IVOMAR SCHÜLER
DA COSTA
ivomarcosta@gmail.com
Pelotas, RS
(Brasil)
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Indulgência, a
virtude
da
compreensão
Sucedendo à
benevolência,
Kardec
classifica a
indulgência como
a segunda
virtude
elementar da
caridade .
Ao ler as obras
fundamentais do
Espiritismo
encontram-se
termos em que os
significados por
vezes se
aproximam e por
vezes se
afastam,
causando alguma
confusão ao
leitor menos
atento ao
processo
sinonímico e
diacrônico,
dentro do campo
semântico. Este
é o caso de
alguns
utilizados nos
evangelhos, bem
como nas obras
espíritas.
Perdão,
indulgência e
misericórdia
aparecem muitas
vezes em “O
Evangelho
Segundo o
Espiritismo”.
Seriam eles
sinônimos? Para
que possamos
entender e
aplicar a
caridade em toda
a sua extensão,
necessário se
faz conhecer o
sentido exato
dos termos
utilizados pelos
luminares que em
todos os tempos
os revelaram a
nós, como
condição
indispensável ao
bom entendimento
e à boa
aplicação dos
seus conselhos
morais.
A caridade ainda
é uma grande
desconhecida;
para que a sua
prática seja
fiel precisamos
apreender o seu
significado, a
sua estrutura e
composição.
Kardec, com sua
enorme
capacidade
intelectual,
conseguiu
sintetizar em
apenas seis
virtudes,
classificadas
como
elementares,
mais de dois mil
anos de
perquirições a
respeito deste
tema essencial
para a
humanidade.
A despeito de
todo o cuidado
que ele tomou na
elaboração das
obras básicas,
buscando
esclarecer com
exatidão o
significado dos
termos
utilizados,
alguns ainda
foram deixados
para que a
posteridade os
estudasse e
esclarecesse.
Contando com o
nosso interesse
e capacidade de
entendimento, e
com a evolução
dos métodos de
interpretação,
tendo em vista a
impossibilidade
material de
escrever sobre
cada mínimo
detalhe, ele
deixou-nos
inúmeras pistas.
Sem dúvida, ele
sabia que os
termos
utilizados
sofreriam
alterações de
sentido, assim
tratou de
organizar seus
textos de
maneira que a
disposição
destes
oferecesse
condições de
serem de
decodificados e
seus sentidos
exatos serem
apreendidos
pelos espíritas
dos séculos
vindouros. A
questão de que
tratamos é um
destes casos.
Sendo a
indulgência uma
das virtudes
elementares da
caridade, para
captar o sentido
exato desta não
podemos, em
hipótese alguma,
passar ao largo
do entendimento
daquela.
Contudo, essa
tarefa não é tão
fácil como pode
parecer à
primeira vista.
No decorrer dos
séculos essa
virtude
essencial foi
expressa por
diversos termos,
atendendo à
necessidade dos
tempos e da
evolução da
mente humana.
Tudo isso leva
os interessados
na própria
evolução a um
esforço
interpretativo
no qual devem
procurar as
raízes
semânticas para
apreender o seu
sentido exato,
pois sem isso a
prática da
caridade restará
enfraquecida, ou
distorcida.
Comecemos
notando que
Kardec coloca
uma das
bem-aventuranças
como título do
capítulo X:
Bem-aventurados
os que são
misericordiosos.
No decorrer do
capítulo vemos
os evangelhos e
os espíritos
usarem termos
como
misericórdia,
perdão e
indulgência.
Pela colocação
dos termos na
estrutura do
capítulo,
observamos que,
apesar das
fortes relações
de sinonímia,
existem
perceptíveis
diferenças de
significado
entre eles.
O posicionamento
do termo
misericórdia no
título do
capítulo nos
indica que tem
significado bem
mais amplo do
que os outros
dois. Logo a
seguir, no
primeiro
subtítulo temos
“Perdoai, para
que Deus vos
perdoe” e depois
em “Instrução
dos Espíritos”,
item 14,
identificamos o
termo “perdão”
em “Perdão das
ofensas”, e mais
adiante “A
indulgência”.
Desta forma,
entendemos que o
sentimento de
misericórdia
abrange os
outros dois,
apesar disso
causar certa
confusão, já que
no linguajar
cotidiano
costumamos
utilizar ambos
como sinônimos
absolutos.
Vejamos as
relações de
sentido entre os
termos
utilizados. Em
“Perdoai, para
que Deus vos
perdoe”, item 4,
§ 1º, Kardec diz
que “Ela (a
misericórdia)
consiste no
esquecimento e
no perdão das
ofensas. [...].
