Benevolência, a virtude
diretora
A caridade não é uma
virtude única, mas um
conjunto de virtudes
interdependentes, ou
seja, que se influenciam
mutuamente. Uma virtude
sozinha não representa a
caridade. Somente o
efeito conjunto das
virtudes componentes
pode ser considerado
como caridade. Kardec
elenca quatro delas como
elementares[1],
a benevolência, a
indulgência, a abnegação
e o devotamento[2].
A colocação da
benevolência como
primeira da lista não é
casual, porquanto há uma
ordem de classificação.
A relação da
benevolência com as
virtudes nucleares é
extremamente profunda.
As nucleares são
virtudes “passivas”,
enquanto a benevolência
é “ativa”. As passivas
são virtudes que se
exercem por abstenção,
enquanto as ativas se
exercem somente por
ação. Com as outras
virtudes elementares a
benevolência tem uma
relação especial.
De acordo com Fernando
Bastos de Ávila,
benevolência é palavra
derivada do latim,
“bene” e “velle”, que
literalmente significa
“bem-querer”. Este
“bem-querer” designa a
virtude que nos inclina
a procurar o bem do
próximo[3].
Aristóteles falava em
dois “quereres”. No
primeiro querer a
referência é a própria
pessoa, que deseja o seu
bem em primeiro lugar.
Neste caso o que há é
interesse pessoal. No
segundo querer a
referência é o outro,
pois queremos o bem dele
em primeiro lugar.
Queremos-lhe bem não
porque ele nos
beneficiará, o que lhe
daria caráter
instrumental, mas sim
pelo bem dele mesmo.
Numa interpretação mais
aberta podemos
entendê-la também como
“boa vontade”.
Aristóteles distingue
desejo de benevolência.
Desejo é o amor ao ser
inanimado, amor que
tenta preservar este ser
com o amante; o ser é
amado pela sua utilidade
para o amante. O amor
aos seres animados,
sobretudo aos humanos, é
que é a autêntica
benevolência; é o amor
àquilo que a pessoa é, e
não pela utilidade que
nos proporciona. Existem
casos, muito
generalizados, em que se
confundem os dois,
quando amamos as pessoas
pela utilidade que vemos
nelas, ou seja, por
interesse pessoal, e não
pela sua natureza
humana. Desta forma, a
benevolência não deve
ser confundida com o
desejo.
A benevolência é a
virtude que está mais
diretamente ligada ao
amor; é uma manifestação
do amor existente em
todos os seres humanos.
O querer o bem do outro,
devido àquilo que ele é,
ou seja, um ser humano,
é o amor sendo
direcionado pela
vontade. Não existe
benevolência quando
prestamos um bem ao
outro por simples dever
de reciprocidade, sem
desejar, no entanto, que
ela alcance a
felicidade. Isto é,
fazer o bem apenas para
cumprir uma obrigação de
retribuição, sem o
sentimento profundo de
querer o bem dele. Para
que este ato possa ser
considerado benevolência
o homem deve estar
integralmente nele, com
todas as suas potências:
afetividade,
intelectualidade e
vontade.
A vontade é a diretora
do amor. O amor é a
força motriz do bem e a
vontade é o volante que
dá a direção para ele.
Uma força indisciplinada
causará mais malefícios
do que benefícios. Se a
vontade direciona o amor
para o próximo, querendo
todo o bem para ele,
então temos ai uma “boa
vontade”, que poderíamos
traduzir como a vontade
do bem ou “bem-querer”.
Mas somente a vontade
não basta. O intelecto
deve participar dessa
operação, fazendo a
leitura, o mapeamento da
realidade e informando
sobre o “terreno” onde
deverá se movimentar.
Assim, a vontade é uma
intermediadora entre o
amor potencial e o amor
atual ou realizado, ou
seja, o bem.
Existem outras
características
importantes da
benevolência. Uma delas
é a universalidade.
Obviamente, poderíamos
objetar que aquela pode
ser aplicada somente a
um indivíduo ou grupo.
Mas para que seja parte
componente da caridade
deve estender-se para
todos os indivíduos, sem
exceção. Quando é
restritiva não deixa de
ser um ato virtuoso,
porém não atinge a
condição de caridade por
lhe faltar justamente
uma das características
principais; o bem
restritivo não deixa de
ser bem, mas somente se
torna caridade,
atingindo a excelência,
quando é distribuído
universalmente, sem
exclusão de quem quer
que seja.
Observemos que Kardec
pergunta aos Espíritos
sobre o que
caracterizaria a
verdadeira caridade, o
que nos faz supor que
existe algo que pode ser
assumir apenas a sua
aparência sem ser ela
realmente: “Qual é o
verdadeiro sentido da
palavra caridade como a
entendia Jesus?” A
resposta foi:
“Benevolência para com
todos [...]”[4].
Esta afirmação é
corroborada e
complementada da
seguinte maneira: “A
caridade sublime, que
Jesus ensinou, também
consiste na benevolência
de que useis sempre
e em todas as coisas
para com o vosso
próximo”[5].
Ressalte-se aqui que os
Espíritos indicaram que
para ser virtude esta
predisposição para
querer o bem do outro
deve ser contínua e não
esporádica; da mesma
forma, indicam que deve
ser aplicada em todas as
situações que envolvem o
outro, e não em somente
algumas com exclusão de
outras.
Portanto, para o
Espiritismo,
benevolência é a
predisposição afetiva
constante de querer o
bem do outro,
independentemente de
quem seja ele, da sua
condição, ou da situação
em que esteja envolvido,
da qual faz parte a
vontade que dá direção e
é assistida pela razão.
A benevolência está
situada entre o amor e o
bem, de maneira que
dirige a conversão do
primeiro no segundo. É
ela também, como virtude
ativa, que dá a direção
para as outras virtudes
elementares da caridade.
Podemos dizer que a
benevolência está
profundamente vinculada
à intencionalidade. Eis
os motivos pelo qual
Kardec a coloca em
primeiro lugar na lista
destas virtudes
componentes da
caridade.
[1]
Kardec, Allan. O
Evangelho
segundo o
Espiritismo.
Cap. XVII, item
2. § 3º.
[3]
Ávila, Fernando
Bastos, Padre SJ.
Pequena
enciclopédia de
moral e civismo.
P. 94. 2ª Ed.
FENAME. Rio de
janeiro. 1972.