que haveria um
consenso sobre o
“não” em relação
à recepção da
Copa. Será? Bom,
agora tal
questão
imaginária não
faz eco na
realidade.
Volto ao tema
então, embora,
aqui, não ouse
tecer quaisquer
comentários
sobre os
instrumentos
democráticos de
acesso à tomada
de decisão
administrativa e
que não são
usados no Brasil
(ombudsman,
audiências
públicas,
comissões dos
serviços
públicos etc.).
Lo
siento,
mas considero
importante,
neste tempo de
ressaca,
encerrada a
Copa, a perda
vexatória,
transcrever um
pedaço do
escrito tecido
por Leonardo
Boff, ele mesmo
a ponderar sobre
futebol, (falta
de)
patriotismo e a
bonita lição da
torcida
japonesa… E para
a gente ruminar,
claro!
“Eu sou
bra-si-lei-ro,
com mui-to
or-gu-lho, com
mui-to a-moooor
– grita a nossa
torcida embalada
para a guerra.
Resta saber –
isso não é
explicitado – do
que é que
sentimos
orgulho. Numa
sociedade
patriarcal como
a brasileira,
parasitária,
tatuada por
quatro séculos
de escravidão,
estamos
acostumados a
emporcalhar
tudo, ordenando
que garis limpem
nossa sujeira.
Nossas ruas com
bueiros
entupidos e os
banheiros e
salas de aula de
nossas
universidades
públicas são
testemunhas
disso. Lá, o
exército do
“pessoal de
limpeza” trava
diariamente uma
batalha perdida,
registrando o
rotundo fracasso
da escola.
- Somos milhões
em ação. Todos
juntos, vamos
pra frente,
Brasil. Salve a
seleção! De
repente é aquela
corrente pra
frente, parece
que todo o
Brasil deu a
mão! Sem
patriotadas, o
lema dos
japoneses (…)
foi o silencioso
‘não vai haver
lixo’. A
corrente
nipônica pra
frente nos deu
uma lição, que
já rendeu os
primeiros
frutos. Na Fifa
Fun Fest
segunda-feira,
em Copacabana,
Rio, turistas
alemães,
espelhados no
exemplo vindo do
Oriente, não
apenas
recolheram o
lixo da praia,
mas incentivarem
outros
frequentadores a
ajudá-los.
Esse gesto de
extrema
delicadeza e
refinamento,
embora
solitário,
mostra que
civilização não
é abrir
estradas,
construir
usinas, erguer
pontes e
viadutos,
fabricar aviões,
automóveis e
robôs, clonar
seres vivos. É
saber se
relacionar com o
outro: gente,
planta, animal,
meio ambiente. É
a qualidade dos
gestos que torna
a condição
humana possível.
Enquanto houver
alguém juntando
o lixo e nos
deixando
envergonhados de
nossa imundície,
o mundo não está
totalmente
perdido. Uma
florzinha brota
no esterco.
Foi um ato
singelo, mas que
renova nossas
esperanças na
espécie humana e
no futuro do
planeta. A bola,
efetivamente, é
um reles
detalhe. Torcida
japonesa, por
despertar o
Dersu Uzala que
existe dentro de
cada um de nós,
domô arigatô
gozaimasu!”
(Por Leonardo
Boff.
In:
correio.rac.com.br,
11.7.2014.)
Particularmente,
sempre tive
muito respeito e
ternura pela
nação japonesa,
por seu povo
gentil, educado,
disciplinado e
dedicado ao
interesse/destino
coletivo.
Mas o que sinto,
bem sei,
encontra raiz em
um (distante)
tempo
pretérito...
Algumas notas:
O Brasil adotou,
no artigo 14,
incisos I, II e
III, da CF/88, o
plebiscito,
referendo e
iniciativa
popular como
mecanismo de
participação
direta. No
plebiscito, que
deve ser
convocado, o
povo opina
(plebiscito – a
“plebe opina”).
De maneira geral
o plebiscito é
uma consulta
prévia à
população sobre
determinada
questão de
interesse
público (ex.:
devemos
recepcionar a
copa? Bem sei
que esta
questão,
todavia, agora
não tem eco na
realidade. Em
consequência, o
que estaria por
trás de um
plebiscito
coerente com a
realidade
nacional? Creio
que caberia, por
exemplo, uma
destas
perguntas, e
dirigidas à
(nossa)
sociedade:
“devemos gastar
o dinheiro
público com
escolas/hospitais?”
ou
“devemos gastar
o dinheiro
público com
entretenimento
volátil?”
Depois, assumir
o “consenso
popular”...).
No texto de
Boff, ele
comenta sobre
Dersu Uzala, o
filme dirigido
pelo cineasta
japonês Akira
Kurosawa, em
1975, baseado no
diário de um
capitão russo.
Segundo as
palavras de
Boff, “na
torcida nipônica
(…) todos eram
Dersu Uzala (um
velho sábio que
trata o sol, as
estrelas, a
água, o fogo, o
vento, a neve,
as árvores e os
animais como
pessoas)”.