Piparote ao
futurismo
Eça de Queirós
(Espírito)
Meu amigo,
Há mais de um
decênio que não
me preocupo com
as parvoíces da
Terra. Nem
presumia a
possibilidade de
enviar novamente
para aí a minha
futilíssima
correspondência,
entregando-me à
atividade, sem
fadigas, do
trabalho que me
foi designado,
como abelha
dócil e
paciente, quando
alguém me
insinuou a ideia
de vir ditar-te
as minhas
sandices. Quê!
Escrever para
aí! Toda
tentativa que eu
fizesse
redundaria em
rematada
loucura.
Reafirmar todo o
meu asco por
essa vida
materialona em
doses fortes de
ironia? Provocar
a risibilidade
dos enfermos
humanos, que
copiam fielmente
a vida dos patos
irracionalíssimos,
a refocilarem-se
grasnando nos
charcos
lamacentos?
Empresa inútil;
todavia, apesar
dos anos que
tenho vivido
nesta região de
aquém, onde me
surpreendem
inimagináveis
imprevistos,
ainda não perdi
o gosto de rir
gostosamente do
meu próximo, que
se acha metido
na veste sebosa
da carne
nojenta; mas uma
necessidade se
me impunha,
imperiosa,
tirânica:
adaptar-me de
novo a expressar
as maviosidades
aveludadas da
língua
portuguesa.
Um olhar
retrospectivo
bastou para que
me sentisse
apavorado com
tantos
progressos,
tanta reforma,
tanta novidade e
tanta tolice...
Sempre amei o
que é novo,
detestando as
formas e as
medidas que
constringem a
beleza e a
espontaneidade
da ideação,
adorando a
originalidade,
abominando,
porém, a
macaqueação e a
estupidez. E a
velha sociedade,
com os seus
costumes
desonestos,
deteriorando-se,
dia a dia, numa
decomposição
asquerosa,
apresenta-se-me
tal qual uma
cortesã muito
antiga com os
seus cabelos
brancos, rosto
enrugado, olhos
escleróticos e
dentes podres,
cobrindo-se de
pós perfumados e
rendas de
Bruxelas,
toucando-se de
um ar de
mocidade
fabricada. Foram
talvez essas
ânsias de
apegar-se ao que
seja parvoiçadas
que, em
confusão,
provocaram o
parto da onda
futurista que
avassala os
cérebros fúteis
da atualidade.
Coisas da
velhice caduca e
incapaz...
Cultua-se
somente o que é
tolo, adora-se
apenas a
frivolidade,
entronizando-se
tudo o que
transpire a
puerilidades
ocas e
casquilhas.
Que é a
literatura
hodierna? Um
acervo de
bagatelas da
mentalidade dos
palermas. E como
se julgam
engrandecidos os
nossos
extraordinários
gigantes
liliputianos
que, atolados
até o pescoço na
sua ciência,
condenam tudo o
que é perfeito!
O monumento
literário da
língua
portuguesa,
modernamente,
não é mais do
que uma caleça
em cacos
empoeirados,
onde se aboletam
os pobres
passadistas,
enfermos da
cabeça.
Os livros
nossos,
genuinamente
nossos, hoje não
são mais que
repositórios de
bolor, de mofo,
de sujidades;
são letras
ordinárias,
falhas de
beleza, sem a
mínima dose de
sentimental
idade e poesia,
e mesmo de
patriotismo.
Pecam, como
arcaicas, por se
prenderem a
coisas de
Portugal e do
Brasil. Quem
eram Herculano,
Camilo, Fialho,
Machado de
Assis? Nomes que
passaram,
escrevinhadores
de prosa barata
para brochuras
pífias e reles.
Castilho, João
de Deus, Antero
de Quental?
Poetastros e
versejadores
choramingas, que
servem apenas
para salientar a
beleza imaculada
das excelsas
produções dos
novos príncipes
da poesia,
imortalizados
com os seus
altíssimos
poemas de cinco
palavras. Tudo
passou...
Classicismo,
estilística,
vernaculidade?
Só com os
senhores
puristas da
época,
iluminados de...
idiotia. Esses,
sim, com o
rótulo de
doutores por
fora, com a
carteira
recheada de
pergaminhos
amarelentos,
cheirando a
bafio,
estigmatizados
por dentro com o
sinal de
patetas, são os
grandes
literatos
futuristas.
Transudando
superioridade
até nas
extremidades das
unhas, acham-se
por aí aos
centos,
turibulados,
incensados,
provocando a
admiração dos
seus
contemporâneos,
que bem se
assemelham
àquele pobre
quadrúpede
resignado e
pachorrento, que
não sabe senão
ornear
ruidosamente.
