ALMIR DEL PRETTE
e
EUGÊNIA PICKINA
adprette@ufscar.br
-
eugeniapickina@gmail.com
São Carlos, SP e
Indaiatuba, SP (Brasil)
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A passagem pelo umbral
é
obrigatória?
O termo umbral,
utilizado no livro
Nosso Lar
(André Luiz/Francisco
Cândido Xavier),
alcançou grande
popularidade no Brasil.
Além da progressiva
aceitação do livro, a
difusão do termo
deve-se, principalmente,
às novelas, peças de
teatro e filme,
acompanhados por um
grande público
interessado em
informações sobre a
espiritualidade. Nessas
apresentações o “umbral”
é retratado como um
local onde vão parar
pessoas que cometeram
erros em sua última
encarnação. Nada mais
simples e eficiente para
atuar sobre o imaginário
popular, que tende a
pensar no umbral como
outra designação para o
conhecido purgatório
católico.
Por outro lado, não são
poucos os espíritas que
conceituam o termo nesta
visão: um lugar
permanente destinado à
passagem de Espíritos
com pouca evolução,
enfatizando os quadros
de sofrimento e angústia
vividos por seus
habitantes. Esse
retrato, fantasioso
quanto à ideia de local
permanente e de punição,
impressiona
negativamente aqueles
que buscam o Centro
Espírita. Alguns desses
frequentadores, sem
outras informações,
“rezam” para ter um
curto estágio nessa
região. Adiantou-nos
ainda um companheiro de
ideal espírita que as
pessoas explicam o
receio do umbral, com
lógica comparativa: “se
André Luiz que teve uma
existência no geral
honesta e produtiva,
cometendo poucos
deslizes, ficou na tal
região cerca de oito
anos, nós todos vamos
ficar por lá muito mais
tempo”. Essa noção pode
exacerbar os sentimentos
de culpa e medo.
Em primeiro lugar,
precisamos compreender
que o livro Nosso
Lar é
classificado como um
romance, não se
tratando, portanto, de
uma obra de caráter
doutrinária (cunho
científico). Em segundo
lugar, o relato de André
foca a experiência que
teve no mundo
espiritual, segundo a
sua percepção. Cada um
tem sua própria
experiência a depender
de situações
particularizadas e
muitos percebem os fatos
a partir de como,
antecipadamente, os
interpretavam. Por
exemplo, quem se
acostumou com a ideia de
anjo, pode perceber como
tal a visão de um
Espírito mais evoluído.
Essa doutrina de locais
fixos destinados às
almas pertence à
teologia judaico-cristã,
que divide o destino da
criatura em três
alternativas: o céu, o
purgatório e o inferno.
A primeira e a última
são destinações eternas,
da segunda pode haver
translado para o paraíso
a depender das orações
intercessoras, conforme
se supõe. Acreditava
também, até há pouco
tempo, que a mudança
para o céu podia ser
conseguida mediante
doações generosas dos
parentes em favor da
alma do finado.
Entretanto, os Espíritos
que participaram no
trabalho da codificação
chamaram o período de
tempo entre uma
encarnação e outra de
erraticidade. Esse
período variável é
vivido por Espíritos de
diferentes graus de
evolução e pode ser
aproveitado de várias
maneiras, visando ao
progresso espiritual. Os
Espíritos nesse período
não ficam circunscritos
e, dependendo de sua
condição espiritual,
podem, até mesmo,
visitar outros mundos.
Outra condição desse
período temporal é a de
não isolamento. Como os
Espíritos entram em
contato uns com os
outros e se agrupam na
erraticidade?
Muito simples: a lei de
afinidade atrai os que
se assemelham e é por
isso que os Espíritos,
respondendo a pergunta
160 de Allan Kardec (O
Livro dos Espíritos),
afirmam que
encontraremos, ao
desencarnar, “aqueles
com quem mantivemos
afeição recíproca e que
quase sempre eles
vêm nos receber”
(negrito nosso). Como
Jesus adiantou, “na casa
do Pai há muitas
moradas”. Em uma delas
podemos permanecer
durante algum tempo, não
como punição ou
recompensa de Deus, mas
como um local com
oportunidade de
aprendizagem em
atividades e estudos com
Espíritos que nos são
afins e estão em estágio
semelhante ao nosso.
