EUGÊNIA PICKINA
eugeniapickina@gmail.com
Indaiatuba, SP
(Brasil)
|
|
Detrás do muro,
uma estampa
Homem, 56 anos:
“minha mulher
está preocupada
com os meus
hábitos sociais.
Saio para beber
aquela
‘cervejinha’
após o trabalho,
todas as sextas
e sábados, e
algumas quintas
também, todavia,
às vezes, também
tomo uma dose de
uísque ou uma
boa cachaça
durante o happy
hour”.
O amigo,
psiquiatra, e
ambos na
piscina, avisa:
“a esposa tem
razão de ficar
preocupada. Você
começa a beber
na quinta,
depois aumenta
progressivamente.
Considero, por
isso, um tiro no
pé a
justificativa
que muitas
pessoas dão a
esse desejo
indomável de
beber: ‘bebo,
claro, mas
apenas
socialmente’.
Confessemos: até
que ponto dizer
isso é honesto?”
Pesquisas
recentes apontam
que o hábito de
beber entre
crianças e
adolescentes não
para de crescer.
E os menores que
estão hoje a
beber revelam
alguns motivos
para o uso do
álcool:
curiosidade;
necessidade de
pertencer a
determinado
grupo; diminuir
inibições;
adquirir
coragem; relaxar
para lidar com
situações
estressantes
(família/escola);
divertir-se.
Os estudos, de
outro lado,
enumeram
diversos fatores
de risco para o
uso do álcool,
mas os hábitos
familiares têm
status
privilegiado,
pois tudo começa
em casa.
Sem dúvida, o
campo doméstico,
espaço primário
dos exemplos,
permite aos
menores
assimilar
determinadas
texturas
comportamentais,
que se reforçam
no tempo, à
medida que
observam
continuamente
pais e parentes
a relacionarem
felicidade com
bebida,
sobretudo nos
eventos
festivos, nos
feriados, nos
almoços de
domingo – para
celebrar e/ou
desfrutar o
descanso, o
hábito assumido
da cerveja,
esquecidos os
adultos de que,
embora não
pareça,
cerveja também é
álcool.
Um professor, e
amigo precioso,
me conta:
cresci
assistindo a meu
pai chegar em
casa nervoso ou
enfadado. Correr
para a cozinha,
abrir a
geladeira,
apossar-se da
cerveja, que lhe
dava a ilusão de
leveza, quiçá
alguma
esperança. No
outro dia a vida
igual, mas,
no final de
semana,
o vinho tinto,
“bom para a
saúde”, ele
dizia, mais
cerveja e, na
sequência, o
homem piadista;
e, depois do
sono, a letargia
pós-almoço, um
crônico mau
humor. As horas
tão breves, pois
o mundo não é
paraíso, só a
sociedade de
consumo, a
indústria nos
contam isso e de
forma tão
infiel. A
maioria
acredita. Meu
pai acreditava.
Morreu mal, o
coitado, dessas
doenças dos
excessos,
construídas
lentamente no
corpo. E
abracei, de
forma
inconsciente, ou
não, nunca
sabemos, a mesma
atitude. Então,
tive um infarto
e fui obrigado,
por uma questão
de saúde, a me
educar e assim
acabar por
oferecer um
outro estilo de
vida para os
meus filhos.
Cresceram mais
estruturados e
acredito que
possuem mais
recursos
emocionais para
lidar com os
desafios e
as
frustrações do
caminho. E sobre
o álcool, sou
muito honesto.
Procurei educar
meus filhos,
mostrar a eles
os efeitos
danosos, pois
sei que só
proibir é
pensamento
mágico.
Soneto do povo e
de toda gente,
as campanhas
publicitárias,
infelizmente,
remetem a todo
tempo mensagens
explícitas do
consumo do
álcool ligado à
fantasia do
sucesso, a
cenários de uma
vida feliz,
muito contrária,
na verdade, à
realidade, à
valorização da
vida. Quanto
vale a nossa
vida?
Escutei algo
interessante
outro dia,
durante uma
viagem de
trabalho. Uma
mulher, diretora
de uma escola,
me perguntou:
você fuma
socialmente?
Respondi: não
entendi
a
pergunta.
Mas, por
demonstrar mais
espanto que
desentendimento,
ela continuou:
as
pessoas, a
sociedade, o
poder público,
seja quem for,
são engraçados.
Abominam o
cigarro; o
tabaco causa
câncer, mata,
polui... Um
horror. Claro,
concordo e não
há dúvida em
relação à
associação
direta entre
cigarro/doença/morte.
Por isso minha
pergunta lhe
causou embaraço,
pois, ou uma
pessoa fuma, ou
não fuma. Você
não considera,
ao menos sem
lógica, o
combate público
ao tabaco e o
conto da
carochinha que
continuamos a
espalhar sobre o
consumo moderado
do álcool?
Pensemos aqui na
estampa: “beba
com moderação”.
Ora, o álcool é
um perverso e
dissimulado
vício social
cosmopolita...
Tanto no uso
esporádico, como
no consumo
frequente, o
álcool causa
alterações
múltiplas no
organismo, e as
primeiras
reações são
sonolência ou
agressividade,
irritabilidade,
agitação,
alteração de
equilíbrio,
vômitos,
convulsões.
E, como um
agente
etiológico
importante, com
o uso frequente,
o álcool pode
ajudar a gestar
diversas
doenças,
antecipando os
riscos graves à
saúde: hepatite
alcoólica,
gastrite,
síndrome de má
absorção,
hipertensão
arterial,
acidentes
vasculares,
cardiografias,
diferentes tipos
de câncer –
esôfago, boca,
garganta, cordas
vocais, de mama
nas mulheres e o
risco de câncer
no intestino,
pancreatite e
polineurite
alcoólica (dor,
formigamento e
cãibras nos
membros
inferiores). Nas
mulheres, essas
manifestações
são mais
precoces,
todavia; e,
ainda,
impotência
sexual no homem
e frigidez nas
mulheres.
