A caridade
segundo o
apóstolo Paulo
Comecemos pela
origem
etimológica, que
logo nos
apresenta a
essência de seu
significado.
Ação pura.
Segundo o
dicionário
Houaiss da
língua
portuguesa
(2001), este
termo no latim
apresenta-se
como carĭtas,
ātis: amor,
afeição,
ternura.
Portanto, vemos
que para
refletirmos
sobre o tema da
caridade é
imprescindível
passar pela
reflexão sobre o
amor. A Igreja
traduziu o termo
para o latim do
grego Agápē,
o qual significa
o amor assexual,
utilizado na
época de Platão
como a afinidade
entre
familiares,
entre pessoas de
um grupo que se
afeiçoavam em
realizar uma
atividade em
comum, diferente
de Eros,
o amor romântico
e sexual e
Philia, o
amor entre
amigos que “se
alimenta
sobretudo da
filosofia” (PESSANHA,
2009).
O prefixo car-
talvez encontre
sua raiz no
sânscrito ou no
eslavo antigo,
segundo o mesmo
dicionário.
Quando
consultamos
alguns estudos
dos Vedas
(conjunto de
ensinamentos
sagrados da
religião hindu,
transmitidos até
aproximadamente
2.000 a.C por
via oral),
encontramos a
palavra
sânscrita
dana,
traduzida como
caridade.
Dana
significa doar
fora do lugar do
ritual védico,
ou seja, fora do
local sagrado,
do templo e, se
expandirmos, da
cultura védica.
Dana não
significa apenas
o ato de doar,
inclui também a
atitude com
que se dá. E
é sobre este
ponto que
tentaremos
estabelecer um
aprofundamento
maior neste
texto.
A partir do
sufixo -idade,
entendemos a
caridade como
sendo o momento
do amor, da
afeição, da
ternura que
imbuímos uma
ação quando
intencionamos
praticá-la. A
caridade, neste
sentido não
seria apenas o
auxílio a alguém
que está em
situação de
necessidade, mas
como este
auxílio é feito
e qual o seu
conteúdo
essencial. É
importante,
então, que
entendamos o
significado da
caridade, para
que exista
coerência entre
concepção e
ação.
O dicionário
Houaiss ainda
contribui com
alguns termos
como
benevolência,
compaixão e
piedade, os
quais são pistas
que nos auxiliam
a percorrer o
caminho da
caridade, que é
essencialmente
um caminho de
autoconhecimento
e de reforma
íntima
ininterrupta.
De forma
poética, Paulo (O
Evangelho
segundo o
Espiritismo,
cap. XV, item 6,
p. 290, 2004)
nos apresentou a
caridade ao
dizer que se ele
fosse um doutor
de todo o
conhecimento
humano, se ele
dominasse a
expressão
angelical, se
ele fosse
médium, se
tivesse ciência
de todas as leis
que regem os
céus e a terra,
se tivesse toda
a fé do mundo,
sem a caridade
ele nada seria,
pois nada disso
serviria para
sua evolução. E
destacando: “E,
quando houvesse
distribuído meus
bens para
alimentar os
pobres e
houvesse
entregado meu
corpo para ser
queimado, se não
tivesse
caridade, tudo
isso de nada me
serviria” (p.
290).
Paulo inicia seu
ensinamento
sobre a caridade
afirmando que
aquilo que dá
poder ao homem
na Terra não o
auxilia em nada
enquanto
Espírito, pois
ele necessita
das propriedades
da caridade.
Depois de
convencidos de
que precisamos
praticar a
caridade, ao
continuarmos a
ler o texto,
imaginamos que
Paulo vai
concluí-lo
rapidamente com
o conselho:
“Portanto,
pratiquem a
caridade!”. Mas
não é isso que
acontece, pois
Paulo objetiva
contribuir com o
real sentido da
caridade, desde
esta época
reduzida à
beneficência
material.
Então ele
apresenta a
parte mais
importante, a
qual explica o
significado da
caridade através
de suas
características:
“A caridade é
paciente, é
branda e
benfazeja; a
caridade não é
invejosa; não é
temerária, nem
precipitada; não
se enche de
orgulho; não é
desdenhosa; não
cuida de seus
interesses; não
se agasta
(aborrece), nem
se azeda com
coisa alguma;
não suspeita
mal; não se
rejubila com a
verdade; tudo
suporta, tudo
crê, tudo
espera, tudo
sofre. (p.
290-291).
Neste trecho,
Paulo esclarece
o que de fato é
a caridade,
indicando que o
realizador desta
ação deve estar
imbuído destas
características,
pois do
contrário não
está
“praticando” a
caridade. A
intenção do
evangelho de
Jesus e as
explanações dos
Espíritos é
justamente nos
indicar o
caminho da
caridade como um
caminho
ascensional,
como dissemos,
de reforma
íntima, e não
diz respeito ao
exercício de uma
prática
específica
aliada a uma
pessoa que
carece de
auxílio em
determinada
circunstância. E
Jesus nos
oferece inúmeras
parábolas para
afirmar o que é
a caridade para
além da ação
material.