Tantos e tão
fortes motivos
ordenavam que me
afastasse da
chatíssima
intenção de
escrever para
aí; encontra-se
enfraquecido,
profundamente
depauperado o
meu arsenal de
ironia e
chocarrices, e
já que somente
com essas armas
afiadíssimas se
pode enfrentar
sem medo a
pirâmide imensa
e fenomenal das
parvoíces da
besta humana,
era necessário
desistir.
Antegozei,
contudo, o
saboroso prazer
de oferecer aos
meus semelhantes
a minha opinião
pessoalíssima,
que sempre lhes
caiu na alma
como pedra de
acentuado
sarcasmo, e
lembrei-me dos
bons tempos em
que o Fernando
de Lacerda
transmitia a
esse mundo
sublunar as
minhas asneiras,
em cartas
sensaboronas,
que faziam o
prato delicioso
da sociedade
alfacinha.
Acometeu-me o
desejo
incoercível de
atirar um dos
meus petardos de
troça ao gênero
bípede e estalar
uma boa
gargalhada,
sonora e sã, com
o fito de
manifestar todas
as minhas
felicitações à
sociedade nova,
heroica,
futurista,
valente,
vaidosa,
sorridente e
atoleimada...
Foi o que fiz!
Focalizei no meu
pensamento a
ideia de vir ter
contigo e bastou
isso para que as
minhas raras
faculdades de
fantasma alígero
me conduzissem a
este maravilhoso
recanto
sertanejo em que
vives, esplendor
de canto
agreste, quase
selvagem,
trazendo-me
reminiscências
de uma paisagem
minhota, cortada
de regatos,
aromatizada de
frescas
verduras, suave
e perfumosa,
encantadora e
alegre, onde
apenas faltasse
o cheiro
caricioso do
vinho verde
reconfortador.
Eça de Queirós
encontra Chico
Xavier
–
Busquei
aproximar-me da
tua
individualidade...
Vi-te,
finalmente. Lá
surgias ao fim
de uma rua bem
cuidada, onde se
alinhavam casas
brancas e
arejadas,
brasileiríssimas,
abarrotadas de
ar, de saúde, de
sol; vinhas com
o passo cansado,
pele suarenta a
derreter-se
dentro de roupas
quase ensebadas,
com os pés
metidos em
legítimos sacos
do Porto,
obrigando-me a
evocar o cais de
Lisboa, onde
pululam esses
tipos
vulgaríssimos de
moços de recados
e carregadores,
envergando
tamancos
portuguesíssimos.
Sem que pudesses
observar-me,
submeti-te a
demorado exame.
Procurei a tua
bagagem de
pensamentos,
encontrando na
tua mocidade
tudo quanto a
tristeza criou
de mais sombrio;
em tua alma
amargurada, vi
apenas porções
de sofrimentos,
pedaços de
angústia
esterilizadora,
recordações
tristonhas,
lágrimas
cristalizadas,
reconhecendo que
ambos éramos
falhos para o
labor a
empreender.
Que não te cause
estranheza o meu
modo particular
de apreciação
sobre a tua
personalidade.
Crê. Nisso não
vai a mínima
parcela de
desconsideração.
É que eu próprio
me surpreendo
com os tipos
originais que o
espiritualismo
moderno
apresenta ao
mundo. Mãos que
se entregam aos
rudes trabalhos
braçais, fazendo
a literatura do
além-túmulo,
isto é, deste
país estranho,
onde,
folgadamente,
como pintassilgo
às soltas na
natureza, homens
interessantes,
que Tartufo,
atualmente,
mimoseia com os
epítetos de
bruxos e
endemoninhados e
que Esculápio,
com toda a sua
respeitável
autoridade
científica,
qualifica de
basbaques ou
mistificadores,
ou, ainda,
classifica de
casos
patológicos a
estudar.
Vi-te e ri-me.
Não de ti. Ri-me
da estultícia do
cérebro
desequilibrado
do asno humano,
com o seu
volumoso e
pesado arquivo
de baboseiras. E
é com esse riso
espantoso, com
essa mordacidade
que foi sempre o
meu
característico,
que resolvi
dirigir-me a
esse círculo
vicioso de
banalidades e
formalismos
chatos, onde
costumas chorar
tolamente.
Convence-te de
que se comete um
ato desarrazoado,
uma
inqualificável
imprudência, em
derreter-se
inutilmente,
porque outrem se
estertora
voluntariamente
no lamaçal onde
se repoltreiam
os irracionais.