Ademais não podemos
desprezar o fato de que,
apesar de assumir muitos
postulados cristãos,
Allan Kardec, inspirado
no racionalismo
iluminista, afasta-se
veementemente da versão
católica do além,
apoiando-se, como já
mencionado, no termo
erraticidade para
explicitar a própria
ideia de indefinição
relativa às condições de
vida no mundo
espiritual.
No livro O céu e o
Inferno, o
codificador tanto
critica a ideia de
inferno, onde os séculos
sucedem aos séculos sem
esperança para os
condenados, quanto
discorda, e de forma
taxativa, da ideia de
purgatório, considerando
a crença neste conceito
o motivo que deu origem
ao comércio das
indulgências, causa
primeira da Reforma (Cf.
Kardec, A. O céu e o
inferno, RJ: FEB,
1987, p. 63).
No terceiro capítulo de
O Céu e o Inferno,
dedicado ao céu, Kardec
reprova também qualquer
tentativa de localizar o
céu (num sentido
espacial ou geográfico):
“A felicidade está na
razão direta do
progresso realizado, de
sorte que, de dois
Espíritos, um pode não
ser tão feliz quanto o
outro, unicamente por
não possuir o mesmo
adiantamento intelectual
e moral, sem que por
isso precisem estar,
cada qual, em lugar
distinto. Ainda que
juntos, pode um estar em
trevas, enquanto que
tudo resplandece para o
outro, tal como um cego
e um vidente que se dão
as mãos: este percebe a
luz da qual aquele não
recebe a mínima
impressão” (Kardec, A.
O Céu e o Inferno,
RJ: FEB, 1987, p. 30).
(Itálico nosso)
Precisamos ficar atentos
para evitar o uso de
modelos explicativos que
aceitamos no passado e
até ajudamos a difundir,
mas que na atualidade
não se ajustam ao ideal
espírita. Lembremos que
a Doutrina Espírita
defende que nossos erros
retornam para nós, sem
necessidade de uma junta
punitiva para essa
finalidade. Por outro
lado, o bem que fizermos
também retorna, dando
início à promessa de
Jesus: O Reino de
Deus está dentro de vós.
Notas:
Afastando-se das
cautelas do Codificador,
o livro Nosso
Lar, por exemplo,
diz sobre o Umbral: “uma
espécie de zona
purgatorial, onde se
queima a prestações o
material deteriorado das
ilusões que a criatura
adquiriu por atacado,
menosprezando o sublime
ensejo de uma
experiência terrena”
(2002, p. 71). Com isso,
Francisco Cândido
Xavier, através do livro
Nosso Lar,
acaba por fixar uma
versão espírita do
além, e, de maneira
distinta de Allan
Kardec, agrega uma
ênfase maior no aspecto
religioso da Doutrina
Espírita, bem como uma
assimilação de elementos
do catolicismo.
De forma geral, o
além permanece vago
na obra de Allan Kardec,
entendendo ainda o
codificador a existência
na Terra como algo
próximo à noção de
purgatório proposta pela
igreja católica –
renascemos para nos
aprimorar, mas, em razão
de nossas debilidades,
estamos sujeitos a
provas e expiação,
segundo a própria
condição planetária.
Mas, com uma diferença
muito evidente, a
“saída”, ou seja,
qualquer status
liberatório
depende apenas do
empenho pessoal de cada
um, pois o único
determinismo é evoluir
(e, para isso, nascer de
novo).
Referências:
Kardec, Allan. O
Livro dos Espíritos.
RJ: FEB, 1994.
Kardec, A. O Céu e o
Inferno. RJ: FEB,
1987.
Xavier, F. C./Espírito
André Luiz. Nosso Lar.
RJ: FEB, 2002.