O esquecimento
das ofensas é
próprio da alma
elevada, que
paira acima dos
golpes que lhe
possam
desferir.”, o
que nos leva a
entender que o
perdão é um ato
próprio da
misericórdia.
Uma
característica
do perdão, que
podemos inferir
do texto, é que
os espíritos que
já atingiram as
culminâncias da
evolução não se
sentem ofendidos
pelas ações
derivadas das
imperfeições
alheias.
Portanto,
somente precisa
perdoar quem se
sente ofendido,
e estes são
aqueles
espíritos que
ainda se
encontram na
luta pela
conquista da
superioridade
moral. Decorre
daí que a
necessidade de
perdoar é sempre
relativa ao
nível
espiritual; um
dia não
necessitaremos
mais perdoar.
No item 15, §
1º, ainda no
subtítulo
“Perdão da
ofensas”, Paulo,
o apóstolo, diz
que “[...] o
vosso adversário
andou mal em se
mostrar
excessivamente
suscetível;
razão de mais
para serdes
indulgentes
[...]”,
relacionando,
desta forma, o
perdão com a
indulgência.
Além destas
relações
estabelecidas
pelos espíritos,
Kardec, como
poliglota, deve
ter percebido,
devido às
origens latinas
do termo, que a
relação entre
eles é histórica
e semântica. O
termo
indulgéntia era
usado pelos
romanos como
sinônimo de
outras palavras,
tais como:
remíssio, que
significava
quitação,
remissão,
perdão;
relaxátio, ou
seja, alívio,
atenuação;
absolútio, cujo
sentido era o de
dissolução ou
absolvição;
indúltum, ou
mais
especificamente,
perdão. A
palavra indúltum
era usada no
sentido de
perdão dos
tributos não
pagos (remíssio
tributi) ou de
perdão das penas
(remíssio poenae).
Não pagar os
tributos devidos
a Cezar era um
erro gravíssimo.
Em determinadas
épocas os
imperadores
concediam
indultos, ou
seja, perdão,
àqueles que
haviam sido
condenados ou
que não haviam
pago seus
impostos. O
termo abolitio
era algo
parecido com uma
anistia ou
libertação dada
durante
festividades
públicas, uma
forma de
libertação.
Um exemplo do
sentido de termo
sinônimo de
indulgência é
encontrado em
“Atos dos
apóstolos 24:23”
. Paulo havia
sido preso e
conduzido à
Cesareia. Lá,
depois de ouvido
pelo procurador
Felix, o
centurião
encarregado da
sua guarda
recebeu
instruções para
tratá-lo com
brandura,
inclusive
permitindo que
recebesse a
visita de amigos
e que fosse
ajudado por
eles. O texto em
latim diz:
habére
mitigatiónem. A
ordem era para
que o centurião
amenizasse a
severidade e,
geralmente, a
crueldade, com
que os
prisioneiros
eram tratados
pelo poder
imperial. Neste
caso a
indulgência
significou
brandura,
suavização do
tratamento
dispensado ao
prisioneiro.
Originalmente o
termo
indulgência era
muito amplo e
abrigava vários
significados e
sinônimos,
inclusive o de
perdão. Este era
apenas um caso
específico
dentro do campo
semântico do
termo
indulgência.
Portanto, não se
deve entender e
tratar
indulgência e
perdão como
sinônimos exatos
e absolutos.
De modo
semelhante ao
termo em latim,
indulgência para
os espíritos da
codificação é
também
abrangente.
De acordo com
José, Espírito
protetor, no
subtítulo
“Indulgência”,
item 16, ela
consiste em a
pessoa evitar
conhecer
intencionalmente
os defeitos
alheios, e se
por acaso toma
conhecimento
deles não os
divulga, a não
ser em caso em
que um grupo
maior possa vir
a ser ou estar
sendo
prejudicado.
Mesmo assim
procura atenuar
as suas
observações.
Evitar críticas
e censuras aos
erros alheios
faz parte da
indulgência.