Abandona essa
exótica
preocupação aos
mais parvos do
que tu. Ri-se o
mundo de nós?
Riamo-nos dele!
Achincalhemos os
seus arremedos
aos gorilas,
ridiculizemos as
suas intuições,
onde predomina a
bandalheira;
traduzamos a
admiração que
tudo isso nos
desperta com o
riso bom, que
sempre apavorou
os tímidos e os
insuficientes.
Por que há de
alguém
lamentar-se
sobre a grandeza
das esperanças,
dos entusiasmos
e ilusões, pelo
motivo de a
humanidade tosca
preferir
constantemente a
mentira à
verdade, a
escuridão à luz,
a guerra à paz,
nunca
conseguindo
desviar-se do
pantanal de
detritos e
porcarias?
Tens um ideal,
que é o ideal do
bem. O mesmo
luminoso sonho
de quantos têm
admirado o maior
e único mestre
na Terra, que
foi Jesus. Deixa
os receios, os
temores e as
vacilações às
toupeiras
enceguecidas,
que não suportam
senão a luz
coada das suas
tocas
subterrâneas e
segue sempre,
olhos fitos no
clarão do teu
esplendente
idealismo, não
reparando nem
contando as
dores, os
tropeços, os
obstáculos,
recordando-te
incessantemente
de que só os que
buscam a
espiritualidade
pura, que se
banham nas
claridades
sadias do sol
esplendoroso do
sonho de
perfeição de
Jesus Cristo é
que poderão
receber as
grandiosidades
do seu amor.
Toda a minha
capacidade
descritiva é
impotente para
pintar a ventura
suprema dessas
almas que aí
viveram em
contubérnio com
as úlceras da
alma, com os
padecimentos
superlativos,
com os cancros
morais. Aqui
aportam cobertas
de chagas vivas
e
sanguinolentas,
que não são
transformadas em
focos radiosos.
Cada gilvaz de
dor é uma flor
de luz. São
esses os
gozadores dos
benefícios de
Deus.
Nunca consegui
haver-me com
quem se
entregasse a
lamentações
estéreis e
improfícuas...
Conhecendo todo
o martirológio
dos santos, fui
sempre avesso
aos cilícios, às
penitências, à
lágrima e à
conta de
rosário. É que
considerava
improdutiva toda
oração sem
trabalho, toda
queixa sem luta,
toda lamúria sem
um esforço
sério, no eterno
combate da
perfectibilidade.
Os que lutam, os
que lutam e
sofrem,
batendo-se
corajosamente,
são os que
possuem as
alegrias daqui,
que constituem o
'notre argent'
(nossa moeda)
com que
adquirimos a
felicidade sem
mescla. E são
prazeres
radiosíssimos,
belos. Nem podem
comparar-se
ligeiramente ao
gozo instintivo
do bicho humano,
ao contemplar a
'belle femme',
as sensações
báquicas que se
experimentam num
café londrino e
nem mesmo a
alegria louca do
artista que se
vê, de uma hora
para outra,
coroado de
glórias, no
clássico 'salon'
de Paris.
São emoções
divinizadas, só
aprendidas pelos
lutadores, pelos
que sonharam na
esperança linda
de concretização
das doutrinas de
fraternidade, da
luz, do amor, da
paz e do
perdão... Segue,
pois, o teu
grande e
luminoso ideal!
E perdoa-me se
nada mais sei
dizer que te
incite à prática
do bem. É que
nunca me pesaram
muito na alma
essas questões
de virtudes e
bem-aventuranças;
jamais pude
esconder o meu
amor 'enragé',
(raivoso) por
tudo quanto é
singularmente
profano. Soube
rir, rir
apenas... Talvez
seja esse o
motivo por que
se enferrujaram
as fibras mais
delicadas da
minha
sensibilidade de
ironista,
faltando-lhes,
por certo, para
que se
mantivessem
normais, o
lubrificante das
lágrimas, que
detestei em
todos os minutos
da minha vida
boçal de
palhaço.
Adeus! E não
olvides do riso,
as investidas
dos patifes que
se refestelam no
brejo lodacento
das misérias
deste mundo de
esclarecidíssima
ciência ateia,
de grandes
sábios pigmeus e
de portentosas
nulidades.
Mensagem
mediúnica
recebida por
Francisco
Cândido Xavier
na década de
1930, publicada
no livro “O Voo
da Garça”, de
autoria de John
Harley, ed.
Vinha de Luz
(Belo
Horizonte).