O álcool, um
“falso amigo”,
integra sem
pudor a cultura
ligada à
sociabilidade e
ao lazer.
O apelo dos
meios de
comunicação, que
incita o consumo
das drogas
lícitas, assim
como a
condescendência
familiar para o
consumo destas
substâncias
parecem creditar
em sua
utilização um
padrão de vida
natural e
engajado,
o qual se
agrega, também
por isso, à
ideia de rito de
passagem para a
vida adulta.
Logo, e cada vez
mais cedo, mais
crianças e
adolescentes,
querendo
integrar-se a
“grupos dos
maiores”,
antecipam o
consumo do
álcool, embora o
ECA seja
taxativo à
medida que
regulamenta o
tema no país:
para criança e
adolescente, o
álcool é sempre
uma droga
ilícita – e não
há exceções, nem
na casa familiar
aos domingos,
quando os avós
instigam “quebra
de vigilância”,
afinal... “é só
um gole de
vinho, e vinho
faz bem para o
coração...” Boas
são as uvas, com
ou sem sementes.
Por fim, na
viagem de
trabalho, a
mulher me
contou, enquanto
tomávamos um chá
gelado no canto
quieto de uma
sala vazia da
escola: anos
atrás eu
fumava. Um dia,
no final da
faculdade,
estava nervosa
em uma reunião
de trabalho,
pressionada pela
equipe do
estágio. Acendi
um cigarro.
Ficaram chocados
e alguns me
pediram, e até
de forma
deselegante,
para eu apagar o
cigarro.
Respondi que só
apagaria se
alguém ali
dissesse que não
consumia álcool.
Uma moça
replicou dizendo
que só bebia
socialmente. Ela
me deu a
oportunidade.
Disse que só
apagaria se
houvesse alguém
ali que não
bebesse nada de
álcool, pois, ou
somos bebedores,
ou não somos, e
simples assim!
Ou seja: fumei
meu cigarro até
o fim e todo
mundo conivente
em silêncio.
Senti-me a
própria
adúltera, mas
salva pela
justiça das
palavras do
Cristo. Cegos
não podem querer
guiar outro
cego
no
desfiladeiro.
O pior,
completei, é que
estamos, e cada
vez mais cedo,
levando nossas
crianças e
nossos
adolescentes
para o
desfiladeiro.
Porém, mas pior,
concorremos para
o êxito da
cegueira...
Notas:
1- De acordo com
a OMS, cinco
fatores
proporcionam o
abuso de
substâncias
ilícitas e
lícitas (álcool,
entre elas):
falta de
informação sobre
o problema,
dificuldade de
inserção no meio
familiar e no
trabalho,
insatisfação com
a qualidade de
vida, problema
de saúde,
facilidade de
acesso às
substâncias.
2- O padrão de
uso pesado de
álcool por tempo
determinado (um
fim de semana,
por exemplo) é
chamado pelos
especialistas de
uso “binge” de
álcool, ou, em
português, “BPE”
(beber pesado
episódico). Ele
é definido pelo
consumo de 5 ou
mais doses de
bebida alcoólica
de uma só vez
pelos homens, e
de 4 ou mais
doses para as
mulheres. E
também é usado
por indivíduos
que bebem até a
embriaguez.
3- Última
pesquisa sobre o
álcool indica
que a idade
inicial de
consumo, no
Brasil, está na
faixa de 15 anos
de idade (Cf.
Lenad –
Levantamento
Nacional de
Álcool e
Drogas), embora
seja considerado
este número
controverso – em
muitos locais no
país, crianças
com menos de 11
anos já fumam e
consomem álcool.
E dos jovens que
declaram beber,
grande parte faz
uso em forma de
“binge”, ou
seja, consome
muito e em um
curto espaço de
tempo (cerca de
duas horas e
toda semana).
4- O abuso do
álcool determina
mortalidade
precoce. Na
Suécia, perto de
25% dos óbitos
abaixo de 50
anos foram
atribuídos ao
álcool.
5- São fatores
protetores
ligados à
resiliência
(logo,
associados à
evitação do uso
de álcool por
crianças e
adolescentes):
família
estruturada,
participação
efetiva dos pais
(*ou da mãe, ou
do pai, a
depender da
situação
familiar – o
importante é a
existência, ou
seja, a
estabilidade
desta
participação) na
vida dos filhos,
determinando
regras claras de
conduta no
núcleo familiar,
pois isso vai
favorecer
recursos
internos diante
das frustrações;
rendimento
escolar
satisfatório ou
assistido;
relações com
outros núcleos
da comunidade –
igrejas, centros
espíritas,
templos etc.
(espaço para a
religiosidade),
grupos
desportivos,
adoção de normas
preventivas a
respeito de
substâncias
ilícitas e
lícitas
(álcool/tabaco);
práticas de
voluntariado.
6- Não foi
pretensão tratar
do alcoolismo
neste escrito,
mas sim da
“conduta social
do álcool” e com
foco no menor.
Contudo, quando
o alcoolismo
domina? O
alcoolismo se
instala “quando
se observa uma
perda de
controle sobre o
uso do álcool,
de modo que o
usuário não tem
mais autonomia e
se torna
dependente”. (Edmilson
Antunes de
Campo, professor
da Faculdade de
Saúde Pública (FSP)
da USP.)
7- Para saber
mais, consulte:
Blum, R. W.
Adolescent
substance use
and abuse.
Arch Pedriatr
Adolesc.
Med.
1997; 151:805-8.