 |
Auto de Fé de Barcelona:
um dia de festa, não de
luto |
O título acima é a
reprodução do que Allan
Kardec escreveu na
Revista Espírita quando
noticiou o auto-de-fé de
Barcelona, ocorrido a 9
de outubro de 1861,
pelo qual, por ordem do
Bispo local, foram
queimadas diversas obras
espíritas enviadas por
Allan Kardec a um
livreiro da mencionada
cidade.
O fato foi noticiado na
Revue de 1861
(Edicel, pp. 337 e
seguintes).
O Codificador do
Espiritismo, depois de
aludir à repercussão que
o episódio teve na
Espanha, onde foi
deplorado por diversos
jornais, disse que essa
data deveria ser para os
espíritas um dia de
festa, e não de luto.
De fato. Em mensagem
transcrita na Revue,
o Espírito de Saint Dominique
explicou: “Nada é feito
inutilmente em vossa
Terra nesse sentido; e
nós, que inspiramos o
auto-de-fé de Barcelona,
bem sabíamos que, assim
agindo, contribuiríamos
para um grande passo à
frente”.
Origem dos
acontecimentos
A seguir, o resumo dos
fatos, conforme pode ser
visto pelo leitor no
livro Obras Póstumas.
A pedido do Sr. Lachâtre,
então estabelecido em
Barcelona, Kardec lhe
enviara uma quantidade
de O Livro dos
Espíritos, O Livro dos
Médiuns, as coleções da
Revista Espírita e
diversas obras e
brochuras espíritas,
formando um total em
torno de 300 volumes. A
expedição foi feita
regularmente pelo seu
correspondente em Paris,
numa caixa contendo
outras mercadorias, e
sem a menor infração à
legalidade.
Na chegada dos livros,
se fez o destinatário
pagar os direitos de
entrada, mas, antes de
liberá-los, deveu-se
submetê-los à apreciação
do Bispo local, visto
que incumbia à
autoridade eclesiástica
a polícia das livrarias.
Ele estava então em
Madri. Em seu retorno,
em face do relatório que
disso lhe foi feito,
ordenou que as ditas
obras fossem apreendidas
e queimadas em praça
pública, pela mão do
carrasco. A execução da
sentença foi fixada para
9 de outubro de 1861.
As reclamações feitas
junto ao cônsul francês,
em Barcelona, não
tiveram resultado. O Sr.
Lachâtre perguntou a
Kardec se era preciso
recorrer à autoridade
superior. O conselho foi
o de deixar consumar-se
esse ato arbitrário. Mas
ele decidiu também,
paralelamente,
consultar seu guia
espiritual.
Eis o diálogo que se
seguiu:
Pergunta (Ao Espírito de
Verdade) – Não ignorais,
sem dúvida, o que vem de
se passar em Barcelona a
respeito das obras
espíritas; teríeis a
bondade de me dizer se
convém perseguir a sua
restituição?
Resposta – Em direito
podes reclamar essas
obras, e delas,
certamente, obtereis a
restituição,
dirigindo-se ao Ministro
dos assuntos
estrangeiros da França.
Mas a minha opinião é
que resultará desse
auto-de-fé um bem maior
que não produziria a
leitura de alguns
volumes. A perda
material não é nada em
comparação com a
repercussão que
semelhante fato dará à
Doutrina. Compreendes o
quanto uma perseguição
tão ridícula e tão
atrasada poderá fazer o
Espiritismo progredir na
Espanha? As ideias se
difundirão com tanto
mais rapidez e as obras
serão procuradas com
tanto mais diligência,
quanto as tiver
queimado. Tudo está bem.
Pergunta – Convém fazer,
a esse respeito, um
artigo no próximo número
da Revista?
Resposta – Espera o
auto-de-fé.
Repercussão do episódio
na Espanha e na França
Chegou então o dia 9 de
outubro e a queima dos
livros realmente
ocorreu.
Eis o extrato da ata da
execução:
"Neste dia, nove de
outubro, de mil
oitocentos e sessenta e
um, às dez horas e meia
da manhã, na esplanada
da cidade de Barcelona,
no lugar onde são
executados os criminosos
condenados ao último
suplício, e por ordem do
Bispo desta cidade,
foram queimados
trezentos volumes de
brochuras sobre o
Espiritismo, a saber: O
Livro dos Espíritos, por
Allan Kardec... etc."
Os principais jornais da
Espanha deram conta
detalhada desse fato,
que os órgãos da
imprensa liberal do país
justamente
estigmatizaram. Há a se
notar que, na França, os
jornais liberais se
limitaram a mencioná-lo
sem comentários.
O próprio Siècle,
tão ardente em
estigmatizar os abusos
de poder e os menores
atos de intolerância do
clero, não encontrou uma
palavra de reprovação
para esse ato digno da
Idade Média. Alguns
jornais, da pequena
imprensa, nisso
encontraram mesmo o dito
espirituoso para rir.
Toda crença à parte,
havia ali uma questão de
princípio, de direito
internacional
interessando a todo o
mundo, sobre a qual não
teriam passado tão
levianamente se se
tratasse de certas
outras obras.
Kardec assim comentou a
omissão dos jornais
franceses:
“Eles não calam a
censura quando se trata
de uma simples recusa de
estampilha para a venda
de um livro
materialista; ora, a
Inquisição erguendo as
suas fogueiras com a
antiga solenidade, à
porta da França, tinha
bem maior gravidade. Por
que, pois, essa
indiferença?
É que se tratava de uma
doutrina cuja
incredulidade via com
terror os progressos;
reivindicar a justiça em
seu favor, era consagrar
o seu direito à proteção
da autoridade, e
aumentar o seu crédito.
Seja como for, o
auto-de-fé de Barcelona
com isso não produziu
menos o efeito esperado,
pela ressonância que
teve na Espanha, onde
contribuiu poderosamente
para propagar as ideias
espíritas.”
Nove meses depois do
auto-de-fé, faleceu o
Bispo que o havia
determinado. A notícia
de sua morte foi
publicada na Revue de
1862 (Edicel, pp. 230 a
232).
Comunicando-se na
Sociedade Espírita de
Paris, o Bispo se disse
arrependido e pediu
preces. “Orai por mim”,
rogou o falecido. “Orai,
porque é agradável a
Deus a prece que lhe é
dirigida pelo perseguido
em favor do
perseguidor.” É evidente
que Kardec perdoou-lhe a
infeliz atitude. Perdoar
é também caridade e
jamais um espírita de
verdade como o
Codificador poderia
recusá-lo a quem quer
que fosse.
|