EUGÊNIA PICKINA
eugeniapickina@gmail.com
Indaiatuba, SP
(Brasil)
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Brasilidade e a
ambivalência
da
cordialidade
“Quem somos nós
sem o socorro do
que não existe?”
–
Paul Valéry
Às vezes me dou
permissão para
refletir sobre
assuntos
obscuros, mesmo
como um
exercício de
escapismo
extraído daquele
aforismo de T.S.
Eliot: “num país
de fugitivos,
aquele que anda
na direção
contrária parece
estar fugindo”.
Sou brasileira
e, pós-eleição
presidencial,
não me agrada
conviver com o
arrependimento
de esquivar-me
de expressar uma
perspectiva que
diz respeito, no
agora, a um
certo mal-estar
condizente com a
nossa
brasilidade
contemporânea.
O Brasil pode
ser visto como
um Estado-nação
e, a despeito de
que tem nome e
história,
território e
fronteiras,
população e
governo, por que
a tese da
cordialidade
do brasileiro,
ou seja, o mito
de que seríamos
o país da
generosidade, da
civilidade, da
hospitalidade
gratuita – a
terra do coração
–
persiste?
Por que
continuamos a
negar nossa
cotidiana
violência, nosso
ódio, nosso
ressentimento
social, a ira
que nos assola
na casa e na
rua?
Em outros
termos: por que
não abrimos mão
de hábitos
culturais
dissimulados,
que modelam,
geração após
geração, a farsa
de um Brasil
tecido por um
povo pacífico,
avesso a brigas,
guerras ou
revoluções,
segundo um
estereótipo
crivado de
cordialidade e
bom coração?
O mito do
brasileiro
cordial, segundo
uma máscara do
“sujeito
simpático e
afetuoso”, na
verdade apenas
mescla, no mundo
da vida,
passividade e
criatividade
conviventes com
indiferença à
corrupção, ao
preconceito
racial, a
práticas
patriarcais, aos
homicídios, à
esperteza, sem
esquecer o
pérfido
“jeitinho”,
muito habituado
a descumprir a
lei e as regras
do jogo.
Contam: o Brasil
é um povo
pacífico, cujos
pobres e ricos,
brancos, negros
e índios são
irmãos e o
estrangeiro é
tratado como “um
igual”.
Mas esta farsa
social não se
prestaria, entre
outras coisas,
para ocultar
algo que é
inconciliável
caso não
assumamos o ódio
e os
preconceitos que
carregamos
conosco?
O sociólogo
Antonio Candido
alerta que o
“homem cordial
não pressupõe
bondade, mas
somente o
predomínio dos
comportamentos
de aparência
afetiva”.
(itálico meu.)
E sob essa
“aparência
afetiva” habita,
a meu ver, outra
perspectiva e é
esta que espero
refletir, mas em
modesto tom de
indagações, é
claro.
Do coração não
brotam somente
sentimentos
afetivos
positivos ou
nobres. Explode
também a
manifestação
calcinada do
rancor e da
fúria.
Intempestivo,
em consequência,
o homem
brasileiro
cordial pode
apedrejar
com a mesma mão
que há pouco
afagou (já
explicou o poeta
Augusto dos
Anjos).
Por fim, presos
à mitologia
que criou o
mito da
cordialidade,
tanto esquecemos
que a ira
é um dos sete
pecados capitais
que assola o
tipo humano e no
contexto
mundial, como
corremos o risco
de continuar a
reduzir o Brasil
a um país do
samba, do sexo e
(certamente
ainda) do
futebol.
Ou seria essa
mitologia um
enredo
(cultural) que
persiste em
aterrorizar
nossa ânsia por
maioridade
cívica e,
portanto, por
uma democracia
participativa
– um outro
mito?
Referências:
Candido,
Antonio.
Intérpretes do
Brasil. RJ:
Aguilar, 2000,
v. 3.
Holanda, Sérgio
Buarque de. O
Homem Cordial.
In:
Raízes do Brasil.
26 ed. SP: Cia.
das Letras,
1995, pp.
139-152.