Ela seria muito
simples caso se
resumisse a
isto. Existem
situações em que
é impossível
fugir a crítica
e a censura, em
primeiro lugar
porque somos
dotados pela
providência
divina de
faculdades
intelectuais e
morais próprias
para o exercício
do discernimento
entre o bem o
mal, portanto,
sob pena de
conivirmos com o
erro, não
devemos nos
omitir. Quando
somos obrigados
pela força da
situação a
emitir pareceres
sobre o
comportamento
alheio, os
espíritos nos
recomendam a
brandura. No
item 15 temos
“[...] se fordes
duros,
exigentes,
inflexíveis, se
usardes de rigor
até por uma
ofensa leve,
como querereis
que Deus esqueça
de que cada dia
maior
necessidade
tendes de
indulgência?”;
no item 16, § 4,
é dito, “Sede,
pois, severos
para convosco,
indulgentes para
com os outros” e
no § 5, “Sede
indulgentes,
meus amigos,
porquanto a
indulgência
atrai, acalma,
ergue, ao passo
que o rigor
desanima,a
fasta, irrita.”;
no 1º § do item
17, o espírito
João, Bispo de
Bordéus, nos
recomenda: “Sede
indulgentes com
as faltas
alheias,
quaisquer que
elas sejam; não
julgueis com
severidade senão
as vossas
próprias ações
[...]”. O
espírito Dufêtre,
Bispo de Nevers,
no item 18, § 1º
recomenda:
“[...], Sede
severos
convosco,
indulgentes para
com as fraquezas
dos outros.”. No
mesmo parágrafo
ele diz que a
indulgência
consiste em cada
um observar
apenas
superficialmente
os defeitos de
outrem,
esforçando-se
para fazer
prevalecer os
que há nele de
bom e virtuoso.
A indulgência,
então, implica
não em fechar a
mente para a
percepção dos
erros alheios, o
que seria negar
e anular as
capacidades de
que fomos
dotados, mas
sim, apesar de
vê-los, suavizar
nossas críticas
e censuras e,
simultaneamente,
destacar os
aspectos
positivos
daqueles que os
cometem. Ser
indulgente é
tratar com menos
severidade os
erros alheios do
que os nossos.
A razão pela
qual devemos
desenvolver a
indulgência está
em nossa própria
imperfeição. No
§ 1º do item 13,
ao tratar da
questão da
autoridade para
julgar e
condenar os
erros dos outros
diz “‘Atire a
primeira pedra
aquele que
estiver isento
de pecado’ disse
Jesus. Esta
sentença faz da
indulgência um
dever para nós
outros [...].
Ela nos ensina
que não devemos
julgar com mais
severidade os
outros, do que
julgamos a nós
mesmos, nem
condenar em
outrem aquilo de
que nos
absolvemos.”.
Embora sendo
autoexplicativa,
podemos
acrescentar que
ser indulgente
requer profundo
autoconhecimento.
Extraímos quatro
conclusões do
exposto. A
primeira delas é
que indulgência
é mais ampla do
que o perdão.
Existe uma área
de intersecção
dos significados
dos termos, em
que ambos se
confundem; a
necessidade de
perdoar é
temporária, pois
deixa de existir
quando o
espírito atinge
o cume da
evolução moral,
ao passo que a
indulgência
permanece sempre
e cada vez mais,
porquanto o
espírito
evoluído terá
sempre de se
confrontar com
as imperfeições
daqueles que
ainda palmilham
as difíceis
estradas da
ascensão moral.
Dessa forma,
como segunda
conclusão temos
que a
indulgência se
expande na
medida em que o
perdão se
encolhe, até
este
desaparecer.
A terceira
conclusão
refere-se à
identidade entre
indulgência e
misericórdia.
Este termo
aparece no
título do
capítulo X, ao
passo que o
termo
indulgência,
Kardec o coloca
como uma das
virtudes
elementares da
caridade.
Portanto, em
decorrência da
expansão da
indulgência na
medida em que
evolui o
espírito, chega
um momento em
que se
identificam como
uma só virtude,
embora termos
diferentes a
denominem.
Podemos
representar a
misericórdia
como o circulo
que contém dois
outros círculos
inscritos e
secantes. Os
dois círculos
secantes são a
indulgência e o
perdão. No
entanto, quando
o espírito
evolui a ponto
de não precisar
perdoar, resta
apenas um
circulo
inscrito; na
medida em que
ele evolui o
circulo que
representa a
indulgência
cresce até se
confundir
totalmente com o
circulo maior;
misericórdia e
indulgência se
tornam dois
termos que
significam a
mesma virtude.
Finalmente, a
quarta conclusão
é que a
indulgência é a
capacidade de
compreender os
erros cometidos
por outrem,
devido as suas
fraquezas
morais. A partir
do
reconhecimento
da nossa própria
imperfeição
aumentamos nossa
capacidade de
compreender a
imperfeição dos
outros.
Portanto, a
indulgência é
substancialmente
uma virtude em
que o espírito,
a partir do
autoconhecimento,
passa a entender
e a sentir
compaixão pelos
espíritos ainda
imperfeitos. O
espírito
abandona o
orgulho, ou
seja, o
sentimento de
superioridade
que alimenta em
relação aos
outros. Entende,
sobretudo, que
todos guardam
dentro de si a
capacidade de se
melhorarem, e
assim passa a
ver os outros
com olhos
carregados de
amor. Por isso a
indulgência é a
virtude da
compreensão.