Paulo continua
afirmando que a
caridade não é
orgulhosa, não
se precipita,
não cuida de
seus interesses,
não é
melindrosa, tudo
suporta, tudo
crê, tudo
espera, tudo
sofre... Ora,
maior explicação
não haveria de
existir,
mostrando-nos
que o objetivo
de estarmos na
evolução
espiritual é
justamente para
nos tornarmos
seres caridosos,
uma vez que
todas as nossas
atitudes vão se
tornando
virtuosas. A
caridade, para
nós ocidentais,
está muito
relacionada com
momentos
pontuais
dedicados ao
auxílio a
alguém. Para os
espíritas, está
relacionada às
horas semanais
que vamos ao
centro ajudar em
alguma
atividade. No
sentido da
explanação de
Paulo, não se
trata de algumas
horas semanais
passadas no
centro espírita
como voluntários
e o restante da
semana
insistentes no
orgulho, nas
paixões, nos
vícios, no
estresse, na
preocupação, na
tensão, na
descrença, na
inveja, no medo
etc., pois de
nada vale o
trabalho
voluntário.
Devemos
compreender que
há sentido na
vida e que as
situações/experiências/vivências
estão
interligadas,
são
interdependentes
e seguem uma
continuidade.
Por que, então,
eu tendo a ser
mais pacífico,
mais paciente,
mais amoroso,
mais humilde no
momento do
trabalho
voluntário, em
comparação com
outros momentos
de minha semana?
O trabalho
voluntário,
qualquer que
seja ele, é
apenas mais uma
oportunidade de
exercitarmos a
caridade
(reforma
íntima), pois
logo vemos que
ele é também um
campo de poder e
disputas, tal
como em nossas
atividades
laborais
cotidianas.
Neste contexto,
é preferível nos
avaliarmos, tal
como Santo
Agostinho nos
ensina, todos os
dias sobre como
estamos
exercendo as
nossas funções a
partir de nossa
família, depois
em nosso
emprego, depois
em nossa cidade,
depois em nossas
práticas
religiosas. A
grande questão
que a caridade
traz é: que tipo
de pessoa estou
sendo?
Paulo finaliza o
seu ensinamento
de maneira
ousada,
afirmando que a
caridade está
acima da fé e da
esperança.
Podemos indagar
que ele afirma
isto devido à
caridade ser a
única condição
que não é tida,
mas tornada.
Queremos dizer
que nós não
somos fé, nós
temos fé, nós
não somos
esperançosos,
nós temos
esperança, mas
nós somos
caridosos e não
temos caridade.
A caridade
então, se
entendemos, é um
estado, uma
conquista das
virtudes citadas
por Paulo, ao
passo que a fé e
a esperança
estão ligadas
pela necessidade
que temos em
alcançar os
nossos desejos,
são movimentos
que chamam o
exterior para
dentro, ao passo
que a caridade é
um movimento de
dentro para
fora. A fé e a
esperança
demandam um
auxílio divino
para nossas
necessidades,
são impulsos que
nos dão força
para caminharmos
na esfera do
individual, ao
passo que a
caridade é o
movimento
inverso, pois
ela está na
maneira como
vivemos, como
nos expressamos,
como lidamos com
as diversidades
humanas, como
representamos o
nosso mundo e o
outro, é a nossa
contribuição
para a melhora
do planeta.
Ora, se a
caridade traz em
si o amor e a
afeição (e só
possuímos
afeição por algo
ou por alguém),
é preciso que o
outro exista
para que este
amor se realize.
A caridade só
existe,
portanto, em
relação ao
outro. Os gregos
não utilizavam o
Agápē
para indicar a
realização de
uma ação
benevolente com
alguém em
situação de
necessidade
(doentes,
pobres, órfãos
etc.), mas sim
para representar
momentos de
trocas
agradáveis entre
sentimentos de
amizade. Neste
sentido, a
caridade não
existe apenas na
relação doador
(portador) –
receptor
(carente), mas
no comportamento
do indivíduo
independentemente
da situação e de
sua condição. E
é justamente
neste ponto que
Paulo acentua
suas
observações.
Concluímos,
assim, que
caridade não é
doar, mas como
se está doando.
Caridade é ação
consciente, ela
exige
consciência em
nosso
comportamento,
de maneira a
avaliá-lo e a
corrigi-lo. Se
pensarmos que a
nossa vida
inicia-se pela
doação de Deus,
então
identificamos aí
um princípio
para a
existência da
própria vida,
ela existe por
um ato de
doação. A partir
deste
pensamento,
podemos
construir os
alicerces de
nossas condutas,
e mesmo vivendo
em uma sociedade
humana
capitalista,
onde tudo é
comercializado e
vendido, se
procurarmos a
essência da
vida,
encontraremos a
doação, pois é
vivenciando a
impaciência, a
ansiedade, que
nos tornaremos
pacientes. A
vida coletiva
doa-nos a
oportunidade de
vivenciarmos as
paixões, pois
elas são os
degraus que nos
conduzirão para
a luz, enquanto
futuros seres,
expressões da
caridade
universal.